Por Rodrigo Rossi Horochovski (UFPR)
Semeando sociologia nas araucárias
Início dos anos 1990. O piá[1], no segundo ano do curso de Ciências Sociais da UFPR e ainda meio perdido no mundo acadêmico, ouviu falar de uma bolsa de Iniciação Científica, ofertada pela Professora Roseli Rocha dos Santos, a quem ainda não conhecera. Não tinha ele a mais pálida ideia de como este contato mudaria sua vida de maneira dramática e decisiva. E para o bem.
Para citar uma das numerosas experiências que frutificaram daquela orientação e que ficaram gravadas na memória daquele piá, ele, naquela ingênua pretensão juvenil, queria estudar o gosto. A professora emprestou-lhe um livro, de um tal Pierre Bourdieu, chamado La Distinction, assim mesmo, em francês – a tradução da EdUSP ainda não havia saído.
Ela não perguntou se o orientando conseguiria ler. Se ele até então não sabia muito da língua, teve de aprender na marra. E foi assim com um sem-número de outros livros, artigos, manuais etc, tanto na graduação, quanto no mestrado, no qual ela continuou a orientá-lo. O principal aprendizado, a maior lição da orientadora foi, no entanto, a de que, diferentemente de outros ativos que circulam por aí, a autonomia intelectual e o conhecimento sempre se acumulam, dificilmente se perdendo, transformando pessoas, grupos, sociedades inteiras. E isso ela ensinou não com discursos, se não por suas ações.
Esta experiência singular e pessoal é, contudo, um pedacinho, ínfimo, do que Roseli Rocha dos Santos representa para as Ciências Sociais do Paraná, especialmente na UFPR. Para se ter uma dimensão mais exata, é preciso voltar um pouco mais no tempo.
Roseli nasceu e cresceu em Curitiba. Estudou no Colégio Estadual do Paraná, alma matter de ilustres cidadãs e cidadãos do estado. Formou-se em Ciências Sociais pela UFPR, onde se tornou professora, da área de Sociologia, ainda na primeira metade dos anos 1970. Até o fim da década, atuaria também no Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (Ipardes), órgão do governo estadual que abrigou e abriga grandes destaques da produção e análise de dados sociais no Paraná. Também naquela época se casaria com Carlos Antunes dos Santos, professor do Departamento de História da UFPR e que se tornaria uma das grandes referências brasileiras na História da Alimentação, além de reitor da universidade e Secretário de Ensino Superior do MEC, em 2003.
Voltando aos anos 1970, eram tempos difíceis, de autoritarismo, especialmente em uma universidade sobejamente prejudicada pelos expurgos do Regime Militar. Roseli bateu-se pela transformação daquele quadro, destacando-se na luta tanto pela democratização da instituição, quanto pela transformação do Departamento de Ciências Sociais (Deciso) em um centro orientado pelos padrões mais elevados de ensino, pesquisa e extensão. Em outras palavras, na sedimentação de um ethos acadêmico que seria responsável, desde então, pela crescente incorporação de excelentes pesquisadores às fileiras das Ciências Sociais na UFPR. Vale dizer que, à época, tratava-se de um departamento em transição, que vinha de uma tradição mais conservadora, menos voltada a pesquisas empíricas, mercê de sua herança intelectual da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da então Universidade do Paraná, onde o curso de Ciências Sociais foi fundado em 1938, sob forte influência clerical.
Foi um árduo desafio, inicialmente minoritário, mas que paulatinamente ganhou adesão de colegas que chegavam ao Deciso imbuídos de visão semelhante. Vale, aliás, sublinhar o protagonismo das mulheres professoras nesse processo de transição que se prolongaria por toda a década de 1980. Diversos nomes podem ser mencionados, como Zélia Passos, Sílvia Araújo, Ângela Damasceno Ferreira, Benilde Montim e Maria do Carmo Rolim.
Em 1987, concluiu seu doutorado, na Universidade de Paris X (Nanterre), com a tese Les origines industrielles de la modernisation agricole au Brésil, sob a orientação de Nicole Eizner, célebre pesquisadora francesa na área de Sociologia Rural. As conexões com a França se mostraram vitais no início do processo de internacionalização da área de Ciências Sociais na UFPR, destacando-se os projetos em colaboração do Raúl Green, no marco do acordo Capes-Cofecub.
