Por Mariana Siracusa (PPCIS-UERJ)
Oracy Nogueira nasceu em 17 de novembro de 1917 em Cunha, cidade no Vale do Paraíba do Sul no estado de São Paulo. Filho de professores normalistas católicos, teve uma infância marcada pelos valores éticos cristãos, dos quais ele procurou se distanciar ao longo de sua vida. Entre 1931 e 1932 a família muda-se para a cidade de Botucatu, onde Oracy completou a formação escolar e posteriormente atuou como repórter e redator do jornal Correio de Botucatu. Data do mesmo período a participação, como voluntário, da Revolução Constitucionalista de São Paulo, experiência relatada em “A revolução constitucionalista de 1932: recordações de um voluntário” (1992). Essa experiência pode ter aflorado um interesse pela política que se manifestou, de forma mais contundente, a partir das leituras marxistas e a posterior filiação ao Partido Comunista Brasileiro, onde permaneceu até 1960. A adesão ao socialismo intensificou o interesse de Oracy pelas “pessoas de cor”, nos seus termos, pela predominância de negros entre os trabalhadores.
Em 1936, Oracy se isola da família para o tratamento de uma tuberculose em São José dos Campos, experiência que impactou sobremaneira sua atividade intelectual. Já recuperado, em 1940, muda-se para a cidade de São Paulo e ingressa no curso de bacharelado em Ciências Políticas e Sociais da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), onde tornou-se bolsista de Donald Pierson. Dois anos depois concluiu o bacharelado, passando, assim, a integrar o corpo docente da ELSP, como assistente de Pierson, ao mesmo tempo em que ingressou na primeira turma de mestrado da ELSP. Sua dissertação de mestrado, defendida em 1945, é um reflexo da sua experiência no tratamento da tuberculose. “Vozes de Campos de Jordão. Experiências sociais e psíquicas do tuberculoso pulmonar no Estado de São Paulo”, publicada em 1950, é um estudo etnográfico sobre estigma, antes da formulação consagrada por Goffman, com ênfase na organização social – retrato da sua vivência pessoal marcada pela segregação e pelo preconceito, conceitos que perpassaram toda a reflexão intelectual do autor.
O convênio estabelecido entre a ELSP e a Universidade de Chicago permitiu que Oracy Nogueira fizesse seu doutorado na universidade americana, sob orientação de Everett Hughes. A experiência nos Estados Unidos possibilitou, por um lado, o contato com professores dos departamentos de Sociologia e Antropologia, localizando a produção de Nogueira no confluência entre esses dois campos disciplinares, ainda não tão separados no Brasil à época; e o estudo das relações raciais norte-americanas, que se desdobrou em diversos trabalhos. A tese de doutorado, entretanto, não chegou a ser defendida. Em função do contexto político da época e da sua filiação ao Partido Comunista Brasileiro, foi impedido de retornar aos EUA para a defesa.
No retorno ao Brasil em 1947, Oracy Nogueira integrou o quadro de docentes da ELSP, assumindo turmas na pós-graduação e desenvolvendo pesquisas. Nesse mesmo ano assumiu a direção, primeiro com Emílio Willems e depois com Donald Pierson, da Revista de Sociologia, permanecendo até 1958. Nesse período desenvolveu extensa pesquisa sobre as relações raciais no Brasil, sintetizadas na trilogia: “Atitude Desfavorável de alguns anunciantes de São Paulo em relação aos empregados de cor” (1942), “Relações raciais no município de Itapetininga” (1955), “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem (sugestão para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil)”(1955). No primeiro artigo, sobre os anúncios de emprego em um jornal paulista, Oracy enunciou a diferença entre o preconceito racial no Brasil de outras experiências e classificou a experiência brasileira como ‘preconceito de cor’.
O segundo trabalho, publicado em 1955, teve seu início quatro anos antes, no contexto do projeto UNESCO que, em São Paulo, foi dividido entre os trabalhos sobre as relações raciais na capital, que ficaram sob a reponsabilidade de Florestan Fernandes e Roger Bastide e no interior, comandados por Oracy Nogueira. A pesquisa foi desenvolvida na cidade de Itapetininga, articulando, do ponto de vista metodológico, observação participante e dados históricos e estatísticos, no intercruzamento entre a antropologia e a sociologia, fruto da formação de Oracy na ELSP. É nessa obra que surge o termo preconceito racial de marca como expressão de um padrão racial típico do Brasil.
Por fim, a terceira obra, mais conhecida do autor, traz o acúmulo teórico e metodológico das anteriores. Em “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem”, Oracy Nogueira faz uma comparação entre as relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos compreendendo o preconceito racial nos dois países, não em termos de intensidade, mas como resultado de critérios específicos de classificação e organização social, que determinam tipos particulares de preconceito. Na sociedade americana a base do preconceito racial são as relações de descendência, configurando um preconceito de origem; na sociedade brasileira, por sua vez, o preconceito se expressa pela aparência, configurando um preconceito de marca.
“Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem” trouxe uma contribuição fundamental para o debate das relações raciais colocado no Brasil na década de 1950. Reconheceu a existência de preconceito racial no Brasil como sendo de um tipo distinto de outras experiências e o transformou em problema central nesse debate. Além disso, ganha destaque o rigor metodológico no qual a obra foi escrita. Apoiado na comparação como recurso metodológico, o texto expõe conceitos, tratados como tipos ideais, para a interpretação das relações raciais no Brasil, sendo uma chave analítica que deveria ser testada por outras pesquisas.
Em 1952, Oracy assumiu uma vaga de técnico administrativo no Instituto de Administração da Universidade de São Paulo (USP) atuando em diversas pesquisas como chefe do Setor de Pesquisa Social do Instituto. Cinco anos mais tarde, a convite de Darcy Ribeiro, mudou-se para o Rio de Janeiro para trabalhar no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do Ministério da Educação, inserido no projeto dos municípios-laboratórios, mais especificamente, no Curso de Aperfeiçoamento de Pesquisadores Sociais, além de atuação em pesquisas desenvolvidas pelo Centro.
De volta a São Paulo em 1961, Oracy desligou-se oficialmente da ELSP (atualmente FESPSP), passando a atuar exclusivamente na USP como técnico do Instituto de Administração. No ano seguinte, publicou pela CBPE, o que teria sido sua tese de doutorado, “Família e comunidade, um estudo sociológico de Itapetininga”, um clássico estudo de comunidade e das relações familiares, com a incorporação inovadora da dimensão histórica nessa área. Em 1968 assume a cadeira de Sociologia II da Faculdade Municipal de Ciências Econômicas e Administrativas de Osasco, com a defesa da tese de livre docência “Contribuição ao estudo das profissões de nível universitário no Estado de São Paulo” uns dos primeiros trabalhos sobre Sociologia das Profissões no Brasil. Com a reforma universitária de 1968, Oracy transferiu-se para o Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, ficando responsável pela cadeira de Métodos e Técnicas de Pesquisa. Em 1980 tornou-se professor titular de sociologia aplicada à economia, da Faculdade de Economia e Administração, onde se aposenta em 1983.
Na década de 1980, já aposentado, publicou a introdução de “Tanto preto quanto branco” (1985) que traz uma reedição dos artigos “Atitude desfavorável” e “Preconceito racial de marca”; e “Negro político, político negro” (1992), que traz uma biografia que mistura ficção e realidade para narrar a trajetória política do Dr. Casemiro de Abreu, prefeito de Cunha na Primeira República, que é um exemplo das suas reflexões sobre as relações raciais no Brasil: um político poderoso, com posses, que sofria preconceito por sua cor.
A trajetória de Oracy Nogueira revela um intelectual perspicaz que soube transformar as experiências pessoais em temas de pesquisa sociológica, feitas com o rigor metodológico e marcadas pela confluência entre a Sociologia e a Antropologia, que produziram ganhos analíticos às suas reflexões.
Sugestões de obras do autor
NOGUEIRA, Oracy. Atitude desfavorável de alguns anuciantes de São Paulo em relação aos empregados de cor. São Paulo: Sociologia vol.4 nº4, 1942
NOGUEIRA, Oracy. Vozes de Campos do Jordão: experiências sociais e psíquicas de tuberculoso pulmonar no estado de São Paulo. Sociologia, São Paulo, out. 1950.
NOGUEIRA, Oracy. ‘Relações raciais no município de Itapetininga’. In: Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. São Paulo, Anhembi, 1955.
NOGUEIRA, Oracy. ‘Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem’. In: Anais do XXXI Congresso Internacional de Americanistas e na separata relativa ao Symposium Etno-sociológico sobre Comunidades Humanas no Brasil. São Paulo, 1955.
NOGUEIRA, Oracy. Família e comunidade: um estudo sociológico em Itapetininga. Série Sociedade e Educação, Coleção Brasil Provinciano. Ministério de Educação e Cultura, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Rio de Janeiro, 1962.
NOGUEIRA, Oracy. Contribuição ao estudo das profissões de nível universitário no estado de São Paulo. Tese de Livre-Docência, apresentada à Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas de Osasco. Osasco, 1967.
Sobre o autor
Depoimento concedido à profa. Mariza Corrêa em 1984. Publicado em História, Ciências, Saúde. Manguinhos. Vol II, número 2, pp. 119-121, julho-outubro de 1995.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro – “Oracy Nogueira e a Antropologia no Brasil: o estudo do estigma e do preconceito racial”. In Revista Brasileira de Ciências Sociais, n° 31, ano 11, p. 5-28, junho de 1996. ANPOCS.