Por Roberto Motta (UFPE)
Roger Bastide (1898-1974) foi um sociólogo francês contratado como parte da “missão francesa” da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, onde lecionou por 16 anos (1939-1954), tendo substituído Claude Levi-Strauss (1908-2009) na cátedra de Sociologia.
Entre os grandes sociólogos e antropólogos, Roger Bastide é certamente o mais versátil. Esse protestante conseguia ser muito “católico”, muito universal em suas preferências teóricas. Muitas passagens de sua obra são influenciadas por Durkheim e Halbwachs. Noutras — o que, aliás, não envolve contradição —, ele demonstra ser discípulo de Georges Gurvitch. Um pouco mais adiante, sem esquecer Lévy-Bruhl, nosso autor se apresenta como continuador de Marcel Griaule. Certos trechos de seu livro sobre As Religiões Africanas no Brasil mostram que era igualmente receptivo a um certo marxismo. Finalmente, num de seus últimos artigos, faz elogios a Claude Lévi-Strauss e ao método estruturalista, bastante apropriado, em sua opinião, para o estudo do sincretismo religioso, método do qual considera precursor nosso compatriota Raimundo Nina Rodrigues (Bastide, 1970).
Roger Bastide tinha profundo respeito pelas fontes e pelos autores que utilizava. Também sabia assimilar e reconciliar opiniões de diversas procedências. E, mesmo quando essas opiniões parecessem contraditórias, sabia descobrir, em cada uma delas, a parte de verdade que possuíam, integrando-as numa visão mais ampla. É o caso, por exemplo, da maneira como aplica, na interpretação do sistema de relações raciais de nosso país, conceitos provenientes tanto de Gilberto Freyre como de Florestan Fernandes, os quais, à primeira vista, pareceriam hurler de se trouver ensemble, mas que se conciliavam quando, por Bastide, colocados cada um em seu lugar.
Bastide traça um contraste entre a sociedade brasileira tradicional, eminentemente representada no “Nordeste do tabaco, da cana-de-açúcar e dos negros” (Bastide, 1955, p. 3), que o mesmo Brasil de Casa-grande & Senzala, e o Brasil no qual, “nas grandes metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo, forma-se uma sociedade de classes com um proletariado e um subproletariado que não são homogêneos racialmente e nos quais negros, mulatos, mestiços de índios e brancos convivem e se confraternizam” (Bastide, 1975, p. 198).
Quando quer descrever o Brasil das grandes metrópoles, Bastide se deixa influenciar, além de Gilberto Freyre, por seus ex-alunos da Universidade de São Paulo, sobretudo Florestan Fernandes, sujeito, por sua vez, a uma dupla influência: funcionalista, primeiro, e depois, cada vez mais claramente, marxista. E Bastide conclui: “O preconceito exerce agora a mesma função que tem nos Estados Unidos, que é a de ‘conservar o Negro no seu lugar’, impedindo-o de fazer concorrência ao Branco” (Bastide, 2001, p. 70).
Roger Bastide tomou conhecimento da “lição dos antropólogos norte-americanos”, segundo Arthur Ramos, sobre aculturação e conceitos associados destacando-se o diálogo constante, na elaboração do conceito de aculturação formal, entre Roger Bastide e Melville Herskovits que se constituiu no centro de gravidade de sua obra e o cerne de Le Prochain et le Lointain (Bastide, 2001), visto como culminância do processo de modernização. Sobre o que seja essa forma de aculturação, esta se realiza quando se altera a maneira de perceber o fenômeno material, isto é, quando se altera o esp espírito, o éthos, a significação, o contexto civilizacional do fenômeno. Não se trata tanto dos aspectos materiais, mas da forma com que é apreendido e contextualizado. Alguns exemplos: o contraste entre o candomblé, representando a civilização, a Filosofia, a metafísica africana (que Bastide, em Imagens do Nordeste Místico em Branco e Preto, concebe como associada ao barroco da tradição portuguesa), e a umbanda, ligada à modernidade, à economia industrial, ao surgimento do proletariado. Mas, mesmo dentro do próprio candomblé, já pode ter surgido um processo de aculturação formal, o qual, inclusive, se configura na oposição entre o candomblé “Angola”, de João da Goméia, e os grandes terreiros nagôs da Bahia. Outro exemplo freqüente de Bastide encontra-se na oposição entre africanidade e negritude, esta última sendo para ele produto da desafricanização do africano, que passa a conceber a África através de categorias européias.A evolução intelectual de Roger Bastide, no Brasil, esteve longe de limitar-se ao aprofundamento de seus contatos com a sociologia e antropologia norte-americanas. Não se tratava de um “herói civilizador”, nem a isso ele tinha pretensões. Bastide, no Brasil, em São Paulo ou nas suas viagens ao Nordeste, não viveu num deserto intelectual. De fato, transformou-se num intelectual tão brasileiro quanto francês.
