Por Gilberto Hochman (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz)
Nísia Trindade Lima é carioca, nascida em 1958, doutora em Sociologia (1997) e mestre em Ciência Política (1989) pelo então Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj – hoje, Iesp/Uerj) e graduada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É professora da UERJ desde 1991, tendo sido também professora da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Ingressou como pesquisadora em 1987 na Casa de Oswaldo Cruz (COC), unidade técnico-científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) criada em 1986 sob a presidência de Sérgio Arouca. O entusiasmo e o otimismo de todos com a redemocratização do país e a luta pela reforma sanitária – na defesa de um novo modelo de saúde, como direito do cidadão e dever do Estado – imprimiram à Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e aos que, como Nísia, nela se integraram, uma marca e uma missão particular e inédita: a pesquisa história e sociológica sobre as ciências e a saúde como fundamentais para a reflexão crítica sobre a sociedade brasileira inseridas em uma, então quase nonagenária, instituição de saúde pública e biomedicina. Foi nesse contexto de efervescência política e intelectual que, como pesquisadora, professora e, depois, gestora, Nísia participou e imprimiu sua marca nas principais iniciativas, e liderou muitas delas, que conformaram a COC/Fiocruz ao longo de mais de três décadas: a pesquisa, a educação, a informação e a comunicação nos campos da história, ciências sociais, museologia, divulgação científica e patrimônio arquivístico e arquitetônico nos campos da saúde e da ciência. A democracia, a construção do Sistema Único de Saúde (SUS) e a interdisciplinaridade são as molduras de percurso intelectual e institucional, do ingresso na Fiocruz em 1987 à posse como Ministra de Estado da Saúde, em janeiro de 2023.
Ao longo de sua trajetória como socióloga e pesquisadora da Fiocruz, Nísia Trindade tem dado uma excepcional contribuição acadêmica às ciências sociais e à saúde coletiva que se articula, de modo original, com uma bem-sucedida carreira de construtora de instituições públicas e gestora pública nos campos da saúde, da ciência, da tecnologia e da inovação. O reconhecimento público dessa trajetória pode ser registrado pelas homenagens, medalhas, títulos e prêmios, nacionais e internacionais, recebidos como, por exemplo, Medalha Mérito Oswaldo Cruz do Ministério da Saúde (2018); Medalha Rui Barbosa da FCRB (2016) e Euclides da Cunha (2008); Medalha Comemorativa dos 110 anos da Academia Brasileira de Letras (2007) e do Centenário da Fiocruz (2000); Prêmio Nise da Silveira-categoria mulher cientista pela Prefeitura do Rio de Janeiro (2015); Doutor Honoris Causa pela UFRJ (2021); Carioca do Ano pela Revista Veja (2020); Ordre National de la Légion d’Honneur do Governo Francês (2021); II Prêmio EMERJ de Direitos Humanos (2021); Medalha Tiradentes da Alerj (2021), Medalha Pedro Ernesto da CMRJ (2022), Prêmio Anna Nery da Alerj (2022) e a Comenda Celso Furtado (2022). É pesquisadora 1A do CNPq, sócia titular do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), membro titular da Academia Brasileira de Ciências na categoria Ciências Sociais e da Academia Mundial de Ciências para o avanço da ciência nos países em desenvolvimento (TWAS) e tem tido participação ativa nas sociedades e associações científicas tais como a SBS, Anpocs, Abrasco, ANPUH, SBHC e a SBPC.
Sua produção intelectual é referência na área de pensamento social brasileiro, história das ciências e da saúde, da sociologia urbana, da saúde coletiva e da história das ciências sociais brasileiras. Além de dezenas de artigos e capítulos, o seu livro Um Sertão Chamado Brasil: Intelectuais, Sertanejos e Imaginação Social é obra influente e fundamental. Originou-se de sua premiada tese de doutorado em Sociologia (IUPERJ, 1997), publicado em 1999 (Iuperj/Revan) e ganhou uma segunda edição revista e ampliada em 2013 (Hucitec Editora). Suas ideias vêm inspirando trabalhos acadêmicos em áreas disciplinares diversas tais como sociologia, história, geografia, saúde pública, literatura e educação e tem influenciado novas pesquisas e produção acadêmica. Sua hipótese central é a de que a dualidade sertão/litoral é uma referência incontornável na experiência intelectual e social brasileira. Para ela, o sertão, um termo geográfico difuso, tem sido compreendido como histórica e sociologicamente constituído tanto como mito da autenticidade nacional quanto como sinônimo de espaço doente, violência e ausência de leis, expressão do atraso e da refração à mudança. Esse é um fio condutor da reflexão intelectual de Nísia Trindade nas suas análises sobre as viagens científicas, sobre a presença da ciência na ocupação do território, sobre as políticas de saúde e assistência, assim como sobre o lugar da saúde e da ciência na construção do Estado e da nação e na formulação de políticas públicas para o território e as populações. Em sua arquitetura intelectual, a Amazônia como objeto de reflexão e intervenção pública tem sido uma permanente preocupação. A co-organização de uma nova edição de Rondônia: Anthropologia-Ethnografia, de Edgar Roquette-Pinto (ABL e Editora Fiocruz, 2005), a orientação de teses e inúmeros artigos e capítulos sobre a reflexão intelectual sobre a região e as ciências e a saúde na Amazônia consolidaram uma articulação original entre pensamento social, história ambiental e saúde pública que informam ações públicas.
