Paulo César Alves

Por Maycon Lopes (UFBA)

Paulo César Alves (Salvador, 1951) é o atual decano do departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia, onde é Professor Titular desde 1999. Figura entre suas realizações institucionais a coordenação do processo que culminou na instauração, nos finais dos anos 1990, daquela que durante alguns anos foi a única formação em nível doutoral na área de ciências sociais no estado da Bahia, o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA. Comprometido com a consolidação e o desenvolvimento da pós-graduação na instituição, engajou-se ativamente, já em 2007, na criação do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (UFBA), do qual foi o primeiro coordenador.

Destaca-se também sua participação, ao longo dos anos 1990, na Comissão de Ciências Sociais em Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Paulo César coordenou a comissão entre 1997 e 1999, fortalecendo e conferindo visibilidade ao trabalho dos cientistas sociais na construção do campo da saúde. Por sua vez, no âmbito da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Paulo César esteve ligado a um núcleo de cientistas sociais[1], cujo empenho foi decisivo para a abertura e estruturação de um novo eixo temático nessas associações científicas, focado no estudo de fenômenos relacionados à saúde.

Responsivo aos desafios colocados pelo campo científico, esboçar sua trajetória implica em recuperarmos um movimento mais amplo, ou melhor, um duplo movimento de ascendência das ciências sociais no Brasil, impulsionado por frentes de trabalho renovadas. Vemos, de um lado, a crescente legitimação das ciências sociais na saúde coletiva; de outro, assistimos à institucionalização, no seio das ciências sociais, dessa linha de investigação, em sociologia e antropologia da saúde. Os esforços de Paulo César na constituição desse campo no qual é um dos personagens precursores não se restringiram a tais iniciativas. Podemos verificar a seguir que seu lugar nessas histórias (inter)disciplinares não está dissociado da ambição de introduzir novos rumos e aportes analíticos no conhecimento sociológico.

Filósofo de formação, graduado em 1973 na Universidade Católica do Salvador, Paulo César transita no domínio da filosofia sem, entretanto, subordinar o conjunto de problemáticas propriamente sociológicas à leitura do texto filosófico. Em vez disso, sua obra explicita como encontrara na filosofia uma fonte de perspectivas capaz de fazer face à complexidade inerente a questões centrais na teoria social – dramatizadas, por exemplo, nas antinomias estrutura e agência. Diríamos que sua produção, tendo à partida objetos de pensamento que variaram ao longo da carreira acadêmica, endereça um comentário arguto a discussões clássicas do pensamento social. Esse traço é, sem dúvida, revelador do compromisso e investimento do autor na arena teórica.

A filosofia lhe parece uma entrada importante inclusive para a apreensão dos fundamentos da sociologia enquanto ciência. Isto é, os pressupostos epistêmicos em que suas correntes estão radicadas e o quadro de referências que a orientam. Preocupações de ordem metateórica atravessam o conjunto de sua obra, permitindo ao leitor um aprofundamento nos construtos teóricos e analíticos fornecidos pela teoria social. É sobre este solo que Paulo César formula suas contribuições às ciências sociais.
Em seu processo formativo, há que destacarmos a interlocução com Antônio Luís Machado Neto, que orientou a dissertação defendida por Paulo em 1980 no Mestrado em Ciências Humanas (concentração em Sociologia da Cultura) da Universidade Federal da Bahia. Machado Neto é uma figura chave não somente na trajetória de Paulo César, de quem foi amigo pessoal, como na divulgação da tradição fenomenológica e existencialista no campo das ciências sociais do Brasil – façanha que Paulo tem prolongado como um de seus herdeiros intelectuais. Foi através de Machado Neto que ele teve o primeiro contato com tais escolas de pensamento, principalmente no que se refere às obras de Husserl, Sartre, Ortega y Gasset e Schutz.

A formação nessas tradições tem larga consequência nas elaborações conceituais do nosso autor, como também em sua carreira docente, mestre de várias gerações. Alguns anos depois de retornar de seu doutorado em Sociologia na Inglaterra (Universidade de Liverpool, 1990), ainda sob a clareira aberta pela dedicação ao estudo dessas correntes filosóficas, Paulo foi um dos fundadores do ECSAS, então Núcleo de Estudos em Ciências Sociais, Ambiente e Saúde.

