Por Luiz Antonio Barone (Unesp Pres.Prudente) e
Marcelo Alario Ennes (UFS)
Na introdução do livro “The Women Founders: Sociology and Social Theory: 1830 – 1930”, Patricia Madoo Lengermann e Gillian Niebrugge ajudam a entender como um grupo de mulheres sociólogas participaram ativamente do movimento de formação e consolidação da Sociologia como ciência e por que não apareciam nos manuais e conteúdos programáticos de suas disciplinas introdutórias. As autoras reconstroem as circunstâncias nas quais a “política de gênero” e a “política de conhecimento” atuaram no apagamento destas fundadoras dos registros acadêmicos e históricos da Sociologia, o que impediu que elas legassem suas importantes contribuições temáticas, teóricas e metodológicas para as gerações que lhes seguiram tal como o fez a tríade formada por Karl Marx, Èmile Durkheim e Max Weber que lhes foi contemporânea.
Felizmente, este não é o caso de Vera Lúcia Botta Ferrante. Em um contexto brasileiro que compreende as últimas décadas do século XX e as décadas iniciais do século XXI, Vera é parte do que poderia ser chamada de uma “Escola de Sociologia” com predominância absoluta de mulheres que, durante décadas, formou e deu lastro acadêmico e intelectual ao departamento de Sociologia da atual Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara. Como uma de suas expoentes, Vera formou e ainda forma inúmeros discípulos. Suas ex-orientandas e seus ex-orientandos (quase uma centena) puderam e podem aprender sociologia a partir da indissociável dedicação ao trabalho de campo, à pesquisa empírica e à reflexão teórica e ao cuidado metodológico.
A carreira acadêmica de Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante teve início quando ingressou em 1963 na primeira turma do curso de Ciências Sociais pela então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Poderia ter se formado em Matemática, pois sua primeira iniciação científica (à época, já com bolsa da FAPESP) estava vinculada ao Departamento de Matemática daquela faculdade; mas, sua vocação para as humanidades, aliada à conjuntura política, especialmente crítica da época, foram decisivas para o prosseguimento de seus estudos em Sociologia. Formou-se em 1966 e, ainda muito jovem, no ano seguinte, ingressou como docente na mesma instituição.
Em 1969, Vera Lúcia Botta Ferrante deu início à formação pós-graduada. Pela qualidade de seu trabalho – uma extensa pesquisa sobre o recém-criado Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) -, seu Mestrado foi convertido em Doutorado, concluído em 1974. Em 1978, publicou sua tese de Doutorado intitulada “FGTS: ideologia repressão – o primeiro livro de sua autoria”. Dois anos antes, em 1976, passou a integrar a recém-criada Universidade Estadual Paulista (Unesp). Dando continuidade à sua formação acadêmica, em 1984, realizou seu Pós-Doutorado, com bolsa da CAPES, no Instituto de Investigaciones Sociales da Universidade Autônoma do México (UNAM), sob supervisão de Hubert de Grammont, referência nos estudos de Sociologia Rural.
Sobretudo a partir de seu retorno do México, Vera investiu sua carreira na área de Sociologia Rural, tendo desenvolvido sucessivos projetos de pesquisa tematizando as condições de vida e organização política dos trabalhadores rurais do interior paulista. Em 1987, em colaboração com Maria Aparecida Moraes Silva (ILCSE/UNESP/Araraquara), coordenou o projeto “Bóia-Fria: vida, trabalho e luta”, iniciativa de investigação que começou a reunir um grande grupo de colaboradores discentes de graduação (no qual os autores desta bionota se inseriram) e pós-graduação. No ano seguinte (1988), liderou, ao lado de Sonia Maria Pessoa Bergamasco (UNESP/Botucatu), o maior esforço de pesquisa em termos de estudos rurais da Unesp até então: o projeto “Análise e Avaliação dos Projetos de Reforma Agrária e Assentamentos no Estado de São Paulo”. Esse ousado empreendimento de investigação teve, como um de seus resultados, o primeiro recenseamento realizado nos assentamentos de reforma agrária – Censo dos Assentamentos do Estado de São Paulo cujos resultados foram publicados em 1995.
Fruto desse intenso trabalho de investigação e reflexão, em 1992, Vera Lúcia Botta Ferrante defendeu sua Tese de Livre-Docência na Unesp, intitulada “A chama verde dos canaviais: uma história de lutas dos boias-frias no interior paulista”. Esta é uma obra de referência que ainda não publicada. Nessa mesma década, Vera se torna pesquisadora em produtividade nível I-A do CNPq, condição que se manteve ao longo dos anos.
O mergulho no campo da Sociologia Rural, mais especificamente em torno do tema dos assentamentos, envolveu a criação do Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural (Nupedor) sob a liderança de Vera. Este evento marcou não apenas a institucionalização de suas atividades de pesquisa e de orientações no âmbito da graduação e pós-graduação, mas, também, refletia toda vivacidade intelectual e política que a destacava no ambiente acadêmico no limiar da chamada Nova República. Por sua vez, o Nupedor passou a ter um papel fundamental na principal linha de pesquisa da Pós-Graduação de Sociologia da FCL/Unesp nos anos 1980 e 1990 – a linha de pesquisa “Estado e Agricultura”. Programa do qual Vera Botta Ferrante foi, por várias vezes (e de forma sucessiva), coordenadora até sua aposentadoria na instituição, na virada para o Século XXI.
