Vania Salles

Anete Brito Leal Ivo (UFBA)

Vania Salles foi uma socióloga brasileira dedicada às temáticas da sociologia agrária; aos estudos sobre família, gênero e pobreza e à sociologia da cultura e da vida cotidiana. Desenvolveu reconhecida carreira acadêmica de professora-investigadora no Centro de Estudios Sociológicos (CES) de El Colegio de México, por mais de trinta anos. Membro da Academia Mexicana de Ciências e professora visitante em várias instituições estrangeiras: Universidade da Florida; FLACSO (sede México) a Universidade Federal da Bahia e a Universidade de Brasília, no Brasil, e a Universidade Livre de Bruxelas, além de circular como convidada em congressos e eventos em diversos países.

Vania nasceu em Uberlândia- Minas Gerais, em 1940, e faleceu no México, em agosto de 2006. Passou a infância e a juventude em Salvador-Bahia, onde se diplomou em Letras e Literatura, pela Universidade da Bahia, em 1963. Nesse mesmo ano, ingressou na primeira turma do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade da Bahia[1]. A participação nesse curso produziu uma inflexão no seu itinerário acadêmico para a Sociologia, tanto pela iniciação à docência, em disciplinas introdutórias à Sociologia (na Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia), como pela sua participação como pesquisadora no projeto coletivo “Estrutura da propriedade e uso da terra”, coordenado pelo Instituto.

Desde sua juventude Vania sempre esteve comprometida com a luta democrática, tendo atuado em movimentos estudantis da esquerda católica – a Juventude Universitária Católica (JUC), na década de sessenta. Em 1964, casada com Severo Salles[2], transfere-se com ele, para Brasília, dando prosseguimento à sua experiência docente no ensino de disciplinas introdutórias de Sociologia, na Universidade de Brasília. O ambiente repressivo do golpe militar de 1964, no entanto, obrigou-os a deixar o Brasil, exilando-se na França, em meados de 1966. É fácil imaginar os desafios que ela enfrentou na instalação num novo país, com um filho ainda bebê- Ricardo de Almeida Salles- e compromissos de estudo e inserção no novo país. Com grande determinação e sensibilidade afetiva ela soube conciliar a sua dedicação materna com os estudos, no país de acolhimento, e, ao final do seu mestrado, em 1969, teve o seu segundo filho – Paulo de Almeida Salles.[3] Vania iniciou seus estudos em Paris, em 1966, com bolsa do governo francês, no Institut International de Récherche et Formation en vue du Développement Harmonisé (IRFED) e realizou o Mestrado em Sociologia (Diplôme d’Études Approfondies en Sciences Sociales) na École des Hautes Études em Sciences Sociales, com a dissertação: Le feodalisme dans les textes agraires de Weber et Kautsky (1969), temática que aglutinou seus interesses teóricos até o seu doutorado em Sociologia,  em 1984, na Université de Paris X (Nanterre), com a tese Paysannerie et capitalisme au Mexique: la periode de Cárdenas.

Suas primeiras pesquisas empíricas e teóricas, situam-se, portanto, no campo dos estudos agrários, tratam das organizações camponesas e do futuro do campesinato no capitalismo, problemática inscrita no debate mexicano multidisciplinar sobre o desaparecimento ou permanência do campesinato nas sociedades contemporâneas, além de pesquisar sobre as estruturas sociais regionais agrarias. Nos anos oitenta suas pesquisas evoluem para o estudo das organizações familiares e a reprodução da força de trabalho; vida cotidiana e grupos domésticos; relaciones de gênero e transformações agrárias. Nos anos 1990, aprofunda estudos sobre as diversas formas de estruturação entre família, pobreza e condição feminina e, ao final dessa década, faz uma inflexão para a Sociologia da Cultura, examinando as dimensões socioculturais das identidades sociais, religiosidades e místicas populares, as organizações vicinais, a formação de identidades e pertenças sócioterritoriais, temáticas desenvolvidas em parcerias com diversos colegas.

