Santuza Cambraia Naves

Por André Botelho (UFRJ)

Alegria, alegria! Santuza Cambraia Naves integrou uma geração brilhante de cientistas sociais atuantes no Rio de Janeiro entre fins dos anos de 1980 e os anos 2000. Fruto de formação rigorosa que, em geral combinava antropologia e sociologia, a primeira no PPGAS do Museu Nacional, onde Santuza estudou com Gilberto Velho, e depois no antigo IUPERJ, orientada por Ricardo Bezaquen de Araújo. Talvez o diálogo interdisciplinar – aliás, tão característico de seus orientadores – ajude a entender a sensibilidade aguçada com que ela e parte de sua geração souberam interpretar as transformações sociais, culturais e políticas em curso na sociedade brasileira e na cidade do Rio de Janeiro dos anos 1990, mas também vivê-las intensamente. Uma geração que sabia “viver com religiosidade a vida”, para falar com Mário de Andrade, autor central da trajetória de pesquisa de Santuza. Viver a vida com autenticidade, generosidade, boemia e graça.

Mineira de Boa Esperança, cidade onde nasceu em 1953, que nos deu também o enorme pianista Nelson Freire, Santuza converteu-se do Direito à Sociologia pelas mãos de Barbara Freitag e de Regina Morel, na Universidade de Brasília, a UnB. Em 1979 veio para o Rio de Janeiro, cidade em cuja cena acadêmica e também cultural passaria a atuar e na qual acabou deixando sua marca inconfundível. A marca de Santuza na sociologia da cultura e em especial nos estudos do modernismo musical e da Musica Popular Brasileira estão, assim, muito entranhadas na experiência de sua geração, de que ela soube se fazer intérprete arguta e sensível. Imprimiu aos seus trabalhos o mesmo charme e gestual de mãos que tinha, e sua voz lindíssima com um leve pigarro ao fundo já a havia levado a experiências como cantora no Rio dos anos 1980. Eventualmente “ilustrava” suas exposições acadêmicas com trechos cantados à capela. Jamais pude esquecer-me dela cantando “Canções da cordialidade” (de Villa-Lobos e Manuel Bandeira) na casa de Lucia Lippi Oliveira. Como poderia? Ao morrer em 2012, com apenas 59 anos de idade, Santuza deixou uma carreira sólida e respeitada na PUC-Rio, o poeta Paulo Henriques Britto viúvo, dois filhos e muitos amigos órfãos. E uma obra pioneira e referencial sobre modernismo e MPB, que comentarei rapidamente agora.

Objeto não identificado – a trajetória de Caetano Veloso, dissertação de mestrado defendida em 1988 no Museu Nacional sob a orientação de Gilberto Velho mais do que um marco, de alguma forma sela a trajetória intelectual de Santuza Cambraia Naves. Não apenas o astro pop, a fatura da MPB e suas performances corporais marcariam o trabalho posterior de Santuza, mas o próprio papel da canção na modelagem da cultura contemporânea brasileira. Do ponto de vista teórico, estávamos no auge do debate sobre indústria cultural, em especial, nas vertentes da chamada Escola de Frankfurt, a dialética negativa de Theodor Adorno – especulo se não terá sido por aí que Barbara Freitag e Regina Morel capturaram a atenção de Santuza na graduação. Sem ter simplesmente abandonado os problemas da indústria cultural tais como postos por esta vertente da sociologia da cultura, então absolutamente hegemônica – com o perdão da aporia -, Santuza foi tensionando e temperando essa visão com suas próprias experiências e com uma bibliografia antropológica, especialmente ligada à antropologia urbana, que lhe permitiu valorizar os sentidos dados pelos atores sociais aos produtos da indústria cultural que passam a ser vistos como práticas sociais cheias de simbolismos. Musicalidades, corporalidades, performances construindo o cotidiano brasileiro. Artistas como produtores, intérpretes e críticos da cultura brasileira. A partir daí foi divisando novos sentidos para os fenômenos pesquisados, abrindo caminhos novos com delicadeza num campo de debates então às vezes bastante rude.

