Léa Guimarães Souki

Por Renato Barbosa Fontes (NPGAU-UFMG)

Léa Guimarães Souki aposentou-se em 2022, após um vínculo de 48 anos como professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). A trajetória de Léa Souki conciliou docência, pesquisa e gestão acadêmica, guiada por um rigor que lhe permitiu uma prática interdisciplinar capaz de dialogar com inúmeras áreas do conhecimento. Não é fácil situar esta socióloga num campo singular das Ciências Sociais, mas arriscaria dizer que, em suas produções e pesquisas, a Sociologia Política tenha sido o campo na qual Léa tenha dado sua maior contribuição, onde destacaram-se os temas da transição à democracia, política comparada, cultura política e anarquismo.

Nascida em Divinópolis (MG), mudou-se para Belo Horizonte no início da adolescência. Graduou-se em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1970 e, anos depois, em 1974, iniciava sua carreira docente na PUC-Minas Em 1986, defendeu sua dissertação intitulada “Autoritarismo em um Partido Político” no Departamento de Ciência Política (UFMG), orientada pelo Professor Fábio Wanderley Reis. Sua tese de doutoramento, intitulada “O paradigma da ‘transição que deu certo’”, foi defendida no ano de 1994, no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), sob orientação do Professor Benício Schmidt.

É no período da elaboração de sua tese que Léa inicia uma relação intelectual com a Espanha que se tornou permanente. Entre 1990 e 1992, estabeleceu-se em Madrid, onde passou por um período na Universidad Complutense, sendo a primeira professora da PUC-Minas a realizar um doutorado “sanduíche” com bolsa do CNPq. Foi aluna dos Professores Ludolfo Paramio e José Maria Maraval, duas das maiores autoridades no tema da “transição pactuada”, o que lhe permitiu aprofundar seus estudos sobre “transições políticas”, especialmente, sobre o “Pacto de Moncloa”[1]. Naquela ocasião desenvolveria seu apreço pelo método da “política comparada” que lhe acompanharia em pesquisas e nas disciplinas ministradas. Vale lembrar que, o início da década de 1990, era uma ocasião em que o Brasil atravessava seu próprio processo de transição, os primeiros anos da chamada “redemocratização”.

Após a defesa de sua tese, Léa assumiu a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação na PUC Minas procedendo uma significativa transformação na instituição que, naquela altura, contava com apenas um programa de pós-graduação. Permaneceu por nove anos como pró-reitora, de 1994 a 2003, num período crucial em que a instituição necessitava consolidar uma política de pesquisa e programas de pós graduação stricto sensu, e conduziu, por meio de incentivo constante, a entrada da comunidade acadêmica junto às agências de fomento. Tratou-se de um esforço coletivo para consolidar a posição de 10 novos programas reconhecidos pela CAPES, o fortalecimento de um fundo de pesquisa para docentes e a consolidação política da Iniciação Científica.  Ainda neste período, no final dos anos 1990, Léa tornar-se-ia “professora titular” por meio de concurso interno.

Entre os programas de pós-graduação que ajudou criar está o de Ciências Sociais, área de concentração “Cidades: Cultura, Trabalho e Políticas Públicas”, onde foi professora e orientou dezenas de pesquisas de mestrado e doutorado, sobretudo, na linha  de pesquisa  “Políticas Públicas, Participação e Poder Local”.