Suas contribuições empíricas eram indissociáveis da dimensão teórica. A teorização a permitia transitar por diferentes questões de pesquisa. Tais campos empíricos exploravam recorrências e especificidades, como uma espécie de atualização contínua e aprofundamento de preocupações teóricas de pesquisa. Nesse âmbito, interessou-se por autores clássicos, como Max Weber, Georg Simmel, Pierre Bourdieu, além do debate entre modernidade e pós-modernidade.  Explorou as relações micro e macro; reprodução social e reprodução da força de trabalho (com Orlandina Oliveira); as teorias da cultura e da vida cotidiana, entre outras contribuições. Dois anos antes do seu falecimento, fazia uma leitura sobre as contribuições teóricas de Raymond Aron.

Com uma concepção do trabalho científico coletivo ela empreendeu e coordenou inúmeros projetos, em colaboração com colega no CES e   financiamentos de prestigiosas instituições internacionais e nacionais, cujos resultados foram publicados em livros e revistas de circulação internacional, em inglês, português e espanhol. No âmbito da gestão universitária foi Coordenadora Acadêmica do Centro de Estudios Sociologicos (CES) do El Colegio de Mexico e liderou diversos projetos no Programa Interdisciplinario de Estudios sobre la Mujer-PIEM, do CES (1986 e 1988). A dimensão coletiva do seu trabalho ganhou expressão relevante à frente da direção da revista Estudios sociológicos, por dois períodos (1993-1996 e 2000-2006).

Outra característica que marcou o itinerário acadêmico de Vânia Salles foi sua generosidade em compartilhar ideias e transmiti-las de forma pedagógica, particularmente, aos seus orientandos e estudantes. Ministrou muitos cursos de pós-graduação e atuou na orientação de inúmeras teses de doutorado. Com uma capacidade agregadora e grande disponibilidade de escuta, ela abria-se à reflexão de ideias, e ajudava no exercício de resoluções e encaminhamentos acadêmicos das questões de pesquisa.

Em plena efervescência da transição democrática, no Brasil, em 1987, Vania voltou ao Brasil, com a família. Alimentava-a dois sonhos: viver a utopia da renovação democrática do Brasil (em pleno processo da Assembleia Constituinte e abertura para eleições diretas) e aprofundar vínculos de intercâmbio universitário entre as instituições brasileiras e as universidades latino-americanas, especialmente as do México, gerando oportunidades de interlocução e difusão regionais, já que a sociologia brasileira, à época, havia se afastado do debate latino-americano.

Na sua tentativa de permanecer no Brasil, no entanto, sentiu o desconforto de interromper uma consolidada carreira acadêmica, no México, onde estabelecera ricas parcerias com colegas e uma rede de amigos, além de uma ativa atuação universitária. Assim, optou por permanecer definitivamente no México e inserir-se temporariamente como pesquisadora visitante no Brasil. Permaneceu entre 1988 e 1989 no Centro de Recursos Humanos (atualmente Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, contribuindo nos debates sobre linhas de pesquisa com as quais tinha afinidade teórica e de pesquisa (os estudos agrários e pesquisas sobre família e reprodução da força de trabalho) e, no ensino, participou  do curso sobre Sociologia Agrária, que eu ministrava no Mestrado em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia da UFBA. Durante sua permanência no Brasil circulou em eventos regionais e nacionais e colaborou na Universidade de Brasília, num curso teórico sobre Max Weber, sob a responsabilidade de Maria Stela Grossi.

Visando estreitar os diálogos interuniversitários entre o México e o Brasil e, como resultado da sua permanência temporária em instituições brasileiras, ela coordenou um número da Estudios Sociologicos (v. 9, n. 25, 1991) dedicado ao tema da “Democracia no Brasil”, com a publicação de artigos de colegas brasileiros. E, do lado brasileiro, a Caderno CRH publicou, em 1991 e 1992 os artigos: “Reprodução Social e Reprodução da Força de Trabalho: reflexões teóricas para os estudos do tema” (em coautoria com Orlandina de Oliveira, n.14, 1991, traduzida e revista por Nadya Castro) e o artigo “Quando falamos em família de que família estamos falando” (n.17, 1992, trad. revista por Anete Ivo)