O violão azul – modernismo e música popular, publicado como livro em 1998 foi originalmente sua tese de doutoramento defendida no ano anterior. Já me perguntei em outro texto sobre o que seria das ciências sociais cariocas sem a espécie de anistia que permitiu que jovens estudantes brilhantes do antigo IUPERJ defendessem suas teses – atrasadas pelas então novas regras da CAPES. Para lembrar apenas de alguns colegas, também defenderam teses em 1997 no Iuperj: Isabel Lustosa, Marcos Chor Maio, Maria Alice Rezende de Carvalho e Nísia Trindade Lima. O trabalho de Santuza teve acolhimento imediato, ajudando a arejar o campo de estudos sobre modernismo e música popular. Mostra a autora como a música popular concretiza um determinado ideal modernista que valoriza o despojamento e rompe com as tradições ligadas a concepções elitistas de erudição. Compositores como Noel Rosa e Lamartine Babo levaram às últimas consequências o culto da simplicidade, adotando um tom mais coloquial e desenvolvendo uma estética lírica que recorre à paródia e à ironia. Estes contam-se, sem dúvida, entre os princípios e as práticas estéticas modernistas mais impactantes no conjunto da cultura brasileira, o que Santuza mostra com grande habilidade analisando as estruturas musicais, arranjos orquestrais e os estilos de interpretação do período modernista. E, talvez, o mais importante e longevo numa trajetória tortuosa que nos liga e nos separa nesses 100 anos de Semana de Arte Moderna, Santuza mostra como, frequentemente, a linguagem associada ao cotidiano da gente simples conciliava-se com o sublime na cultura brasileira.

Sem nunca ter perdido o vezo da sua relevante descoberta, a agenda de pesquisas de Santuza Cambraia Naves se ampliou e complexificou como é de se esperar numa trajetória acadêmica exitosa, como a que teve sobretudo no Departamento de Sociologia da PUC-Rio, mas também no Centro de Estudos Sociais Aplicados – CESAP – da Universidade Candido Mendes, que coordenou com sua parceira de pesquisa e amiga Maria Isabel Mendes de Almeida, falecida em 2022. Entre seus principais trabalhos posteriores destaco: Canção popular no Brasil (2010), Velô (2009), Leituras sobre música popular: reflexões sobre sonoridades e cultura (2008), Por que não? Rupturas e continuidades da contracultura (2007), A MPB em discussão – entrevistas (2006), Do samba-canção à Tropicália (2003) e Da bossa nova à tropicália (2001).
Professora do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, desde 1992, Santuza Naves construiu e compartilhou a partir de suas pesquisas e inquietações intelectuais e estéticas uma importante linha de pesquisa sobre música popular e sociedade no Brasil. Na PUC formou muitos alunos na graduação e também na pós-graduação que se beneficiaram das e alimentaram as discussões que ela vinha ensejando em suas publicações referenciais na área. Sempre estive atento não apenas a estas, mas também às disciplinas que Santuza ministrava para recomendar aos meus próprios orientandos que as cursassem. Guardei uma das suas ementas, a do curso “Pensamento musical no Brasil: Mário de Andrade” ministrada no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais no segundo semestre de 2006. O objetivo da disciplina – lê-se na ementa – era “pensar a categoria de ‘intelectual’ encarnado por Mário de Andrade ao longo de sua trajetória, que compreende pelo menos três fases: a inicial, de envolvimento com o movimento modernista, em que se destaca o elogio da polifonia; a fase empenhada na construção nacional, marcada pela retórica da unificação; e a fase final (dos últimos anos de sua vida), marcada pela revolta e pela melancolia, em que demonstra simpatia pelo socialismo”. Na bibliografia, pioneiros na área como Elizabeth Travassos e seu insubstituível Os mandarins milagrosos: arte e etnografia em Mário de Andrade e Béla Bartók, de 1997; Telê Porto Ancona Lopes com Mário de Andrade: ramais e caminhos, de 1972; O tupi e o alaúde, de 1979, de Gilda de Mello e Souza e, entre outros, “Permanência do discurso da tradição no modernismo”, de 1987, de Silviano Santiago. Uma espécie de melancolia me assola ao imaginar perdidas para nós essas aulas (e tantas outras), já que mesmo quando nossas disciplinas são relacionadas aos nossos temas de pesquisas nem tudo se consegue ou pode prender no papel ou na tela do computador. Imagine, então, no caso de Santuza que, além de conhecimentos peritos precisos, dominava como poucos a consciência corporal com sua postura charmosa e bailado de mãos característico e a compreensão profunda, talvez, decorrente também da sensibilidade artística que sempre a alimentou, de que o que acontece em sala de aula, com a interação performática entre professor e estudantes, é sempre único. Como num espetáculo, o que acontece entre o artista e seu público. Que inveja dos seus alunos e das suas alunas, suas aulas jamais estarão perdidas para eles e elas.

