Por Simone Meucci (UFPR)
Roque Zimmermann (1939-2019), mais conhecido como “Padre Roque”, é um personagem sempre lembrado quando o assunto é a luta pela obrigatoriedade do ensino da sociologia e da filosofia na Educação Básica, iniciada na segunda metade dos anos de 1990 no Brasil.
Existe uma boa razão para esta lembrança, afinal de contas, Zimmermann, quando Deputado Federal, foi responsável pela elaboração do Projeto de Lei número 3.178, instrumento a partir do qual se iniciou, em 1997, um embate político em favor da sociologia nas escolas de todo o país. Na verdade, seu Projeto catalisou uma tendência visivelmente crescente nos sistemas estaduais de ensino e trouxe a batalha para o palco nacional, no âmbito do Congresso. (Brasil, 1997)
O termo “batalha” não é exagero. Ainda que o Projeto de Lei tenha tramitado com relativa facilidade na Câmara e no Senado, recebendo pareceres favoráveis de Deputados e Senadores, enfrentou forte oposição do Poder Executivo que culminou, em 2001, com o veto da lei pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. A isso se seguiu uma mobilização notável de movimentos estudantis, universidades e associações (entre as quais a Sociedade Brasileira de Sociologia) que, diante do veto, traçaram duas estratégias de ação: por um lado, apelaram ao Conselho Federal de Educação e, por outro, iniciaram nova tramitação parlamentar. Ambas foram igualmente exitosas: em 2006 foi publicado parecer favorável do Conselho e, finalmente, em 2008, o presidente em exercício, José de Alencar, sancionou a lei que obrigava, em um prazo máximo de três anos, a oferta da disciplina em todas as escolas de Ensino Médio do Brasil. (Azevedo, 2014) (Brasil, 2006; 2008)
O êxito nesta empreitada possivelmente está relacionado à obstinação de seus protagonistas e à aglutinação de esforços de diferentes agentes e agências, mas também se deve a um contexto de transição democrática no qual a educação escolar passou a ser depositária de expectativas para o desenvolvimento de uma socialização adequada ao novo regime político. Em particular, disciplinas situadas dentro do campo que se convencionou denominar de “humanidades”, foram entendidas como imperativas para o desenvolvimento de competências para a democracia.
Zimmermann foi, pois, um agente fundamental que atuou no Comitê de Educação, Cultura e Desporto da Câmara orientado por essa esta difusa esperança de que a intervenção escolar, através de conteúdos “humanizadores”, contribuiria para a democratização da sociedade.
Em sua ação a favor da curricularização obrigatória da sociologia e da filosofia, apelou para o enunciado no artigo 36 do texto original da Lei de Diretrizes e Bases da Educação que dizia que ambas disciplinas eram “necessárias para o exercício da cidadania”. (Brasil, 1996). No Projeto, Zimmermann argumentou que, se a legislação nacional as qualificava como necessárias, elas deveriam figurar como componente curricular obrigatório do Ensino Médio em todo o território do país. Em resumo, ele encontrou fundamento para a reinvindicação na norma, estabelecendo equivalência entre a necessidade instituída pela lei e a imperiosidade curricular das disciplinas, acrescentando que os dois campos de conhecimento beneficiavam o desenvolvimento da consciência crítica dos indivíduos, faculdade indispensável para a prática da autonomia e da liberdade em contextos democráticos.