Como pesquisadora, sua paixão pelo trabalho e sua natural liderança fizeram com que Vera aliasse sua trajetória de pesquisa e docência na Unesp com uma importante presença no campo da sociologia rural nacional, através de um intenso e permanente trabalho de articulação de redes de pesquisadores sobre o rural brasileiro contemporâneo – com destaques para a Sociedade Brasileira de Economia Administração e Sociologia Rural (SOBER), o Programa de Intercâmbio de Pesquisa Social em Agricultura-PIPSA (e sua sucedânea, a APIPSA) e para a Rede de Estudos Rurais, entidades das quais compôs seguidamente as diretorias, inclusive ocupando a presidência de algumas delas. Possivelmente, o ápice desse seu trabalho de articulação tenha sido a primeira vice-presidência da Associação Latino-Americana de Sociologia Rural/ALASRU, no quadriênio 2011-2014. Vera, inclusive, presidiu o IX Congresso Latino-Americano de Sociologia Rural, realizado na cidade do México em 2014.
Além dessa inequívoca liderança acadêmica, Vera Lúcia Botta Ferrante tem sido uma incansável militante em favor das pautas progressistas, com destaque para a luta política das mulheres, tendo sua terra natal, Araraquara, como foco de sua atuação pública. “Vera Botta” foi eleita vereadora no município por duas vezes (nos pleitos de 1992 e 2000), colaborando diretamente para que a cidade de Araraquara se tornasse um polo politicamente progressista no interior paulista no início do Século XXI. Após o fim de seu segundo mandato, Vera foi a titular da Coordenadoria Municipal do Meio Ambiente na gestão 2005-2008. Durante as sucessivas gestões federais encabeçadas pelo Partido dos Trabalhadores, entre os anos 2003 e 2016, Vera Lúcia Botta Ferrante também desenvolveu vários projetos de assessoria junto ao Ministério do Desenvolvimento Agrário/MDA, sempre tematizando políticas públicas voltadas à inclusão socioprodutiva de segmentos específicos da agricultura familiar – notadamente os assentados e assentadas em projetos de reforma agrária.
Em 2003, Vera deu início a um novo capítulo de sua trajetória profissional, criando e coordenando o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente na Universidade de Araraquara (Uniara), instituição para a qual transferiu o Nupedor e, também, a publicação dos “Retratos de Assentamentos” – periódico que contou com seu trabalho de editora desde o ano de 1994. A partir de um projeto de publicação internacional (França/Brasil), desde 2005, o Nupedor tem realizado bianualmente o “Simpósio sobre Reforma Agrária e Questões Rurais”. Em 2020, chegou à sua nona edição.
Em 2015, o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente deu início ao seu Doutorado, garantindo maior alcance acadêmico a esta iniciativa coletiva capitaneada por Vera. Em 2016, Vera Lúcia Botta Ferrante assumiu a Pró-Reitoria de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade de Araraquara, dando continuidade à sua trajetória profissional e acadêmica. Tal realização pode ser considerada a coroação de sua carreira. Vera, no entanto, manteve-se em sala de aula, pesquisando, liderando o Nupedor e formando novos pesquisadores – em suas palavras, sua “boa sementeira”.
Vera é um exemplo de uma sociologia que cumpre seu papel acadêmico e científico, mas também com uma sociologia pública comprometida com o pensamento crítico e com a justiça social e, sobretudo, com a vida cuja herança está materializada tanto em sua extensa produção acadêmica, quanto na condição de formadora de muitas gerações de sociólogas e sociólogos que certamente manterão vivo o seu legado como pesquisadora, professora e como uma pessoa capaz de manter viva a esperança em uma sociedade mais justa.
Sugestões de obras da autora:
FERRANTE, V. L. S. B. FGTS: ideologia e repressão. São Paulo, Ed. Ática, 1978.
FERRANTE, V. L. S. B.; SANTOS, I. P. (orgs.) Da terra nua ao prato cheio. São Paulo/Araraquara, Fundação ITESP/Uniara, 2004.
FERRANTE, V. L. S. B.; ALY JÚNIOR, O. (orgs.) Assentamentos Rurais: Impasses e Dilemas (uma trajetória de 20 anos). São Paulo: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, 2005.
FERRANTE, V. L. S. B.; WHITAKER, D. C. A. (orgs.) Reforma Agrária e desenvolvimento: desafios e rumos da política de assentamentos rurais. Brasília/Araraquara: MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário/UNIARA, 2008.
FERRANTE, V. L. S. B.; SILVA, M. A. M. A política de assentamentos: o jogo das forças sociais no campo. Revista Perspectivas. EdUnesp, São Paulo, n.11, p. 33-51, 1988.
FERRANTE, V. L. S. B. Caminhos e Descompassos do Sindicalismo Rural Paulista. Revista Perspectivas, Edunesp, n.12/13, p. 73-102, 1990.
FERRANTE, V. L. S. B. A Proletarização Não Tem Cartas Marcadas: A Terra No Horizonte dos Boias-Frias. Revista REFORMA AGRÁRIA. Campinas, ABRA, v. 22, n.3, p. 16-23, 1992.
FERRANTE, V. L. S. B. Os herdeiros da modernização (grilhões e lutas dos bóias-frias). Revista Políticas Agrícolas, Ciudad do México, v. III, n.2, p. 85-112, 1998.
BARONE, L. A.; FERRANTE, V. L. S. B. Assentamentos Rurais em São Paulo: estratégias e mediações para o desenvolvimento. Revista Dados. Rio de Janeiro, v. 55, p. 755-785, 2012.
FERRANTE, V. L. S. B.; BARONE, L. A. “Parcerias” com a cana-de-açúcar: tensões e contradições no desenvolvimento das experiências de assentamentos rurais em São Paulo. Revista Sociologias. Porto Alegre, UFRGS, v. 13, p. 262-305, 2011.