Coordenou e participou, também, de pesquisas no âmbito do atual Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia “Observatório das Metrópoles”, onde se sobressaíram os estudos urbanos sobre a cultura política na região metropolitana de Belo Horizonte e sobre a governança metropolitana. Sua produção intelectual refletiu-se em vários formatos, escreveu artigos para jornais impressos como o “O Tempo” e “Correio Braziliense”, além de portais da internet, como o “Jornal GGN”, mesclando análise de determinadas conjunturas políticas com uma sofisticada interpretação sociológica. Dentre seus artigos, para citar apenas um, cito “A atualidade de T.H. Marshall no estudo da cidadania no Brasil”, publicado na Revista Civitas de Porto Alegre, constantemente lido e citado em dissertações e teses. Fez parte da organização de livros, dentre eles, “Figura Paterna e Ordem Social: tutela, autoridade e legitimidade nas sociedades contemporâneas”, com autores de diferentes países, trouxe contribuições preciosas da psicanálise e da psicossociologia aproximando-as às teorias da política e da sociologia e à tradição historiográfica. No capítulo intitulado “A metamorfose do Rei”, a professora discute a tese da possível necessidade da permanência de uma instituição anterior que sirva de ponte entre o passado e o futuro nos processos de transição à democracia. Tese, cuja encarnação histórica teria se dado por meio da restauração da monarquia bourbônica, através da metamorfose e consequente proeminência da figura do príncipe Juan Carlos, cujo passado esteve subordinado de corpo e alma ao regime franquista. Os interstícios dessa metamorfose dão margem à discussão sobre a dupla lealdade e remete à tese psicanalista sobre o papel do pai na ordem social, tema básico do livro.

Provocada pelos movimentos de junho de 2013, coordenou uma pesquisa, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), sobre um possível renascimento do anarquismo nos movimentos sociais urbanos em Belo Horizonte. Estimulada, Léa retornaria à Espanha, em 2016, para realizar seus estudos pós-doutorais no Institut di Govern y Politiques Publiques (IGOP), sob supervisão do Professor Joan Subirats. No IGOP, procurou identificar o que se havia preservado do anarquismo em Barcelona[2] e deparou-se como uma cultura residual nos ateneus e no cotidiano dos bairros, uma presença da cultura libertária marcada por experiências pregressas de cooperativas e assembleias, assim como uma repulsa às estruturas hierarquizadas de partidos políticos.

Correndo o risco de deixar de fora significativos momentos da carreira profissional de Léa Souki que não cabem ou não se encaixam nesta bionota, cumpre este autor, como ex-aluno e ex-orientando, o papel de enfatizar que, provavelmente, para seus leitores, ex-alunos e colegas de trabalho, sua maior contribuição foi a complexa tarefa de estar atenta aos detalhes e particularidades. Socióloga permanentemente e não apenas como ofício, Léa, em todo tempo, procura sustentar suas reflexões em experiências históricas de êxito ou mesmo fracasso, no mundo da cultura, das artes, das revoluções e dos movimentos sociais, como uma sensível e sofisticada observação sobre as determinações e sobredeterminações que atravessaram estes fatos: paixões, medos, conflitos silenciosos e contradições, captados por perspicácia e traduzidos por Léa.

Aposentada da PUC Minas, o ofício sociológico permanece ativo. Léa, para nossa fortuna, segue contribuindo como pesquisadora voluntária em pesquisas realizadas no âmbito do Laboratório de Estudos Urbanos e Metropolitanos da Escola de Arquitetura da UFMG e no INCT Observatório das Metrópoles.

Sugestões de obras da autora:

ARAUJO, José N. G.; SOUKI, Léa. G. FARIA, Carlos A. P.. Figura Paterna e Ordem Social. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2001.

SOUKI, Léa. G.. A atualidade de T.H. Marshall no estudo da cidadania no Brasil. Civitas (Porto Alegre), v. 6, p. 39/58, 2006.

SOUKI, Léa. G.. A convivência de diferentes culturas políticas no espaço metropolitano. Sociedade e Estado (UnB. Impresso), v. 27, p. 245-262, 2012.

SOUKI, Léa. G.. Barcelona invisível, a tradição libertária no espaço urbano. Revista Indisciplinar, v. 5, p. 164-184, 2019.

SOUKI, Léa G.. Barcelona: a persistência de uma cultura libertária. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 63, p. 89-108, 2018

[1] Consenso entre amplas forças políticas da Espanha que facilitou a transição entre o regime franquista e a democracia em 27 de outubro de 1977, gerando a crença de uma transição “exemplar” para parte das elites da América Latina.

[2] Única experiência histórica onde o anarquismo foi governo entre os anos de 1936 a maio de 1937 na Catalunha e durante o governo da II República Espanhola com a presença de ministros vindos da Confederação Nacional do Trabalho.