Norma Valencio

Por Victor Marchezini (Cemaden/MCTI)

A pandemia da Covid-19, iniciada em 2020, também impactou cientistas sociais, mobilizando-os(as) a analisar as causas e os efeitos desse desastre. Desde então cresceu o interesse na Sociologia dos Desastres. Muitos (as) se depararam com publicações de uma pioneira nesse tema no Brasil, a professora Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Graduada em Economia, mestre em Educação, doutora em Ciências Sociais e com três pós-doutorados em diferentes áreas do conhecimento e instituições (INPA, USP e Unicamp), Valencio enfrentou resistências acadêmicas para consolidar, desde 2003, a Sociologia dos Desastres como linha de pesquisa.

Fora dos muros da universidade, a realidade era outra. Os movimentos dos afetados por desastres, as defesas civis, gestores do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Assistência Social, conselhos de classe – como o Conselho Federal de Psicologia -, unidades do Ministério Público de Santa Catarina, Rio de Janeiro, Minas Gerais etc., jornalistas, cientistas de outras áreas do conhecimento constantemente falavam sobre a importância da “Sociologia dos Desastres”. Muitos tiveram acesso gratuito ao primeiro dos quatro volumes da coletânea “Sociologia dos Desastres: construção, interfaces e perspectivas no Brasil”, quando a Secretaria Nacional de Defesa Civil (SEDEC) financiou a obra para o V Seminário Internacional de Defesa Civil, ocorrido em novembro de 2009, um ano após o desastre do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Neste mesmo ano, Valencio foi agraciada com a Medalha de Defesa Civil, concedida pela SEDEC.

Embora o lançamento deste livro tenha sido um marco para os estudos sobre desastres no Brasil, a trajetória de Valencio neste tema remete há pelo menos seis anos antes, quando se tornou voluntária da defesa civil de São Carlos (SP) e iniciou suas pesquisas. Com o interesse de graduandos (as) em Ciências Sociais, Valencio – que já havia criado junto ao CNPq, desde 2005, o Grupo de Pesquisa “Sociedade e Recursos Hídricos” – constituiu o Grupo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (GEPED) – um embrião do que viria a ser formalizado como Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED/UFSCar), em 2005.

Desde esse período, CNPq, Fapesp e outras agências de fomento têm financiado as pesquisas de Valencio. Entre 2006 e 2009, o projeto “Representações sociais dos abrigos temporários no Brasil: uma análise sociológica de base qualitativa da ótica dos gestores públicos e dos abrigados em contexto de desastre relacionado às chuvas” gerou subsídios para a defesa dos direitos humanos dos afetados em desastres, disseminados em relatórios técnicos, artigos e capítulos de livro, produzidos por Valencio e orientandos(as).

Envolver os discentes nas pesquisas e nas publicações científicas sempre foi uma política de Valencio. Ao longo de sua carreira, orientou mais de 100 cientistas, pouco mais de um quarto no tema de políticas públicas de gestão de emergências e desastres, análise de danos e impactos – inclusive sob a dimensão etária, de gênero e étnico-racial -, conflitos na administração de abrigos temporários, educação para prevenção de desastres etc. Ao NEPED juntaram-se, inclusive, quatro graduandos de países africanos de língua portuguesa, a fim de estudarem políticas de gestão de risco de desastres e adaptação às mudanças climáticas em seus respectivos países. Dois deles vieram a ser orientados no mestrado e outro no doutorado.

Valencio também liderou diversas equipes interdisciplinares de pesquisa a fim de estudar, por exemplo, as vulnerabilidades de São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau aos desastres e às mudanças climáticas. Com apoio do CNPq, por meio do Programa Pró-África, coordenou instituições brasileiras e santomenses no apoio à formulação e implementação do Plano Nacional para Adaptação às Mudanças Climáticas do país insular, disseminando os resultados da pesquisa na coletânea “São Tomé e Príncipe, África: desafios socioambientais no alvorecer do sec. XXI”. Seus esforços de colaboração internacional continuam incluindo outros países, como Portugal, Índia, Reino Unido, México, além de participar em redes internacionais, como o Comitê de Sociologia dos Desastres, da Associação Internacional de Sociologia, e a Waterlat-Gobacit.