Vinculado à Universidade Federal da Bahia, o ECSAS foi criado após coordenar, em parceria com a Professora Miriam Rabelo, a realização do I Encontro Nacional de Antropologia Médica (Salvador, 1993). Desnecessário dizer que a criação do núcleo é parte desse complexo de iniciativas responsável pela expansão e vitalidade do campo que Paulo buscou edificar no Brasil.

Desde então, o hoje designado Núcleo de Estudos sobre Corpos, Sensibilidades e Ambientes (ECSAS), reúne-se em todas as tardes de sexta-feira na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Como Machado Neto, a quem reportam ter reunido em torno de si uma escola, inclusive no sentido afetivo – onde pensamento e vida não se encontram divorciados – o perfil de Paulo faz eco a esse temperamento; generoso, aberto, gregário. O ECSAS nutre interesse, qual Paulo durante sua trajetória, por objetos diversos, constituindo-se antes enquanto grupo a partir de uma abordagem e de um estilo de pensamento afins do que de um objeto bem delimitado.

Dinamizado por pesquisadores em diversos níveis de formação, Paulo imprimiu no núcleo, com sua interlocução exigente, suas intervenções provocadoras e seu caráter amigo, uma atmosfera ricamente afetiva. Animado por trocas acadêmicas receptivas ao debate e ao cultivo do dissenso, o grupo é um celeiro em cuja produção se vê refletir uma linhagem de pesquisadores formados em diálogo com o professor Paulo César. Desse modo, sua atuação acadêmica de décadas colaborou para configurar um campo de trabalho que tem como horizonte de referências uma atenção à prática, em criativa interface com os postulados de inspiração fenomenológica e do pragmatismo clássico.

Nessa esteira, os projetos em saúde conduzidos por Paulo repousam na centralidade da noção de experiência. Frente à complexidade da sociedade brasileira, o autor identificou nas assim chamadas “ciências sociais em saúde”[2], onde sua obra assume maior repercussão, uma insuficiência no paradigma causal e explicativo, predominante nesses estudos no Brasil entre os anos 80 e 90 do século passado. Havia um impasse nessa seara, que ora acentuava a dimensão macrossociológica (estrutural) para dar conta dos processos de adoecimento e saúde, ora calcava-se sobremaneira no primado das “representações sociais”, ou, se assim quisermos, sobre uma interpretação “subjetivista”.

É nesse debate ladeado por pontos de vista de princípio concorrentes que seu trabalho se insere. Em linha com algumas das tendências mais recentes da teoria social contemporânea, protagoniza reformulações teórico-metodológicas que se contrapõem a tais posições. Suas pesquisas sobre itinerários terapêuticos – área de reflexão que Paulo contribuiu para estabelecer no Brasil – são um exemplo de como esse esforço em que consiste um movimento de reformulação pode beneficiar a sociologia. A sofisticação que acompanha sua produção, à lume de uma correspondência entre ordenamento empírico e síntese apurada, confere àquele corpo de trabalhos um lugar de referência até os dias presentes.

Paulo César, em articulação com outras pesquisadoras, nomeadamente Miriam Rabelo e Iara Souza, propôs um marco alternativo às posições expostas acima, inaugurando novas problemáticas e estabelecendo uma agenda de pesquisa e uma abordagem original no domínio das ciências sociais em saúde. Publicado em 1999, Experiência de Doença e Narrativa é o resultado mais substantivo dessa colaboração. A obra, que integra uma série de livros que estrearam a coleção Antropologia e Saúde da Editora Fiocruz, apresenta os avanços que uma mirada fenomenológica pode oferecer à compreensão das dinâmicas de adoecimento e busca de tratamento.

Em resumo, o programa ali definido tem por fio condutor a “experiência”, que solicita que o cientista social “desça” ao nível da prática concreta, a esse plano que testemunha as muitas maneiras com que os atores se confrontam com os problemas que emergem na vida cotidiana. O conceito de experiência seguramente comporta um elemento de retomada, na medida em que o sujeito da ação é guiado por um senso de pertença e familiaridade com um mundo em que está envolvido. Mas esta noção faculta também hesitações e abertura para o novo, para um campo de possibilidades que, não sendo dado de antemão, nunca é inteiramente previsível.

