Por Marcos Chor Maio (FIOCRUZ)
A socióloga e psicanalista negra Virgínia Leone Bicudo foi uma pioneira nos estudos sobre o racismo na sociedade brasileira nos primórdios da institucionalização universitária das ciências sociais no país. Realizou pesquisas sobre as relações raciais na cidade de São Paulo, a partir das interfaces entre sociologia, antropologia, psicologia social e psicanálise, sendo ainda uma das protagonistas na produção intelectual, atuação profissional e difusão da psicanálise.
Virgínia Bicudo nasceu na cidade de São Paulo em 1910. Filha de Giovanna Leone, imigrante italiana pobre da região da Sicilia e de Teófilo Julio Bicudo, descendente de escravizado e afilhado de Bento Augusto de Almeida Bicudo, fazendeiro de café em Campinas, senador do Partido Republicano Paulista (PRP) e fundador do jornal O Estado de São Paulo. Teófilo estudou no tradicional Ginásio do Estado e tentou ingressar no curso de medicina, sendo impedido por ser negro. Por influência política do Coronel Bicudo, tornou-se funcionário dos Correios e Telégrafos.
Virginia Bicudo estudou na Escola do Brás, no Ginásio do Estado e concluiu o curso secundário na tradicional Escola Normal Caetano de Campos em 1930. No ano de 1932, ingressou no Curso de Educadores Sanitários do Instituto de Higiene de São Paulo. Sua trajetória indica a inserção gradativa de mulheres oriundas da classe média baixa no campo profissional (professoras, enfermeiras, educadoras sanitárias) em meio ao processo de urbanização e industrialização da cidade de São Paulo.
No ano de 1936, Bicudo ingressou na Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), ampliando sua visão sociológica inicialmente desenvolvida no âmbito da educação sanitária, na estreita relação entre saúde, higiene infantil e condições socioeconômicas. Dois anos depois, bacharelou-se em Ciências Sociais e Políticas, sendo a única mulher formada numa turma de oito alunos. Nesse intervalo, ela se aproximou da psicanálise através do médico Durval Marcondes, fundador do Serviço de Higiene Mental Escolar (SHME). Marcondes intermediou o contato da socióloga com a sua primeira analista, a judia-alemã Adelheid Koch, refugiada do nazismo. Virginia tornou-se visitadora psiquiátrica do SHME e, ao lado de Marcondes, ministrou as disciplinas Higiene Mental e Psicanálise na ELSP.
Em 1942, Bicudo ingressou ao lado de Oracy Nogueira e Gioconda Mussolini, na primeira turma da recém-criada Divisão de Estudos Pós-graduados da ELSP, coordenada por Donald Pierson (1900-1995). Sob a orientação do sociólogo estadunidense, autor de Brancos e Pretos na Bahia (1945), a dissertação de Virginia versou sobre as atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, inspirada na tradição da chamada Escola Sociológica de Chicago que valoriza a observação direta, os depoimentos, o contato efetivo com o grupo analisado, a sociabilidade urbana e a perspectiva interdisciplinar. Seu estudo combina a análise sociológica da estrutura de classes e os aspectos psicossoais (atitudes) e psicanalíticos (conceito de transferência/rapport, introjeção, complexo de inferioridade). Da literatura abordada em matéria de relações raciais, Virginia se inspira em Robert Park, Donald Pierson, Ewerett Stonequist, Ellsworth Faris, Oracy Nogueira e Gilberto Freyre.
A dissertação intitulada Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo, desenvolvida entre 1941 e 1944, envolveu entrevistas com 30 pessoas, sendo 11 de famílias contactadas através da Clínica de Orientação Infantil da Seção de Higiene Escolar sob sua coordenação. Elegeu relatos de pais de alunos de escolas públicas de bairros populares e de classe média que frequentavam a instituição. Entrevistou também ex-militantes da Frente Negra Brasileira (FNB), organização política fundada em 1931 e colocada na ilegalidade pelo governo estadonovista e pesquisou o jornal Voz da Raça da FNB, a fim de coligir informações sobre o seu programa, objetivos e as opiniões de seus membros em face de suas condições de vida e do racismo.
