Vera Telles

Por Daniel Hirata(UFF)

V

era da Silva Telles, filha de Sophia Cardoso de Almeida e Jayme Augusto Penteado da Silva Telles, nasceu no dia 10 de julho de 1951, em São Paulo. Estudou no colégio Sion até 1969, ingressando no ano seguinte na graduação em Ciências Sociais da Universidade de São Paulo.

Em 1972, ainda no início dos seus estudos superiores, começa a atuar na educação popular em uma comunidade eclesial de base localizada na paróquia da Vila Remo, zona sul de São Paulo. Alguns anos mais tarde, esta atuação a conduziria ao efervescente caldo do movimento sindical do ABC, ator coletivo que naquele momento galvanizava uma miríade de ações, lugares e organizações estruturadas ao longo da década de 1970. Como a carreira acadêmica de Vera Telles é inseparável dos dilemas e mobilizações políticas do Brasil, nesta fase inicial tratava-se de atuar e entender o percurso dos “anos de chumbo da ditadura militar” em direção às grandes mobilizações populares, expressas na emergência dos então “novos” movimentos sociais.

Neste interim, em 1984 defende uma dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo intitulada “Autoritarismo e práticas instituintes: movimentos sociais nos anos 70”. Seu orientador foi Lúcio Kowarick, com quem trabalhou diretamente em diferentes pesquisas entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, no âmbito do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), e com quem manteve diálogo estreito durante toda a sua trajetória. Neste mesmo período, também relevante, foi a interlocução que estabeleceu com Eder Sader e Maria Célia Paoli, esta última sua futura orientadora de doutorado. Em parceria com esses dois pesquisadores, realizou um importante levantamento sobre a literatura da classe trabalhadora paulista, resultando em artigos bastante influentes que articulavam o debate sobre as classes populares, a questão social e a pobreza.

No início dos anos 1990, Vera Telles passa a atuar simultaneamente na diretoria do Instituto Pólis, a convite de Silvio Caccia Bava, e como professora de sociologia da Universidade de São Paulo. Estas duas experiências, de reflexão e de ação, estarão no coração de sua tese de doutorado, defendida em 1992 junto ao PPGS/USP sob o título “Cidadania inexistente, incivilidade e pobreza: um estudo sobre trabalhadores urbanos em São Paulo”. A tese ensejou a publicação de dois livros, publicados em momentos distintos, que revelam a continuidade de seus interesses de pesquisas sobre esses temas: o primeiro livro, “Direitos Sociais, afinal do que se trata?”, veio a público em 1999; o segundo, “Pobreza e Cidadania”, em 2001. Este último livro pode ser considerado o ponto de elaboração e de síntese mais bem acabado deste primeiro período de sua trajetória.

Um segundo período do percurso intelectual de Vera Telles inicia-se em 1993, quando junto com Maria Célia Paoli e outros pesquisadores fundou o Núcleo de Estudos dos Direitos da Cidadania (NEDIC), atual Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC). Neste grupo, e já sob a centralidade intelectual de Francisco de Oliveira, foram travadas ao longo dos anos 1990 intensas e profícuas discussões ao redor da possibilidade da ampliação dos direitos no bojo do desmonte do Estado e da economia brasileira. Tratava-se de um momento radicalmente distinto dos anos 1970/80 e, portanto, parecia imperativo à Vera Telles deslocar os termos da compreensão política e societária, ou seja, construir categorias analíticas mais alinhadas com o grande basculamento do período. A preocupação e cuidado de Vera Telles apontava para os próprios termos do debate público e acadêmico, caracterizados por ela como fragmentários e insuficientes para o entendimento dos novos processos em curso.

