Walquíria Gertrudes Domingues Leão Rego

Por Lucas Baptista (UEL) e Daniela Mussi(UFRJ)

“Dejo a los varios porvenires (no a todos) mi jardín de senderos que se bifurcan”
Jorge Luis Borges

Walquíria Leão Rego nasceu na cidade de Joaquim Távora, interior do Estado do Paraná, em 1946, e iniciou sua graduação na Faculdade de Direito da PUC-PR nos anos 1960, em Curitiba. A intensa efervescência política, cultural e intelectual dos estudantes daquele período a levou a abandonar a formação jurídica e, em 1968, ingressou no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em seguida, nos anos 1970, cursou mestrado em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP), então um dos únicos programas de pós-graduação em Ciências Sociais existentes no Brasil.

Em meio ao clima de repressão perpetrado pela ditadura, a USP se revelava como um espaço singular de resistência democrática e de estímulo ao debate e pesquisa científica sobre a situação do país e da América Latina. Era, também, um canal importante para a recepção das ideias e teorias sociais e políticas que despontavam no mundo. Pensar o Brasil e a relação entre intelectuais e a política era um tema candente nas aulas de professores como Florestan Fernandes, Luís Pereira, Gabriel Cohn, Jean Paul Sartre e Antônio Cândido. Para Walquíria e muitas pessoas de sua geração, foi particularmente importante nesse contexto a tradução e maior circulação das ideias do italiano Antonio Gramsci (1891-1937) nos meios acadêmicos e políticos brasileiros.

Entender esse ambiente é determinante para interpretar sua dissertação de mestrado, defendida em 1981, com o título “Estado e revolução burguesa no Brasil: um ensaio sobre a questão da hegemonia na Primeira República”. Trata-se de uma análise de inspiração poulantziana sobre as frações de classe em disputa no período inicial da experiência republicana no país, na qual se destacam as dificuldades do grupo paulista em conquistar sua hegemonia cultural e política. O trabalho foi fundamental para a trajetória da pesquisadora, uma vez que doravante ela se dedicará a pensar a realidade nacional através da história das ideias e da sociologia dos intelectuais, sobretudo, ao privilegiar o estudo do pensamento político e social brasileiro. Sua tese de Doutorado, defendida pouco tempo depois também na USP, em 1989, “A utopia federalista em Tavares Bastos”, tomaria a história do liberalismo como objeto de análise, mais precisamente o estudo desse pensamento político no Brasil oitocentista. O objetivo principal do trabalho era discutir a relação entre a escravidão, a circulação das ideias liberais e a formação das instituições políticas no país a partir da perspectiva singular com que Tavares Bastos pensava o desenvolvimento do capitalismo nacional a partir da modernização do setor agrário. Nesse sentido, esse liberal seria o representante de uma espécie de tentativa de americanismo emergente na periferia do capitalismo.

Durante o doutorado, Walquíria deu início às atividades como professora em instituições de ensino superior e, no fim dos anos 1980, ingressou por concurso no Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nos primeiros anos de docência nesta universidade, ela ministrou cursos sobre pensamento político e social brasileiro, além de ter organizado seminários e orientado teses e dissertações sobre o tema. Em parceria com a professora Élide Rugai Bastos, da mesma instituição, participou do Centro de Estudos Brasileiros (CEB), que presidiu por mais de quinze anos. Cabe destacar o alcance e relevância dos seminários internacionais organizados pelo CEB nos anos 1990, quando contou com a presença de intelectuais importantes no pensamento político contemporâneo, tais como a teórica política italiana, professora da Universidade de Columbia, Nadia Urbinati, e o sociólogo britânico Steven Lukes.

Neste ínterim, Walquíria manteve viva sua agenda acadêmica no âmbito da história das ideias ao voltar-se mais ao entendimento do pensamento de Gyorgy Lukács (1875-1971), intelectual marxista conhecido da autora e de sua geração. Esse retorno se cristalizou na organização, em 1996, do livro “Lukács: um galileu do século XX”, em parceria com o professor Ricardo Antunes. Em 1991, ela já havia iniciado seu trabalho de pós-doutorado como bolsista da Fapesp na Fundação Instituto Gramsci, em Roma, quando tratou de analisar o complexo arcabouço do liberalismo italiano dos anos 1920 e 1930. Seu objetivo era o de revelar algumas das contradições e potencialidades da corrente liberal-socialista emergente naquele país no período estudado, com ênfase em pensar a questão democrática na perspectiva da democratização radical do Estado de direito. Os resultados da pesquisa lhe serviram de base para defesa de sua livre-docência, em 1999, sendo publicada em livro nos anos 2000, sob o título Em busca do socialismo democrático.