Virginia afirma que, na realização das entrevistas, esteve atenta à interação entre entrevistador e entrevistado. Era importante tanto controlar o viés na condução da entrevista e na análise dos dados quanto estabelecer, na chave psicanalítica, um rapport, uma “transferência positiva”, em suas palavras como visitadora psiquiátrica, uma relação de confiança, de valorização das “condições psicoafetivas” nas quais o entrevistado pudesse comunicar suas atitudes raciais, mesmo aquelas em geral “intimamente ocultas por censuras sociais, medos ou outros motivos”. É muito evidente nas entrevistas realizadas por Virgínia a confiança, intensidade, empatia, a capacidade da pesquisadora deixar seus entrevistados à vontade mesmo em situações muito sensíveis, delicadas. Ela revela ainda com base em suas entrevistas a sua condição de negra.
Em seu estudo, cor e classe foram as variáveis utilizadas para definir os grupos sociorraciais. Dentre os principais achados, Virgínia identificou entre os negros de menor poder aquisitivo, atitudes de maior rejeição na interação com os próprios negros e mulatos quando comparados aos brancos. Tais atitudes seriam provocadas pelo sentimento de inferioridade dos negros, suscitado pelo grupo dominante. Entre os negros das camadas médias, observou que, a despeito da ascensão profissional e conquista do diploma de nível superior, eles continuavam a sofrer com as barreiras e os constrangimentos no meio social branco, provocando assim a consciência de cor e a descrença numa possível solidariedade entre brancos e negros. O grupo composto por mulatos das camadas populares, por sua vez, revelou consciência de cor mais acentuada que os pretos do mesmo estrato social, pois manifestavam atitudes de evitação do conflito com os brancos, receosos de serem considerados negros. Já os mulatos das classes médias demonstravam sentimento de inferioridade e ansiavam pelo reconhecimento como brancos por perceberem que a cor era uma barreira à ascensão social. A análise de Virgínia sobre as atitudes raciais de pretos e mulatos revela a importância da variável cor na produção das desigualdades sociais em contexto intelectual no qual prevalecia a máxima de que o preconceito de classe seria reinante na sociedade brasileira.
O estudo pioneiro de Virgínia Bicudo sobre a Frente Negra Brasileira (FNB), diz respeito à mobilização dos estratos sociais médios que creditavam à “barreira de cor” as condições adversas vividas pelos negros. Por meio da educação, do trabalho, da valorização profissional e da ação política, os negros poderiam ser reconhecidos em seus direitos pelo grupo branco dominante. Contudo, Bicudo concluiu que quanto mais o negro ascende social e economicamente, maior é a possibilidade de ocorrer consciência racial e tensão racial.
Desse modo, Virgínia assume visão distinta de Pierson quanto à prevalência do preconceito de classe. Argumenta que os esforços de pretos e mulatos pela conquista de novo status social, mediante investimentos em educação e formação profissional, não levam à eliminação, segundo as suas palavras, “das distâncias sociais na linha de cor”, devido à persistência do preconceito de cor. O enfoque de Bicudo, centrado em mecanismos de defesa subjacentes ao ajustamento psicossocial de negros e mulatos à situação racial, como defesa, introjeção, identificação, sugere a presença de uma perspectiva psicanalítica em seu trabalho ao lado de uma abordagem de cunho sociológico.
Em 1945, Virginia conheceu o psicólogo social Otto Klineberg, da Columbia University, que chegara dos EUA em 1945 com a missão a um só tempo de trazer a experiência norte-americana no campo da psicologia social para o Brasil, e de criar o Departamento de Psicologia da USP. Bicudo assistiu ao “Seminário de Psicologia Social” oferecido por Klineberg na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP, em 1946. Foi ainda convidada a participar do livro Psicologia Moderna, organizado pelo psicólogo canadense, durante a estada de Klineberg no Brasil entre 1945 e 1947.
