Por Elisa Correa (UDESC)
A historiografia da internet brasileira teve seu início marcado pela análise sociotécnica publicada por ninguém menos do que Tamara Benakouche, considerada a pioneira dos estudos sociológicos sobre inovação e tecnologia no Brasil.
Tamara nasceu em Recife, onde se formou em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco no ano de 1970. Nessa mesma década iniciou sua trajetória profissional como Socióloga do Conselho de Desenvolvimento de Pernambuco (CONDEPE) e atuou como professora colaboradora da Faculdade de Filosofia do Recife, posteriormente denominada Faculdade Frassineti do Recife (FAFIRE).
Ainda nos anos 1970, Tamara recebe bolsa do Centre International d’etudiants et Stagiaires, CIES, na França, e desenvolve sua pesquisa de pós-graduação com ênfase em estudos sobre urbanismo e migração no nordeste brasileiro, conquistando o título de Mestre pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonne). De volta ao Brasil, escolhas pessoais a trouxeram para o sul do país, inicialmente na cidade de Curitiba, onde trabalhou como socióloga no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) no período de 1979 a 1982.
Inicia sua trajetória docente em Florianópolis em 1982, quando é aprovada em concurso público para o cargo de professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde atuou por mais de 20 anos. Em sua carreira acadêmica, Tamara exerceu cargos administrativos como chefe do Departamento de Ciências Sociais, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política (PPGSP/UFSC) e membro do Conselho de Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Foi também editora da Revista Política e Sociedade (UFSC) e membro do corpo editorial da Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS). Desenvolveu atividades de ensino de graduação e pós-graduação, extensão e pesquisa, conquistando a posição de professora titular do Departamento em 1994.
Por conta de seus estudos sobre urbanização, inicialmente encontrou no campo da Geografia o espaço para suas primeiras pesquisas e publicações sobre o tema no Brasil na década de 1980, influenciada pelos contatos acadêmicos iniciados na França, onde conheceu pessoalmente Milton Santos. Participou de eventos da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ANPUR) com apresentação de trabalhos e coordenação de Grupos de Trabalho, ampliando sua rede de relacionamentos científicos entre os pesquisadores brasileiros até migrar definitivamente para os espaços sociológicos, como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), onde foi coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Estudos Urbanos.
O direcionamento temático das pesquisas desenvolvidas por Tamara sobre Ciência, Sociologia e Sociedade nos anos 1980, foi influenciado por preocupações sociais em relação à chegada da tecnologia nas cidades, os chamados “impactos tecnológicos”. Rumores e previsões nada animadores a respeito da diluição e fragmentação das cidades por conta da comunicação à distância que, supostamente, tiraria as pessoas das ruas inviabilizando o comércio e a vida social urbana, tornaram-se o interesse de pesquisa que iniciou a transição temática que culminaria nos estudos sociotécnicos que marcaram a docência e pesquisa de Tamara até o final de sua trajetória acadêmica.
O aprofundamento na leitura de autores franceses sobre as discussões sociológicas que envolviam o urbanismo e, na época, a teleinformática, levou-a de volta a Paris, agora para o curso de Doutorado na Université de Paris XII (Paris-Val-de-Marne). Sua pesquisa sobre as políticas de implementação da ‘teleinformática’ no Brasil enquanto precursora da internet como a conhecemos hoje, foi uma importante guinada para sua inserção como pesquisadora da análise sociotécnica. A partir do estudo das novas tecnologias nos espaços urbanos e, especialmente, do que passou a chamar de implicações sociais da tecnologia como alternativa ao termo ‘impacto tecnológico’, Tamara começa a definir com maior clareza uma área de estudos e pesquisas ainda muito incipiente, ou mesmo inexistente no Brasil: a Sociologia da Técnica, conhecida posteriormente como Sociologia da Inovação.
Duas publicações representam mais acentuadamente seu legado para os estudos sociológicos sobre tecnologia no Brasil: o primeiro deles, intitulado Redes técnicas/redes sociais: a pré-história da Internet no Brasil, publicado em 1997 na Revista USP, faz um levantamento histórico-cronológico sobre a implementação e expansão da internet no Brasil, dando ênfase ao que Tamara chama de “agenciamentos sociotécnicos”, expressão usada por Pierre Lèvy (1993), para compreender os processos e negociações que permearam a pré-história da internet no país.