Em contraste com o relacionamento mais teórico de Roger Bastide com a dupla Arthur Ramos/Melville Herskovits, destaca-se, com relação a Edison Carneiro, uma correspondência mais etnográfica, que, por vezes, é igualmente literária, na qual adota a ideia do “rito nagô” como a tradição, por assim dizer, normativa, do candomblé da Bahia.
Os contatos de Bastide com a Escola de Chicago, na medida em que representada, no Brasil, por Donald Pierson, implicaram, paradoxalmente, contatos com a Escola do Recife, isto é, com Gilberto Freyre, cujas ideias sobre relações raciais foram muito bem meditadas e assimiladas por Donald Pierson. Por esse e por outros vieses, Gilberto Freyre exerceu uma das influências mais fortes sobre o pensamento de Roger Bastide, principalmente (mas não exclusivamente), no estudo das relações raciais. Imagens do Nordeste Místico em Branco e Preto possui, um forte componente freyreano. De Donald Pierson, a principal contribuição aos estudos brasileiros é, sem dúvida, Brancos e Pretos na Bahia (Pierson, 1945), cujo título, aliás, não deixa de apresentar alguma analogia com o do livro de Bastide publicado no mesmo ano.
Se Bastide está voltado para uma reflexão sobre a modernidade, não deve causar espanto que alguns de seus livros e artigos possam enquadrar-se na categoria de sociologia do desenvolvimento. Essa disciplina, no Brasil, na França, nos Estados Unidos e noutros países, foi muito praticada durante o terceiro quartel do século XX, no contexto da Guerra Fria e da disputa pelos hearts and minds dos povos do Terceiro Mundo. A ideologia do progresso, em suas formas convencionalmente hegelianas, marxistas, weberianas, parsonianas, não é central no seu pensamento, ao contrário, por exemplo, de Florestan Fernandes e das correntes dominantes no pensamento social brasileiro. Nesse aspecto, Roger Bastide está próximo a Gilberto Freyre.
De volta à França, Bastide foi professor inicialmente da École Pratique des Hautes Etudes, 6e Section, posteriormente tornou-se professor da Universidade de Paris, além de ter sido durante mais de dez anos professor no Institut des Hautes Études de l ‘Amérique Latine. Foi também diretor entre 1962 e 1974 a revista L’Année sociologique, o que reforça seu alto prestígio acadêmico na sociologia francesa. Suas pesquisas trouxeram contribuições ainda para os campos das artes e da psicologia social, demonstrando a envergadura de seu trabalho e sua capacidade de impactar para além das ciências sociais.
Sugestões de obras sobre o autor:
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia (rito nagô). Rio de Janeiro: Brasiliana, 1961.
BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem: e outros ensaios. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2006.
BASTIDE, Roger. Le Prochain et le Lontain. Paris: Cujas, 1970.
BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpenetra-ções de civilizações. Vol. I e II. São Paulo, Livraria Pioneira Editora/ EDUSP, 1971 [1960].
BASTIDE, Roger. Sociologia. Organizado por maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo: Editora Ática, 1983.
BASTIDE, Roger. Brasil, terra de contrastes. São Paulo: DIFEL, 1959.
Obras sobre o autor:
MOTTA, Roberto (Org.) Roger Bastide Hoje: Raça, Religião, Saudade e Literatura. Recife: Bagaço, 2005.
PEIXOTO, Fernanda A. Diálogos Brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2000.