“O Brasil em uníssono” estava sendo escrito quando a morte alcançou Santuza. O livro foi publicado na coleção Modernismo + 90 que antecipou o balanço da Semana de Arte Moderna de 1922 e, sob a batuta de Eduardo Jardim de Moraes, reúne grandes especialistas, também eles interlocutores e amigos de Santuza, como Helena Bomeny e Frederico Coelho, além do próprio Eduardo, por exemplo. Não é pequeno o desafio dos ensaios reunidos no livro, escritos durante a última década de vida da autora: entender como a música uniu o Brasil! Dois temas principais voltam à tona renovados: as concepções de música proposta por Mário de Andrade e realizada por Villa-Lobos e a relação da música popular brasileira com a estética musical Modernista. Ao fim e ao cabo, mostra Santuza como músicos como Caetano Veloso e Chico Buarque atualizaram, nos anos 1960, as propostas defendidas por Mário de Andrade e Oswald de Andrade, nos anos 1920. Saímos da leitura convencidos sobre o papel da música como traço de união cultural e intelectual da sociedade brasileira – diversa e desigual. Um paradoxo?

Como observou Dulce Pandolfi num emocionante necrológio da amiga: “Cientista social também por vocação e com valores, Santuza fez suas escolhas na arte e na vida. Entre tais escolhas estavam alguns artistas que, segundo suas próprias palavras, “por meio de um artesanato musical acima do seu tempo, se tornaram protagonistas importantes no cenário cultural a partir dos anos 60”. Segundo ela, “Chico e Caetano se notabilizaram não exatamente pelo teor de suas letras ou de seus discursos, mas pela magistralidade de suas canções”. Plagiando um pouco a própria Santuza, eu diria que ela se notabilizou não só pela qualidade de seus escritos e de suas aulas, mas, sobretudo, pela magistralidade da sua vida, ou seja, pelo “conjunto da obra”. Santuza soube viver a sua vida com “religiosidade” no sentido dado por Mário de Andrade, nosso autor-fetiche comum sobre o qual tanto conversamos; e assim vive na melhor sociologia da cultura brasileira. Alegria, alegria!

Referências:
Botelho, André. “Sobre as teses do IUPERJ: ciências sociais e construção democrática no Brasil contemporâneo” In: Rubem Barboza Filho; Fernando Perlatto. (Org.). Uma sociologia indignada: diálogos com Luiz Werneck Vianna. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2012.

Sugestões de obras da autora:

NAVES, Santuza Cambraia. Canção popular no Brasil . Rio, Civilização Brasileira, 2010

NAVES, Santuza Cambraia Velô. Leituras sobre música popular: reflexões sobre sonoridades e cultura. Rio, Língua Geral, 2009.

NAVES, Santuza Cambraia Por que não? Rupturas e continuidades da contracultura (2007),

NAVES, Santuza Cambraia. A MPB em discussão – entrevistas. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006

NAVES, Santuza Cambraia. Do samba-canção à Tropicália. Rio, Zahar Editores,2003

NAVES, Santuza Cambraia. Da bossa nova à tropicália. Rio, Zahar Editores, 2001

Sobre a autora:

Pandolfi, Dulce Chaves. “Santuza Cambraia Naves (1952-2012) – In memoriam”. Estud. hist. (Rio J.) 25 (49), Jun 2012.