No final dos anos 1940, a partir de uma parceria entre ELSP e o SESI, Bicudo envereda pelo mundo do trabalho participando de uma pesquisa sobre as relações entre as atividades dos mestres de indústrias e seus subordinados, e as relações psicossociais em duas fábricas. Pôde assim evidenciar que as más condições de trabalho acarretavam danos à saúde física e psíquica dos mestres (fadiga, irritação e descontentamento); sentimentos como agressividade, ansiedade e hostilidade, tinham sua origem em frustrações infantis associadas à pobreza, agressividade e alcoolismo.
No início dos anos 1950, Virgínia foi convidada a integrar a equipe de pesquisadores do “Projeto Unesco de Relações Raciais” por indicação de Otto Klineberg, reunindo Oracy Nogueira, Florestan Fernandes, Roger Bastide, Aniela Ginsberg, Luiz de Aguiar Costa Pinto, Rene Ribeiro, entre outros, no contexto da definição de uma agenda antirracista, sob o impacto do nazismo, da persistência do racismo e do processo de descolonização africano e asiático. O Brasil era considerado um contra-exemplo em matéria de racismo, em perspectiva comparada com a experiência internacional, notadamente os EUA e a África do Sul do pós-2ª Guerra.
No projeto Unesco, Virgínia Bicudo expandiu o argumento da sua dissertação ao eleger as atitudes raciais na vida escolar com base em amplo estudo com alunos do curso primário de escolas públicas no município de São Paulo. O estudo intitulado Atitudes dos Alunos dos Grupos Escolares em relação com a Cor dos seus Colegas teve como objetivo a observação dos sentimentos e dos mecanismos psíquicos de defesa expressos nas atitudes associadas a cor dos estudantes, além de evidenciar o papel da família no desenvolvimento daquelas atitudes. Incluiu entrevistas com familiares de crianças e adolescentes das camadas populares e médias, compostas por uma maioria de brancos e uma minoria de negros, mulatos e japoneses. Um questionário foi utilizado para aferir as atitudes de rejeição ou de intimidade entre os alunos associando-as à cor da pele.
Quanto às atitudes de rejeição, o critério racial só apareceu nitidamente num número reduzido de respostas que mencionavam explicitamente atributos negativos em relação ao colega negro como “mau aluno” e “mau caráter”. A maioria do alunado branco se manifestou de forma velada em relação aos negros, a saber: “há bons e maus entre brancos e pretos”, “o que faz as pessoas diferentes é a educação e a instrução”. O uso dos estereótipos raciais indica, segundo Bicudo, a necessidade de “justificar-se e de aliviar-se dos sentimentos de culpa, que acompanham os sentimentos hostis ligados à discriminação”.
Em relação aos estudos de caso, Bicudo concebe que a autoestima do negro tornava-se baixa em função do comportamento dos outros, que lhe transmitia uma imagem negativa de si próprio. Ao mesmo tempo, o negro frequentemente era obrigado a recalcar as hostilidades provenientes do meio social. Como num círculo vicioso, o comportamento agressivo ou negligente de alguns indivíduos de cor era tomado como confirmação das qualidades negativas intrínsecas dos estereótipos que os outros lhes atribuíam, o que reforçava os sentimentos hostis. O desprezo e o ódio contra si mesmos influíam na desorganização do grupo familiar de negros e mulatos.
Bicudo aproxima o estudo sócio-psicológico das atitudes raciais do projeto Unesco de uma visada psicanalítica, atenta aos mecanismos psíquicos em jogo na interação social entre brancos, negros e mulatos, como o recalcamento, a introjeção e a racionalização. O recurso à psicanálise lhe permite captar tensões subjacentes às relações raciais que não vêm necessariamente à tona nas opiniões expressas pelos indivíduos pesquisados, pais e alunos. Neste sentido, observa que o estabelecimento de uma suposta relação de harmonia entre brancos, mulatos e negros dependeria em grande medida do recalcamento dos sentimentos dos brancos em relação aos grupos de minoria, o que torna os brancos auto-referentes em suas escolhas de preferência e rejeição. Por seu turno, a postura ambivalente do negro em relação ao branco, objeto a um só tempo de seu amor e ressentimento, contribui para a “inibição da consciência grupal” e para a “idealização do branco”.