É importante também destacar que exatamente no mesmo período, em 1997, Zimmermann agiu também, e de modo igualmente exitoso, em favor do Ensino Religioso, disciplina que, embora estivesse originalmente prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, era alvo de controvérsia: não havia clareza quanto à responsabilidade do Estado em arcar com os custos financeiros de sua institucionalização. O Parlamentar ajudou então a elaborar sentidos abrangentes para a disciplina argumentando, em seu parecer ao Comitê de Educação, que a promoção de uma visão transcendental, universal e ética da vida humana, conteúdo inescapável do Ensino Religioso, é tarefa imperiosamente necessária à democracia, sendo, portanto, de interesse e de responsabilidade do setor público o seu ensino. Seus argumentos sustentaram a elaboração do texto substitutivo ao artigo 33 Lei de Diretrizes e Bases que reconheceu, finalmente, a responsabilidade pública pelo Ensino Religioso, argumentando que sua aprendizagem, excluídas todas as formas de proselitismo e respeitada a liberdade religiosa, é parte constituinte da formação cidadã. (Brasil, 1997b)
Em razão desta atividade parlamentar de Zimmermann no campo educacional, cujos efeitos foram mudanças significativas na então recente legislação nacional, o pesquisador Luiz Antônio Cunha considera-o ironicamente o “sacerdote protagonista da reforma da Lei de Diretrizes e Bases da Educação”. (Cunha, 2016: 683),
Mas cumpre destacar que, embora na esfera da educação suas ações tenham sido sabidamente consequentes, não foi apenas este tema o alvo privilegiado de sua preocupação. Sua carreira política – que compreendeu dois mandatos de Deputado Federal pelo Paraná (de 1995 a 2002) em cujo período houve uma licença de três anos (de 2003 a 2006) quando ocupou o cargo de Secretário do Trabalho do Estado -, em particular os assuntos relacionados à agricultura familiar e direitos humanos também mereceram sua dedicação.
Sensível aos movimentos sindicais de trabalhadores rurais e à questão da agroecologia, Zimmermann atuou em Comissões Permanentes e Especiais do Congresso para promulgação do Estatuto da Terra e preservação do Patrimônio Genético, além de, no governo do Paraná, frequentemente mediar, em favor dos camponeses, conflitos entre o Movimento Sem Terra e proprietários rurais. Na área dos direitos humanos, o então Deputado destacou-se em atividades para Comissões Externas da Câmara, voltadas às investigações acerca de violações de direitos dos trabalhadores rurais, especialmente prostituição, escravidão, adoção ilegal e tráfico de menores.
Nesse sentido, olhando de forma mais abrangente suas atividades parlamentares e executivas, observamos que Zimmermann entendia que a luta pela consolidação da democracia exigia, além da transformação dos valores no plano educacional, também um trabalho persistente na luta contra opressão que se traduziu, no seu caso, numa abordagem tanto em defesa dos movimentos de redistribuição da propriedade, quanto compromissada com o reconhecimento aos direitos sociais fundamentais de populações marginalizadas, pobres e crianças.
Um aspecto relevante e pouco conhecido da trajetória de Zimmermann é a publicação, em 1986, do livro “América Latina, o não ser”. Este livro nos ajuda a entender os fundamentos de sua faina. Consiste na sistematização das ideias do filósofo argentino Enrique Dussel, considerado um dos fundadores da “Filosofia da Libertação”. Zimmermann compartilha dos ideais do autor interpretando-os como testemunho da emergência de uma nova razão emancipadora, a “metafísica da alteridade” que, como o nome sugere, exige uma atitude cognitiva e ética comprometida com a percepção do Outro. O Outro é o termo usado para qualificar tanto indivíduos quanto coletividades vítimas de opressão; pode ser a América Latina, um grupo de camponeses ou cada pessoa desrespeitada, torturada, seja indígena ou mestiça, colonizada no campo e na cidade, subnutrida ou alienada. (Zimmermann, 1987, 180)
Com efeito, o compromisso de Zimmermann com a a dignificação da vida dos oprimidos, tão nitidamente expresso neste livro, foi pavimentado ao longo de uma trajetória marcada indelevelmente pela origem simples e rural, pelo sacerdócio e pelos estudos filosóficos numa época especialmente fecunda.
Natural de Santo Cristo, uma cidadezinha agrícola a Oeste do Estado do Rio Grande do Sul, próxima à fronteira com Argentina, Zimmermann teve o destino de muitos jovens de famílias numerosas de imigrantes pobres: foi recrutado, entre os irmãos, para ser padre. Não sabemos precisamente quando foi que encontrou a Teologia da Libertação. O que é certo é que se formou em Filosofia no Seminário de São José de Passo Fundo no início dos anos de 1960 e entre 1963 e 1967 cursou Teologia na Universidade Católica Gregoriana na Itália.
