Por Maurício Hoelz (UFRRJ)
Ricardo Benzaquen de Araújo foi um proeminente intelectual, notabilizado como autor de estudos de referência sobre o pensamento social brasileiro, área de pesquisa interdisciplinar, hoje tradicional, que ajudou a consolidar como um dos fundadores e líderes, além de membro assíduo, de seu Grupo de Trabalho na Anpocs. Nasceu em Manaus (AM) no dia 20 de janeiro de 1952 e faleceu no dia 1º de fevereiro de 2017.
Já radicado no Rio de Janeiro, fez o ginásio no Colégio Mello e Souza e o curso clássico do ensino secundário no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde, segundo relata, aprendeu o esprit de corps institucional que orientaria sua conduta profissional. Seus anos de aprendizado prosseguem na graduação em história na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), de 1970 a 1974. Ali, fascinado pela descoberta de autores da chamada história social, como Marc Bloch, Georges Duby e Jean-Pierre Vernant, e influenciado pelo trio de mestres Luiz Costa Lima, Ilmar Rohloff de Mattos e Francisco Falcon, Ricardo começaria a desenvolver uma perspectiva interdisciplinar da história em diálogo com as ciências sociais, que viria a se transformar em potência de seu pensamento dificilmente domesticável pela ordeira classificação em especializações e pelas métricas do conhecimento acadêmico atual.
Ricardo jamais deixaria sua Alma Mater na carreira que então principiava. Em 1975, assumia a docência como uma vocação no Departamento de História da PUC-Rio; ao mesmo tempo, a atração pelas ciências sociais o levaria ao mestrado em antropologia social (1975-1980) no Museu Nacional da UFRJ, sob a orientação de Gilberto Velho. Testando-se nessa nova posição, a dissertação “Os gênios da pelota: um estudo do futebol como profissão” entra no campo de uma das paixões do antropólogo vascaíno, seguindo, a partir de entrevistas com jogadores em diferentes momentos da carreira, as pistas das representações do jogo construídas pelos seus discursos. Nesse estudo ainda atual – só recentemente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social –, Ricardo discute: as razões predominantes da escolha por essa profissão – chance de enriquecimento e de autorrealização –; as categorias elementares “nativas” a que atribuem o sucesso – em particular, o talento, característica inata e individual, e uma personalidade marcada pelo autocontrole de qualidades opostas: humildade, mas não abatimento; sangue frio, mas não indiferença; raça, mas não violência –; e as relações conturbadas e paternalistas dos jogadores com os dirigentes de seus clubes.
Paralelamente às aulas e ao mestrado, Ricardo passa a integrar, de 1977 até 1987, o importante projeto “Brasiliana” do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, que reuniu o primeiro e maior grupo de pesquisa sobre o pensamento social brasileiro, sobretudo dos anos 1920 e 1930. No âmbito desse projeto, que marca a rotação de seu interesse para o pensamento brasileiro, Ricardo desenvolve seu estudo sobre o integralismo, que pretendia comparar as obras de Plínio Salgado, Miguel Reale e Gustavo Barroso. Entre outros resultados, a pesquisa deu origem a Totalitarismo e revolução: o integralismo de Plínio Salgado, publicado pela Zahar, em 1988. Nesse livro, realiza novamente uma exegese minuciosa das categorias internas ao discurso dos atores (que, nesse caso, são autores) a fim problematizar a redução do integralismo ao tradicional conservadorismo, ideologia europeia de caráter aristocrático hierarquizante e desmobilizante, e demonstrar sua proximidade às experiências totalitárias da direita revolucionária, de extração plebeia e típica de movimentos fascistas europeus, que afirmava um ideal de liberdade como participação político-social permanente – transformando todos os cidadãos em militantes –, bem como uma noção peculiar de igualdade, que implicava na homogeneização de valores.
