Por Fernando Antonio Pinheiro (USP) e Luiz Carlos Jackson (USP)
Sociólogo em tempo integral, Sergio Miceli Pessôa de Barros (Rio de Janeiro, 1945) refere-se em entrevista à sua origem social como a de um descendente (filho único) pelo lado paterno de “família brasileira decadente” e à relação conturbada com o pai como fonte possível do incômodo subjetivo que teria como contrapartida a identificação com o lado materno da família, de origem imigrante, o que explicaria a escolha de “Miceli” e não “Pessôa de Barros” como sobrenome de autor. Esse arranjo familiar afetou possivelmente a escolha do curso de ciências políticas e sociais e a dedicação plena ao trabalho intelectual desde a graduação na PUC do Rio de Janeiro (1964-1967), ponto de partida de uma carreira impulsionada, como a de muitos e muitas colegas de geração, pelas oportunidades geradas pela expansão do sistema universitário brasileiro e das ciências sociais em particular durante a ditadura militar, face inusitada do regime que perseguiu intelectuais destacados de universidades e institutos de pesquisa do país.
Em 1968, Sergio migrou para São Paulo e ingressou na pós-graduação em sociologia na Universidade de São Paulo. Seria sempre ousado na escolha dos objetos e referências teóricas, a começar por seu trabalho de mestrado (1968-1971) sobre tema improvável naquele contexto: o dos programas de auditórios televisivos, concretizado na Noite da Madrinha (1972), sobre Hebe Camargo. Esse livro formou parte de um movimento não coordenado de recuperação da sociologia da cultura na USP. Àquela altura, a área encontrava-se polarizada entre as lideranças exercidas pelos professores Ruy Coelho e Gabriel Cohn e apoiada indiretamente na crítica literária de orientação sociológica praticada por Antonio Candido e grupo na Letras. A impressão causada pela leitura de Pierre Bourdieu durante o mestrado motivou Miceli a contatar o sociólogo francês e organizar uma das primeiras coletâneas de textos de Bourdieu no mundo, A economia das trocas simbólicas. O livro teve grande ressonância, tanto pelos trabalhos coligidos, como pelo prefácio de Miceli, que deu o tom à recepção de Bourdieu no período. Essa iniciativa demarca o ingresso na atividade editorial, na qual se destacaria mais tarde, como editor na Edusp durante a década de 1990.
Em 1971, tornou-se professor na Faculdade Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), onde permaneceu até 1986. Tal inserção profissional algo marginal, se comparada à dos(as) que ingressaram jovens na USP como docentes no início da década de 1970, lhe garantiu uma margem de manobra mais ampla. No doutorado (1973-1978), obteve dupla titulação, no Brasil e na França, orientado na USP, por Leôncio Martins Rodrigues, e na École des Hautes Études em Sciences Sociales, por Pierre Bourdieu, tornando-se membro de seu grupo. Essa experiência favoreceu sua afirmação, no Brasil, como formulador de uma perspectiva analítica inovadora na tese Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945), publicada em 1979 como livro. Tendo o método prosopográfico (biografia coletiva) como lastro, três eixos estruturam seu argumento que afirma no atacado a relação de dependência dos intelectuais em relação ao Estado no período. O primeiro delineia o perfil social típico dos escritores modernistas e seus contemporâneos – via de regra oriundos de oligarquias em declínio econômico – para quem restaria a alternativa de mobilizar o capital de relações sociais ao alcance da família e prestar serviços aos grupos dirigentes. O segundo descreve o mercado de postos públicos por meio do qual a cooptação política se realizava, sobretudo no âmbito federal sob o arranjo político varguista. Finalmente, o terceiro avalia o alcance da constituição de um mercado editorial incipiente que teria possibilitado o surgimento de um grupo de romancistas profissionais, recrutados em estados do Nordeste, principalmente. No balanço desses movimentos vislumbra-se a configuração específica da vida intelectual no país no contexto examinado. O veio desencantado do argumento e das provas que o sustentam, reforçado pelo estilo seco de sua redação, até hoje provoca resistência, mas teve como efeito estabelecer a sociologia dos intelectuais como uma vertente analítica reconhecida no Brasil e no exterior. Vale notar que ele teve foi professor visitante nas universidades estado-unidenses de Stanford, Chicago, Florida, na UNAM (México) e na EHESS (França).