Ao longo de sua carreira, Valencio tem demonstrado compromisso não só com a pesquisa – foram 78 artigos publicados, 21 livros e 96 capítulos até setembro de 2022 –, mas também com atividades de ensino e extensão. Desde 2009 começou a ofertar a disciplina “Sociologia dos Desastres”, junto à graduação e programas de pós-graduação em que leciona. Em seus intercâmbios acadêmicos regionais teve destaque o Programa de Cooperação Acadêmica entre PPGS/UFSCar, PPGS/UFAM e PPGMDR/UFAC, financiado pela CAPES, entre 2008 e 2012, sob o título “Processos de territorialização e identidades sociais: construção material e simbólica do lugar em contextos político-econômicos e socioambientais distintos”. Em relação à extensão, a parceria realizada com o Conselho Federal de Psicologia, por meio do projeto “Abandonados nos desastres”, ainda influencia nas políticas públicas de proteção social e defesa civil.

Mesmo aposentando-se em 2016, Valencio continua atuante. De 2016 a 2019 atuou como professora visitante na Universidade de Aberdeen, Escócia. É professora sênior junto ao Departamento e Programa de Pós-graduação em Ciências Ambientais da UFSCar, além de professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da UNICAMP, participando e liderando projetos de pesquisa e extensão no tema de desastres e crises socioambientais correlatas, nos seus aspectos culturais, econômicos, políticos, institucionais e psicossociais.

Ao longo de sua trajetória na Sociologia dos Desastres, Valencio mantém seu compromisso com uma pesquisa voltada a reduzir as vulnerabilidades e injustiças socioambientais reveladas nos desastres, entendidos como processos sociais de longa duração sobre o território. Esse compromisso está refletido em suas publicações científicas, entrevistas aos meios de comunicação, palestras e minicursos para gestores públicos, comunidades e jornalistas. Mas também está refletido em sua coragem de equilibrar-se nas marombas durante as inundações de 2009 em Manaus a fim de dar voz aos atingidos, em recuperar-se de cirurgias a tempo de viajar para São Tomé e Príncipe e visibilizar os impactos de um país comido pelas bordas, em adaptar-se ao extravio de bagagem e realizar sua missão em Guiné-Bissau, no pós-guerra civil. Em outras palavras, Valencio coloca a Sociologia dos Desastres como um ideal, mais que um meio de fazer uma carreira.

Sugestões de obra da autora:

VALENCIO, Norma; OLIVEIRA, Celso Maran de (Org.). COVID-19: Crises entremeadas no contexto de pandemia (antecedentes, cenários e recomendações). 1. ed. São Carlos: CPOI/UFSCar: 2020. v. 1. 447p. Disponível em: https://www.sibi.ufscar.br/arquivos/covid-19-crises-entremeadas-no-contexto-de-pandemia-antecedentes-cenarios-e-recomendacoes.pdf

VALENCIO, Norma. Desastres: tecnicismo e sofrimento social. Ciência e Saúde Coletiva (Impresso), v. 19, p. 3631-3644, 2014.

VALENCIO, Norma. Para além do ‘dia do desastre’: o caso brasileiro (Coleção Ciências Sociais). 1. ed. Curitiba: Appris, 2012. v. 1. 227p.

VALENCIO, Norma; SIENA, Mariana ; MARCHEZINI, Victor . Abandonados nos desastres: uma análise sociológica de dimensões objetivas e simbólicas de afetação de grupos sociais desabrigados e desalojados. 1. ed. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2011. v. 1. 160p.

VALENCIO, Norma. Desastres, ordem social e planejamento em defesa civil: o contexto brasileiro. Saúde e Sociedade (USP. Impresso), v. 19, p. 748-762, 2010.