Ricardo volta ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ em 1985 para cursar o doutorado, dessa vez orientado por Otávio Velho. Em 1987, é contratado para o corpo docente de sociologia do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), instituição com que manteria vínculo até 2010 e onde ocuparia os cargos de diretor de seminários e publicações e de ensino. Sua tese de doutorado, defendida em 1993, viraria o livro Guerra e paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30, publicado pela Editora 34, em 1994, e premiado com o Jabuti. Essa que seria reconhecida como a magnum opus de Ricardo representa uma notável renovação nas pesquisas sobre a obra de Gilberto Freyre, autor cujos rótulos de reacionário e racista garantiam até então sua proscrição do debate acadêmico. Ao qualificar sua noção de raça, distinguindo-a de cultura e identificando-a com as teorias neolamarckianas, ancoradas na ideia de adaptação, mostra como Freyre busca construir uma outra versão da identidade nacional, em que a obsessão com o progresso e a razão, com a integração do país na marcha da civilização, é substituída por uma ênfase no hibridismo e nas ambiguidades da nossa formação social singular. Com isso, restitui também complexidade e matizes à concepção sincrética de mestiçagem de Freyre, que guardaria “a indelével lembrança das diferenças presentes na sua gestação”, recusando-se “a se desfazer e a se reunir em uma entidade separada, original e indivisível”, e fundamentaria a tese dos antagonismos em equilíbrio que caracteriza a sociedade brasileira e costura Casa-grande & senzala. Além disso, Ricardo não deixa de apontar o sentido original que Freyre confere a essa expressão: se no contexto inglês antagonismos em equilíbrio se aplica à conciliação política entre homens livres, no Brasil se refere a relações sociais assimétricas de dependência e submissão entre proprietários e escravos, entre portugueses e colonos nativos.
A partir dos anos 2000, as preocupações de Ricardo – “um etnógrafo no tempo”, na denominação precisa de José Reginaldo Gonçalves – passam a se concentrar na questão da automodelagem do self e ampliam seu escopo, recuando até Joaquim Nabuco e seus contemporâneos, sem abandonar o diálogo com o modernismo e o ensaísmo dos anos 1920 e 1930. É possível considerar a dedicação de Ricardo ao tema da formação – como professor, orientador, pesquisador e generoso debatedor – uma forma de sua própria vocação, exercida na interlocução com gerações de jovens estudantes e com colegas. Como lembra justamente sua ex-aluna Luiza Larangeira, um de seus topoi prediletos era a imagem de Deus modelando o homem do barro e soprando em suas narinas o pneuma criador, o que lhe infundia a capacidade de se automodelar. De acordo com Simmel, um dos autores-chave de Ricardo, só o autoaperfeiçoamento pelo cultivo das potencialidades abriria a possibilidade de ressubjetivação da sociedade face ao domínio da “cultura objetiva”.
O conjunto de artigos que Ricardo publicou ao longo de sua exitosa trajetória intelectual, devotada à formação e comprometida com a construção institucional, foram recolhidos em Zigue-zague: ensaios reunidos (1977-2016), por ele idealizado, mas só postumamente editado. O título – e cada ensaio do livro atesta que Ricardo tinha exímio talento para títulos – funciona aí como metáfora crítica da moderna concepção iluminista de história e sua vã pretensão totalizante de controlar ou abolir a tragédia e o acaso. E, por meio de seu característico exercício socrático da erudição, os ensaios escavam camadas de significados cristalizadas pelo acúmulo de intepretações sobre os autores, revelando os mais delicados matizes de tom no claro-escuro de seu pensamento a partir de humildes “impressões”, como Ricardo significativamente prefere nomear seus argumentos. Enfim, como diz: “Não acredito muito em análises definitivas, particularmente nas elaboradas dentro da república das letras, pelo simples fato dela ser uma república”.
Sugestões de obras do autor:
Araújo, Ricardo Benzaquen de. Guerra e paz: Casagrande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.
Araújo, Ricardo Benzaquen de. Totalitarismo e revolução: o integralismo de Plínio Salgado. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
Araújo, Ricardo Benzaquen de. Zigue-zague: ensaios reunidos (1977-2016). Seleção e organização: Carmen Felgueiras, Marcelo Jasmin e Marcos Veneu. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo: Editora Unifesp, 2019.
Sobre o autor:
Gonçalves, José Reginaldo Santos. Um amigo do mundo. Sociologia & Antropologia, v. 7, n. 2, 2017, p. 545-556. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2238-38752017v729>.
Bastos, Elide Rugai. Sobre os princípios: Ricardo Benzaquen e o pensamento social. Sociologia & Antropologia, v. 7, n. 2, 2017, p. 557-578. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2238-38752017v7210>.