Realizou a livre-docência na Unicamp (1986) com A elite eclesiástica brasileira (1988). O ingresso como professor na USP ocorreu em 1989, mesmo ano em que se deu a publicação da História das Ciências Sociais no Brasil (vol.1, 1989; vol.2, 1995), obra coletiva que coordenou no Instituto de Estudos Econômicos Sociais e Políticos de São Paulo (IDESP) e que reuniu pesquisadoras e pesquisadores como Lilia Schwarcz, Mariza Corrêa, Fernanda Peixoto, Heloisa Pontes, Maria Arminda do Nascimento Arruda, Fernando Limongi, Lucia Lippi Oliveira e Maria Hermínia Tavares de Almeida, entre outros. Apesar das críticas recebidas, sobretudo por privilegiar o caso paulista e incorporar uma visão supostamente institucionalista sobre esse processo, a equipe produziu uma interpretação abrangente que se tornou referência obrigatória, graças ao apuro no deslindamento das origens sociais de professores e alunos, dos perfis institucionais, das missões estrangeiras, dos padrões de profissionalização vigentes no Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, dos embates geracionais e das lógicas internas de sociabilidade dos grupos. Nesse período iniciou-se a frutífera parceria afetiva e intelectual entre Sergio Miceli e Heloisa Pontes, professora de antropologia na Unicamp e autora de Destinos mistos (1998) e Intérpretes da metrópole (2010).
Na década de 1990, já professor titular, Sergio arriscou o exame sociológico da atividade artística. Imagens negociadas (1996), sobre os retratos de Candido Portinari, explora, como expressa seu título, a negociação das soluções pictóricas entre retratista e retratado, condicionada pelas posições relativas desses agentes no espaço social. Nacional estrangeiro (2003) tomou como objeto o modernismo artístico paulista analisando as atividades dos mecenas e colecionadores, os circuitos de comercialização das obras de arte, os padrões de gosto vigentes e os anseios de renovação reforçados pelos contatos com as vanguardas europeias.
A valorização do trabalho institucional – entre outros encargos assumidos, foi secretário executivo da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Ciências sociais (Anpocs), entre 1983 e 1988 – e coletivo, sempre atrelado ao afeto, materializou-se nos anos 2000 com sua aproximação (e de seu grupo) aos intelectuais argentinos nucleados no Programa de História Intelectual da Universidade Nacional de Quilmes, especialmente Carlos Altamirano, Jorge Myers, Alejandro Blanco e Adrian Gorelik, que resultou nos dois volumes da História social de los intelectuales en América Latina (Katz; 2008, 2010) . Outra empreitada coletiva coordenada por Sergio foi o projeto temático financiado pela Fapesp (2001-2013) “Formação do Campo Intelectual e da Indústria Cultural no Brasil Contemporâneo”, do qual resultou o livro Cultura e Sociedade: Brasil e Argentina (2014), organizado em parceria com Heloisa Pontes. A comparação entre as experiências brasileira e argentina constitui o pano de fundo dos livros Vanguardas em retrocesso (2012) e Sonhos da periferia (2018), que desafiaram esquemas interpretativos reiterados, com uma análise provocativa sobre as elites literárias e artísticas argentinas, centrada em Borges e na revista Sur, obtendo recepção muito favorável em toda América Latina. Em 2021 escreve livro sobre Carlos Drummond de Andrade e permanece ligado à USP como professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e membro do Núcleo de Sociologia da Cultura.
Sugestões de obras do autor
MICELI, S. (ORG.) BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974. Coleção Estudos, n. 20.
MICELI, S. A noite da madrinha. São Paulo: Perspectiva, 1972. Coleção Debates, n. 66.
MICELI, S. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MICELI, S. (Org.). História das ciências sociais no Brasil. São Paulo: Sumaré/FAPESP, 1995, vol 2.
MICELI, S. (Org.). História das ciências sociais no Brasil. São Paulo: Sumaré/FAPESP, 2001, vol 1.
MICELI, S. A elite eclesiástica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
MICELI, S. Imagens negociadas. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
MICELI, S. Nacional estrangeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
MICELI, S. Vanguardas em retrocesso. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
MICELI, S. Sonhos da periferia. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
MICELI, S. História social de los intelectuales en América Latina. Buenos Aires: Katz 2008.
MICELI, S. PONTES, H. (orgs.). Cultura e Sociedade: Brasil e Argentina. São Paulo: Edusp, 2014.
Sobre o autor:
BASTOS, E. R (org.) Conversas com Sociólogos Brasileiros [Élide Rugai Bastos (org.), Editora 34, 2006.
PONTES, Heloisa. Destinos mistos: os críticos do grupo Clima em São Paulo (1940-1968). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
PONTES, Heloisa. Intérpretes da metrópole. São Paulo: Edusp, 2010.