O que segue à ação escapa de propensões deterministas a que uma análise estrutural pode incorrer. A dimensão de contingência e indeterminação que o conceito de experiência, quando incorporado no arcabouço de uma pesquisa socioantropológica, deixa antever, não é senão imanente à ação humana e à historicidade que lhe é própria.

A recepção interessada da obra de Paulo César não se limita ao Brasil. Sua trajetória como professor convidado em instituições nacionais e estrangeiras, com destaque para a Universidade de Buenos Aires, evidencia o alcance de seu trabalho. Sem abdicar de comparecer à revista de tópicos caros à história do pensamento sociológico, Paulo segue contribuindo com outras linhas de investigação, como a relação entre literatura e saúde. Isso é apenas outro modo de dizer que, intelectual por vocação, também ele experimenta o inacabamento do mundo, e do ser – percepção que mobiliza seu trabalho e que o convoca vigorosamente.

Paulo tampouco fala em deixar a sala de aula. Fazer com que os outros reluzam, ímpeto que cumpre todo e cada mestre, é um sentimento duradouro em seu perfil. De grande Professor.

Sugestões de obras do autor:

ALVES, P. C. Fenomenologia e teoria social. Civitas, Porto Alegre, v. 21, n. 1, p. 12-22, 2021.

ALVES, P. C. Clássicos/Contemporâneos: A relação entre a teoria sociológica clássica e a teoria sociológica contemporânea. In: FAZZI, R. C.; LIMA, J. A. (Orgs.). Campos das Ciências Sociais: Figuras do Mosaico das Pesquisas no Brasil e em Portugal. Petrópolis: Vozes, 2020. p. 124-142.

ALVES, P. C.; NASCIMENTO, L. F. (Orgs.). Novas Fronteiras Metodológicas nas Ciências Sociais. Salvador: EDUFBA, 2018.

ALVES, P. C. Itinerário terapêutico e os nexus de significados da doença. Política & Trabalho, João Pessoa, n. 42, p. 29-43, 2015.

ALVES, P. C.; RABELO, M. C.; SOUZA, I. M. Hermenêutica-fenomenológica e compreensão nas ciências sociais. Sociedade e Estado, Brasília, v. 29, n. 1, p. 181-198, 2014.

ALVES, P. C. A teoria sociológica contemporânea: da superdeterminação pela teoria à historicidade. Sociedade e Estado, Brasília, v. 25, n. 1, p. 15-31, 2010.

ALVES, P. C (Org.). Cultura: Múltiplas leituras. Bauru; Salvador: EDUSC; EDUFBA, 2010.

ALVES, P. C. A fenomenologia e as abordagens sistêmicas nos estudos sócio-antropológicos da doença: breve revisão crítica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 8, p. 1547-1554, 2006.

RABELO, M. C.; ALVES, P. C.; SOUZA, I. M. Experiência de Doença e Narrativa. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. Disponível em: http://books.scielo.org/id/pz254.

ALVES, P. C.; RABELO, M. C. (Orgs.). Antropologia da Saúde: Traçando Identidade e Explorando Fronteiras. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fiocruz, 1998. Disponível em: http://books.scielo.org/id/by55h.

ALVES, P. C.; MINAYO, M. C. S. (Orgs.). Saúde e Doença: Um Olhar Antropológico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. Disponível em: http://books.scielo.org/id/tdj4g.

ALVES, P. C. A experiência da enfermidade: considerações teóricas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 263-271, 1993.

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[1]Encontram-se entre esses estudiosos Carlos Caroso (UFBA), Ceres Victora (UFRGS), Daniela Riva Knauth (UFRGS), Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ), Madel Therezinha Luz (UERJ), Miriam Rabelo (UFBA) e Ondina Fachel Leal (UFRGS).
[2]Atualmente a subárea é denominada de Ciências Sociais e Humanas em Saúde.