Vania Salles foi uma socióloga com grande inquietação intelectual, uma enorme capacidade de diálogo, colaborando com insights inspiradores na formulação de conhecimentos e um compromisso incontornável com as instituições acadêmicas. Resultado de uma trajetória marcada por diversas parcerias acadêmicas com colegas, ela soube cultivar amigos, com seu entusiasmo e sorriso acolhedor. A sua produção é marcada por várias colaborações com Orlandina de Oliveira; Marielle Pepin Lehalleur, Rodolfo Tuirán, Jose Manuel Valenzuela entre outros. Recebeu reconhecimento da comunidade acadêmica mexicana, como docente e pesquisadora de referência no sistema de ciências, além de sua circulação no âmbito regional e internacional. Suas contribuições acadêmicas estão publicadas em livros e revistas e podem ser analisadas nos depoimentos em sua homenagem, publicados m livro editado pelo Colégio de Mexico, 2007, um ano após o seu falecimento.

Sugestões de obras da autora:

OLIVEIRA, Orlandina; SALLES Vânia &. LEHALLEUR, Marielle P. (eds.), Grupos domésticos y Reproducción Cotidiana, UNAMEI, Colegio de México, México,1989.

SALLES, Vania. Cuando hablamos de familia, ¿de qué familia estamos hablando? Nueva Antropología, n. 39, pp. 53-87, 1991. [Publicada em portugués como o titulo: Quando falamos de familia, de que familia estamos falando? Caderno CRH, Salvador- Bahia, UFBA, n. 17, pp. 106-140, 1992.

OLIVEIRA, Orlandina & SALLES, Vania. Reprodução social e reprodução da força de trabalho: reflexões teóricas sobre o estudo do tema. Caderno CRH, Universidade Federal da Bahia, v.4, n.14, 1991. Publicada em español, em 2007, com o título:  Reflexiones teóricas para el estudio de la reproducción de la fuerza de trabajo. Argumentos. Estudios críticos de la sociedad, n. 96, pp. 19-43, 2007.

SALLES, Vania & TUIRÁN, R. Cambios demográficos y socioculturales: familias contemporáneas en México”, en Beatriz SCHMUKLER (coord.). Familias y relaciones de género en transformación. Cambios trascendentales en América Latina y el Caribe, EDAMEX, México, 1998. p. 83-123.

VALENZUELA, José Manuel & SALLES, Vânia, Vida Familiar y cultura contemporánea, Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, México, 1998.

Sobre a autora:

COLEGIO DE MÉXICO. Tejiendo y Entretejiendo recuerdos, homenaje a Vania Salles (1940-2006). Centro de Estudios Sociológicos, El Colegio de México, México, 2007.

OLIVEIRA, Orlandina de. Homenaje a Vania Salles. Estudios Demográficos e Urbanos. v. 22, n. 1, pp. 205 – 208, jan. 2007.

[1] Instituição criada em 1963 pelo prof. Thales de Azevedo, fechada pelo governo militar ao final da década de 1960. O curso abarcava um grande espectro temático e funcionava em regime intensivo de dedicação dos alunos. Nele circularam intelectuais brasileiros e estrangeiros de grande prestígio: Roger Bastide, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. J. Medina Echevarria, Katia Mattoso, Hélio Jaguaribe, Alain Touraine, Rodolfo Stavenhagen, Romulo Almeida, Inácio Rangel, Pierre George, entre outros visitantes.

[2] Vania Salles teve dois casamentos: o primeiro, no início da década de sessenta, com o brasileiro Severo Salles, Professor Titular do Centro de Estudios Latinoamericanos da Universidad Nacional Autonoma de Mexico – UNAM, com quem teve dois filhos: Ricardo e Paulo, que lhes deram quatro netos, dois de cada filho. O seu segundo casamento foi com médico-biólogo Gustavo Viniegra, professor da Universidad Autónoma Metropolitana – UAM do México, no início dos anos dois mil.

[3] Ricardo de Almeida Salles, seu primeiro filho, é doutor em Filosofia pela King’s College London, investigador do Instituto de Investigaciones Filosóficas da UNAM. O segundo filho, Paulo de Almeida Salles, é engenheiro e realiza atualmente carreira acadêmica no Instituto de Engenharia da UNAM.