Este foi um período de profundas mudanças na Igreja em direção a uma prática evangelizadora comprometida com a justiça social e tudo leva a crer que o jovem sacerdote gaúcho acompanhou as transformações desde seu epicentro acompanhando também sua enorme repercussão na América Latina.[1] Quando voltou ao Brasil, nos anos mais duros da ditadura, Zimmermann cumpriu o sacerdócio, estudou Letras e logo iniciou carreira docente como professor de Ensino Superior no Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa onde participou ativamente do movimento sindical. Entre os anos de 1984 e 1986, fez curso de Mestrado em Ciências na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. No ano seguinte, 1987, se filiou ao Partido dos Trabalhadores e em 1993, iniciou o curso de doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, deixando-o inconcluso possivelmente devido ao ingresso na carreira política no ano seguinte. Finalizada a experiência parlamentar em 2002, retornou a Ponta Grossa voltando às suas atividades docentes na Universidade. Em 2007, no período dos escândalos do mensalão e após derrotado numa disputa política interna, desfiliou-se do Partido dos Trabalhadores e voltou a atuar como sacerdote até sua morte em 2019.
Zimmermann pertence, pois, a uma geração de homens (na qual despontam especialmente Leonardo Boff e Paulo Evaristo Arns), cuja prática não distingue nitidamente a atividade religiosa da política, a fé da razão. Seu legado para todos nós é ter possibilitado um encontro entre o conhecimento sociológico e a escola no firme compromisso com a democracia.
Referências
AZEVEDO, Gustavo Cravo. Sociologia no Ensino Médio: uma trajetória político-institucional. Dissertação de Mestrado em Ciência Política, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/handle/1/9985/Disserta%c3%a7%c3%a3o%20Gustavo%20Cravo.pdf?sequence=4&isAllowed=y
BRASIL. Lei no. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Presidência da República. Casa Civil, 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
BRASIL. Projeto de Lei no. 3.178, de 1997. Brasília: Diário Câmara dos Deputados. 1997 15307. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD07JUN1997.pdf#page=73
BRASIL. Projeto de Lei no. 2.757, de 1997. Brasília: Câmara dos Deputados. 1997b. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=61CDEBE256E0069DB71E2566E4BBBA9F.node1?codteor=1132296&filename=Avulso+-PL+2757/1997 PL ER1
BRASIL. Parecer CNE/CEB no. 38/2006. Inclusão obrigatória da filosofia e sociologia no currículo do ensino médio. Brasília: Ministério da Educação. Conselho Federal de Educação, Câmara da Educação Básica. 2006a. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pceb038_06.pdf
BRASIL. Lei n. 11.684, de 2 de junho de 2008. Altera o art. 36 da lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio. Diário Oficial da União, 2008.
CUNHA, Luis Antonio. Entronização do ensino religioso na Base Curricular Comum. Educação & Sociedade. v. 37, n. 134, pp. 266-284, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/ES0101-73302016158352
Sugestão de obra do autor:
ZIMMERMANN, Roque. América Latina, o não ser: uma abordagem filosófica a partir de Enrique Dussel (1962-1976). Vozes: Petrópolis, 1987.
[1] Não podemos, pois, esquecer que no período de 1962 a 1965 houve o Concílio do Vaticano II que, convocado pelo Papa João XXIII para refletir sobre as possibilidades de modernização da liturgia e da pastoral católica, resultou em um conjunto de documentos que, entre outras coisas, orientava a aproximação dos sacerdotes e leigos ao mundo mundano. Como se sabe, na América Latina o Concílio teve influência sobre a atuação de certos setores da Igreja no enfrentamento dos problemas sociais e dos regimes ditatoriais em curso no continente.