Entre os diversos frutos da referida colaboração, destacam-se influentes produtos intelectuais, como o artigo Economía de Red y Reestructuración Del Sector Agroalimentario – publicado pela revista Desarrollo Económico, revista argentina de alto impacto, editada pelo Instituto de Desarrollo Económico Y Social daquele país (GREEN & ROCHA DOS SANTOS, 1992) – e o livro Brésil, un Systeme Agro-Alimentaire en Transition, lançado na França pelo Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine (GREEN & ROCHA DOS SANTOS, 1993). Além disso, a parceria rendeu diversos outros frutos, como pesquisas em conjunto, missões e a formação de quadros do Deciso em programas de doutorado e estágios de pós-doutorado no país europeu.
Roseli desempenhou papel fundamental, precursor mesmo na Sociologia paranaense, especialmente de formação de grupos de pesquisa interdisciplinares – com destaque para o Grupo de Estudos Agricultura e Sociedade (Geas), voltado à análise de todos os aspectos que envolvem o rural, espaço tão central no Paraná e no Brasil até hoje. É uma das sociólogas brasileiras pioneiras no emprego da teoria das redes, no caso dela aplicada à análise de sistemas agroalimentares.
Já era Bolsista Produtividade do CNPq quando a UFPR ainda engatinhava como centro de pesquisa sociológica e ainda estava por abrir seu programa de pós-graduação stricto sensu na área, o primeiro do Paraná. A propósito deste, compôs a liderança do grupo que o construiu e fundou, em 1995, à época com área de concentração em Sociologia das Organizações.
Hoje, as Ciências Sociais na UFPR – com suas três subáreas: Antropologia, Ciência Política e Sociologia – estão mais do que consolidadas, todas com programas de pós-graduação de qualidade reconhecida nacional e internacionalmente. Isso só foi possível graças ao trabalho incansável de pioneiras como Roseli.
O piá nunca conseguiu expressar diretamente, à orientadora, todo o significado que ela tem em sua vida. Ele é assim, quando se trata de figuras com tamanha dimensão, numa espécie de temor reverencial misturado à timidez. A palavra escrita, porém, também muito melhorada pela contribuição da professora que lhe corrigia pacientemente os textos, permite-lhe que renda, a ela, sua homenagem mais sincera. O professor, pesquisador e orientador de hoje, que inclusive acabou pesquisando redes sociais, humilde e orgulhosamente espelha o imenso legado de Roseli Rocha dos Santos.
Sugestões de obras da autora:
GREEN, Raúl H.; ROCHA DOS SANTOS, Roseli. Economia de Red y Reestructuración Del Sector Agroalimentario. Desarrollo Económico, vol. 32, no. 126, Instituto de Desarrollo Económico Y Social, 1992, pp. 199–225, https://doi.org/10.2307/3467328.
MYSZCZUK, Ana Paula; Wandscheer, C.B.; ROCHA DOS SANTOS, Roseli . Organismos geneticamente modificados e reparação de danos ao meio ambiente. Revista de Politicas Publicas (UFMA) , v. 15, p. 43-52, 2011.
ROCHA DOS SANTOS, Roseli; MYSZCZUK, Ana Paula; GLITZ, Frederico. Contrato de compra e venda na cadeia agroindustrial da soja. Revista de Política Agrícola, v. 2, p. 48-59, 2010.
ROCHA DOS SANTOS, Roseli; MYSZCZUK, Ana Paula; GLITZ, Frederico. Meio Ambiente, Segurança Alimentar e Consumo: Rastreabilidade e Certificação de Grãos GM e NGM. Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais da UniBrasil, v. 10, p. 1-26, 2009.
GREEN, Raúl H.; ROCHA DOS SANTOS, Roseli. Brésil: un système agro-alimentaire en transition. Éditions de l’IHEAL, 2016.
[1] Gíria utilizada no sul do país para “menino”, “guri”, “garoto” ou “moleque”.