A participação de Bicudo no “projeto Unesco” contribuiu para a produção de um conjunto de dados e análises sistematizadas sobre o preconceito e a discriminação racial no Brasil. Seus achados sociológicos interpelaram visões tradicionais que concebiam a existência de harmonia racial e interpretavam o preconceito de cor como subsumido ao de classe. Com esta pesquisa, ela encerrava seu ciclo de estudos sobre o racismo no Brasil.
O envolvimento de Bicudo com o ciclo de pesquisas da UNESCO ocorreu simultaneamente às suas atividades na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, na ELSP e no Serviço de Higiene Mental; sobretudo na ampliação de suas iniciativas na profissionalização da psicanálise no Brasil. Foi professora-assistente da cadeira de Higiene Mental da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo e do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da USP. Em 1955, Bicudo viajou a Londres para aprofundar seus conhecimentos psicanalíticos. Freqüentou cursos no Instituto de Psicanálise da Sociedade Britânica e se especializou em psicanálise da criança na Tavistock Clinic, sob a supervisão de Esther Bick e estabeleceu diversos contatos com proeminentes psicanalistas como Melanie Klein, Wilfred Bion e Frank Philips, entre outros. Em 1956, foi lançado em São Paulo o livro Nosso Mundo Mental, organizado a partir do programa da rádio Excelsior, apresentado por Virginia e de sua coluna no jornal Folha da Manhã. Trata-se de uma obra de difusão científica utilizando meios de comunicação de massa.
Na década de 1960, de volta ao Brasil, após cinco anos de estudos na Inglaterra, Virgínia Bicudo tornou-se uma institution-builder no campo da psicanálise, professora e diretora do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de São Paulo, criando ainda o Jornal de Psicanálise. Nos anos 1970, dando continuidade a seus esforços em prol da institucionalização da psicanálise no país, fundou a Sociedade de Psicanálise de Brasilia (SPB) e fundou a Revista de Estudos Psicodinâmicos ALTER. Em 1976, iniciou o curso de Formação de Analistas de Crianças da SPB. No decorrer das décadas de 1980 e 1990, continuou a participar de conferências, jornadas, encontros e elaborando artigos científicos. Faleceu no ano de 2003.
Educadora sanitária, visitadora psiquiátrica, cientista social, professora universitária, psicanalista, divulgadora científica, protagonista de diversas iniciativas no plano da institucionalização da psicanálise no Brasil, eis o mundo diverso em que Virgínia transitou.
Sugestões de obras da autora:
BICUDO, Virgínia Leone. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (Edição organizada por Marcos Chor Maio). São Paulo, Editora Sociologia e Política, 2010 [1945].
BICUDO, Virgínia Leone. Nosso mundo mental. São Paulo, Instituição Brasileira de Difusão Cultural, 1956.
BICUDO, Virgínia Leone. Atitudes dos Alunos dos Grupos Escolares em relação com a Cor dos seus Colegas. In: BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. São Paulo: Anhembi, 1955. p. 227–310.
BICUDO, Virgínia Leone. Contribuição ao estudo das condições de trabalho e
da personalidade de mestres de indústria em São Paulo. Sociologia, v. XI, n. 2 e 3, vol. XI, nº. 2 e 3, 1949, p. 223-252 e 381-399
BICUDO, Virginia Leone. “Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo”. Sociologia, vol. IX, nº 3, pp. 196-219, 1947.
Sobre a autora:
ABRÃO, Jorge Luís Ferreira. Virgínia Leone Bicudo: a trajetória de uma psicanalista brasileira. São Paulo: Arte & Ciência, 2010.
GOMES, Janaina Damaceno. Os Segredos de Virgínia: estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). 166 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
Maio, Marcos Chor. Educação sanitária, estudos de atitudes raciais e psicanálise na trajetória de Virgínia Leone Bicudo. Cadernos Pagu (35), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2010, pp. 309-355.