O interesse na problematização da relação entre intelectuais e a política ganhou nova concretude com a organização do livro “Intelectuais e política”, publicado em 1999 junto com a professora Élide Rugai. O volume reuniu artigos de Norberto Bobbio, Salvatore Veca, Jean Paul Sartre e tantos outros. A partir desta trajetória, Walquíria, ao analisar a questão democrática no interior do debate sobre republicanismo então colocado naquele contexto, conquistou sua titularidade na Unicamp em 2006. É possível dizer, sem exageros, que este título marcou um fechamento de longo ciclo no trabalho intelectual da pesquisadora. Um momento de bifurcação de caminhos configurado tanto pelos seus interesses acadêmicos como pela conjuntura política de experiência de governos de esquerda no Brasil democrático a partir do início dos anos 2000.

A segunda metade da década de 2000 marcou uma inflexão na forma com que esta socióloga pesquisa as ideias e, acima de tudo, o Brasil. Neste contexto, que marca sua transição do departamento de Sociologia para o departamento de Ciência Política da Unicamp, Walquíria persiste pensando no país, mas agora sob o ângulo das mulheres contempladas com programas de transferência direta de renda, precisamente o “Bolsa-Família”, criado em 2003 como política de combate à fome e miséria. A história das ideias e a sociologia das ideias políticas dão lugar às vozes das mulheres bolsistas numa ousada pesquisa de campo que, em parceria com o filósofo Alessandro Pinzani (UFSC), foi levada a cabo em diversas regiões brasileiras, em especial àquelas regiões que apresentavam piores índices de miséria e pobreza – como o sertão de Alagoas e o norte de Minas Gerais. Os primeiros resultados desta empreitada têm registro no livro “Vozes do Bolsa-Família: autonomia, dinheiro e cidadania”, publicado em 2013 e indicado ao prêmio Jabuti em 2014.

Walquíria e Alessandro movimentaram as teorias da cidadania e do reconhecimento para, a partir das entrevistas, avaliar em que medida a transferência direta e sistemática de renda pelo Estado representou uma maior autonomia (no sentido kantiano do termo) por parte dessas mulheres. Porém, sem perder de vista o delicado contexto de vulnerabilidade social em que viviam. Para tal, as entrevistas foram realizadas periodicamente com as mesmas mulheres durante seis anos, no esforço geral de identificar o programa Bolsa-Família como uma política pública duradoura de cidadania. Após a publicação do livro, a pesquisa permaneceu em curso sob nova abordagem, inspirada na perspectiva teórica do sofrimento social proposta pelo filósofo francês Emmanuel Renault.

A trajetória de Walquiría Leão Rego, em resumo, é marcada pela combinação entre o estudo do pensamento e da teoria política liberal e democrática dos séculos XIX e XX e a atualização crítica dos mesmos à luz da pesquisa empírica sobre as formas práticas de superação das desigualdades econômicas produzidas e reproduzidas na periferia do sistema capitalista no século XXI. Nesse sentido, um percurso que assumiu muitas formas e caminhos, mas manteve um sentido original e compromisso bastante homogêneos: pensar a realidade, especialmente a brasileira, para identificar (e quiçá estimular) sua transformação com base nos princípios da democracia e da justiça social.

Sugestões de obras da autora:

REGO, W. D. L.; KOERNER, A.; REGO, W. G.D. L. Debates Interdisciplinares sobre Direito e Direitos Humanos Impasses, Riscos e Desafios. 1 e. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2022. v. 750. 476p .
BERCOVICI, G.; REGO, W. G.D. L.; MAQUIAVEL, N.; LIMA, M. M. B.; BATTINI, M.; WEBER, M.; MASSONETO, L. F. Cem Anos da Constituição de Weimar (1919-2019). 1. ed. Sao Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2019.

PINZANI, A.; REGO, W. G.D. L. Money,Autonomy and Citizenship: The experience of the Brazilian Bolsa Familia. 1. ed. Cham Switzerland: Springer, 2018. 140p.
REGO, W. G.D. L.; Pinzani, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. 1ª. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2013. 248p.

REGO, W. G.D. L. A Utopia Federalista: Estudo sobre o Pensamento de Tavares Bastos. 1ª. ed. Maceió: Edufal, 2002. 280p.