Esta preocupação, contudo, não se resolveria apenas teoricamente, mas sobretudo alimentada através da pesquisa empírica e em profundidade. Nesta direção, entre os anos de 1999 e 2000 a trajetória de Vera Telles teve uma guinada prospectiva cujo ponto inicial foi seu pós-doutoramento na École de Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS, França), quando estabelece uma importante rede de interlocução com diversos pesquisadores franceses. Na interface que sempre caracterizou seu trabalho, entre a sociologia urbana e a sociologia do trabalho, cabe destacar parcerias em diferentes projetos de cooperação científica com Daniel Cefai, Robert Cabanes e Angelina Peralva, com os quais estabeleceu vínculos duradouros de pesquisa para a análise do mundo contemporâneo. No âmbito dessa cooperação franco-brasileira, foi professora convidada na Maison de Sciences de L’Homme Ange Guepin entre 2006-2007; no departamento de sociologia da Universitè de Toulouse-Le Mirail entre 2010-2011; na Universitè de Paris 8 em 2014 e no Institut d’Urbanisme de Grenoble, Universitè de Pierre Mendes, em 2015.
Os temas deste período foram desenvolvidos com base em pesquisas realizadas durante toda a década de 2000, tendo como eixo norteadores a chamada reestruturação produtiva, as reconfigurações urbanas e as contradições que reorganizavam o campo de atuação de movimentos sociais, ONGs e partidos políticos.
Por mais de uma década, o trabalho de pesquisa foi realizado através de convênios franco-brasileiros que, além de contribuir com a formação de uma nova geração de pesquisadores brasileiros, resultou na publicação do livro “Nas tramas da cidade”, em 2006. Este livro, escrito de forma coletiva por toda a equipe integrante do projeto e organizado por Vera Telles e Robert Cabanes, teve por base uma pesquisa qualitativa, longitudinal e em profundidade com mais de 200 famílias em oito bairros das zonas sul e leste da cidade de São Paulo.

Ao longo dos anos 2000, uma série de temas correlatos aqueles que já estruturavam a formulação inicial desses projetos passaram a interessar e se impor a Vera Telles, abrindo um novo leque de questões de pesquisa. No centro estava o entendimento de diferentes e sobrepostas camadas da história urbana, que articulavam uma trama expansiva das economias informais e ilegais e da produção das ordens locais inscritas nos agenciamentos concretos da vida cotidiana. Neste diapasão, entravam em cena práticas de produção de uma ordem social atravessada pela violência, em ressonância com as dinâmicas do capitalismo contemporâneo e com os jogos de poder situados entre a legalidade e a ilegalidade. No bojo destas questões, Vera Telles produziu uma extensa discussão acerca dos chamados ilegalismos urbanos, trazendo perspectivas inovadoras e influentes para a abordagem de diversos temas clássicos. O coroamento deste momento foi a realização de sua livre-docência, publicada em 2011 sob o título “A cidade nas fronteiras do Legal e Ilegal”.

O período subsequente foi de intenso trabalho comparativo dos principais resultados obtidos ao longo dos anos 2000 e 2010 com outras cidades do Norte e do Sul global, apontando a transversalidade dos processos pesquisados até então em São Paulo. Nesta direção, cabe destacar duas obras: em 2012, publica-se “Ilegalismos, cidade e política” (organizado em conjunto com Christian Azaïs e Gabriel Kessler), coletânea marcada pela comparação entre São Paulo e cidades mexicanas e argentinas; em 2015, “Ilegalismos na globalização: migrações, trabalho, mercados” (com Angelina Peralva), no qual são acrescidas diferentes cidades do Oriente, da África e da Europa.

Em fevereiro de 2019 Vera Telles se aposentou de seu cargo de professora de sociologia da Universidade de São Paulo, mas deu continuidade à realização de diversas pesquisas que articulam as várias questões e “períodos” de seu percurso intelectual. O grupo “Cidade e trabalho”, situado no Laboratório de Pesquisas Sociais (LAPS/USP) vêm conduzindo diferentes discussões sobre a atual crise nacional e, Vera Telles, segue as sendas de sua trajetória de observadora e analista arguta dos impasses e desafios da sociedade brasileira.

Sugestões de obras da autora:

Telles, Vera da Silva (1999). Direitos sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: Editora da UFMG.

Telles, Vera da Silva (2001). Pobreza e Cidadania. São Paulo: Editora 34.

Telles, Vera da Silva e Cabanes, Robert (2006). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Editorial Humanitas.

Telles, Vera da Silva (2011). A cidade nas fronteiras do legal e do ilegal. Belo Horizonte: Editora Fino Traço.

Telles, Vera da Silva e Azaïs, Christian e Kessler, Gabriel (2012). Ilegalismos, cidade e política. Belo Horizonte: Editora Fino Traço.

Telles, Vera da Silva e Peralva, Angelina (2015), Ilegalismos na globalização: migrações, trabalho, mercados. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.