O artigo faz uma análise que parte desde os primeiros movimentos, tanto do governo brasileiro quanto de diversas instituições que se utilizavam da teleinformática já na década de 1970, discutindo as negociações, problemas enfrentados e soluções encontradas, apresentando as iniciativas de criação das primeiras redes de serviços de transmissão de dados e sua evolução ao longo das duas décadas seguintes.
Esse texto pioneiro já apontava o que Tamara chamou de “riscos” envolvidos no uso de arquivamento e transmissão de dados pela rede internet, conceito que ultrapassa a noção de impacto tecnológico, discutido com mais profundidade em sua outra publicação considerada como a segunda contribuição mais importante para os estudos sobre tecnologia e sociedade no Brasil: Tecnologia é sociedade: contra a noção de impacto tecnológico.
Este segundo texto é resultado da pesquisa de pós-doutorado realizado na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, publicado em 1999 no periódico Cadernos de Pesquisa. O capítulo discorre sobre as críticas necessárias ao uso da palavra ‘impacto’ como referência às implicações da tecnologia na sociedade pois, segundo a autora, “Responsabilizar a técnica pelos seus “impactos sociais negativos”, ou mesmo seus “impactos sociais positivos”, é desconhecer, antes de mais nada, o quanto – objetiva e subjetivamente – ela é construída por atores sociais, ou seja, no contexto da própria sociedade.” (BENAKOUCHE, 1997, p.2).
Em sua análise, Tamara argumenta o caráter social da construção da tecnologia, apresentando a teoria ator-rede de Latour e Callon que discute a rede de atores humanos e não humanos responsável pelo desenvolvimento de tecnologias na sociedade que, nesse processo social, recebe diferentes apropriações ou ‘traduções’ por parte dos membros da sociedade que a elas atribui diferentes identidades e usos. Dessa forma, o texto desmistifica a tecnologia como algo que “impacta” a sociedade fortalecendo seu caráter social, acompanhado dos riscos e benefícios inerentes a todas as interações e produtos sociais.
Esses textos repercutiram em diferentes publicações, seja em dissertações e teses, seja em artigos científicos que, até os dias de hoje, levantam questões importantes sobre o caráter social da técnica e da tecnologia.
Além das contribuições evidenciadas nessas análises, Tamara foi pioneira também em sua atuação na criação de cursos de Ensino à Distância em Santa Catarina, dedicando parte de suas pesquisas e atuação profissional voltadas à Sociologia da Educação, com ênfase nos aspectos tecnológicos que permeiam práticas educacionais.
Ao final de sua trajetória acadêmica, a partir de 2008, atuou como membro do Comitê de avaliação da CAPES na área de Sociologia, encerrando assim sua participação mais ativa em atividades profissionais. No entanto, a obra de Tamara Benakouche, mantém uma relevância indiscutível nos debates sempre necessários sobre tecnologia e sociedade.
O complexo universo da informação digital representa enormes desafios técnicos e sociais que não podem ser ignorados, e que demandam novas análises que possam trazer maior compreensão da sociedade de hoje, levantando o debate sobre problemas contemporâneos que precisam ser discutidos, alguns, inclusive, com extrema urgência, tendo em vista o cenário de notícias falsas que ameaça a democracia no Brasil e no mundo. Além disso, as mudanças provocadas pela pandemia de COVID 19, intensificaram as relações sociais por meio da comunicação digital e trouxeram novas formas de trabalho e constituição da vida nas cidades – possibilidades que motivaram Tamara em seus primeiros estudos sociotécnicos focados em urbanização na década de 1980.
Revisitar os textos de Tamara Benakouche é, portanto, condição básica e ponto de partida para todo aquele que deseje adentrar esse universo de possibilidades de estudos e pesquisa sobre as tecnologias digitais.
Sugestões de obras da autora:
BENAKOUCHE, Tamara. Redes Técnicas/Redes Sociais: pré-história da Internet no Brasil. Revista USP, São Paulo, v.35, p.124-133, 1997. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/26923 Acesso em: 31 jan. 2023.
BENAKOUCHE, Tamara. Tecnologia é Sociedade: contra a noção de impacto tecnológico. Cadernos de Pesquisa do PPGSP, Florianópolis, n. 17, Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, 1999. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/41838/1/ARTIGO_ProducaoSocialTecnologia.pdf Acesso em: 31 jan. 2023.