As relações entre a história, as ciências sociais, as ciências biomédicas, e a saúde coletiva constituem o núcleo central de suas preocupações. O olhar crítico sobre o dualismo e suas consequências têm informado não suas reflexões acadêmicas como também é por ela percebido como fundamental para as ações e políticas públicas de superação dos problemas da sociedade brasileira, e em particular, da pobreza, das desigualdades e das vulnerabilidades.
Essa linha de reflexão é uma continuidade em relação aos seus estudos sobre favelas e seus movimentos associativos que estão presentes, tanto em atuação política como em pesquisas, desde o seu mestrado que resultou na dissertação O Movimento de Favelas do Rio de Janeiro: políticas do Estado e lutas sociais, sob orientação de Luiz Antônio Machado. Seus projetos de pesquisa sobre a favela no pensamento social e nas ciências sociais brasileiras resultaram em importantes artigos e capítulos de livros, na orientação de dissertações, teses e supervisão de pós-doutorandos e na formação de uma nova geração de pesquisadores com interesse sobre a atuação e a reflexão de antropólogos e sociólogos sobre as favelas no Rio de Janeiro. A organização e republicação do livro A sociologia do Brasil urbano, de Anthony e Elizabeth Leeds, em 2015 (Editora Fiocruz), que recebeu o Prêmio da Associação Brasileira de Editoras Universitárias (ABEU), é um marco na revitalização do interesse na história das relações entre a sociologia e a favela junto com o seu esforço de captação, conformação e publicização de um denso conjunto documental sobre sociologia urbana e sobre os estudos em favelas entre as décadas de 1950 e 1970 composto, até o momento, pelos arquivos pessoais de Anthony Leeds, José Arthur Rios, Carlos Alberto Medina, Luiz Antônio Machado e Lícia do Prado Valladares, acessíveis na Casa de Oswaldo Cruz.
A favela como objeto de reflexão e de política pública esteve presente na sua atuação de articulação entre entes públicos, associações de moradores e movimentos sociais para responder e minorar os dramáticos efeitos da pandemia de Covid-19 na Comunidade da Maré, no Rio de Janeiro. A valorização do papel das ciências sociais e dos determinantes sociais da saúde nas respostas aos problemas brasileiros têm sido uma constante na sua carreira. Como vice-presidente da Fiocruz, criou, em 2015, a Rede de Ciências Sociais e Zika da Fiocruz, um Programa Integrado de Pesquisa que visou contribuir para o enfrentamento da emergência sanitária como decorrência da associação entre a epidemia de Zika e a intensificação de casos de microcefalia, contemplada com financiamento de pesquisa da União Europeia.
A sua trajetória foi e continua sendo pioneira e marcada por imensos desafios: Vice-Diretora (1992-1994) e Diretora da Casa de Oswaldo Cruz (1998-2005), Diretora da Editora Fiocruz (2006-2011), Vice-Presidente de Educação, Comunicação e Informação (2011-2016). Em 2017, tornou-se a primeira mulher e a primeira cientista social a assumir, eleita pelos trabalhadores da instituição, a Presidência da Fiocruz, a mais importante instituição de saúde pública da América Latina. Em 2021, foi reeleita e reconduzida para mais quatro anos de mandato. Entre 2020 e 2022, liderou a Fiocruz na resposta ao maior desafio da história da instituição e da saúde pública brasileira em um século: a emergência global de saúde pública decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com a pandemia de Covid-19 agravada pelo negacionismo científico e pelo ataque às instituições públicas. Foram inúmeras as ações coordenadas por Nísia Trindade nesse enfrentamento da pandemia, articulando a Fiocruz com entidades públicas, setor privado, movimentos sociais e organizações internacionais. Destaque para a criação de um Centro Hospitalar para Covid-19; aumento da capacidade nacional de produção de kits de diagnóstico e processamento de resultados de testagens; organização de ações emergenciais junto a populações vulneráveis; cursos virtuais para profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS), de manejo clínico e atenção hospitalar para pacientes de Covid-19; estabelecimento de uma rede de vigilância genômica e comunicação pública sobre a trajetória da pandemia e seus efeitos por meio da criação do Observatório Covid-19. Como presidente da Fiocruz, coordenou todo o acordo de encomenda tecnológica na articulação com a Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca. Com a conclusão da transferência de tecnologia, a Fiocruz capacitou-se a produzir e distribuir uma vacina contra a COVID-19 para o SUS com produção 100% nacional, mais de 180 milhões de doses até 2022.
A partir da compreensão do papel fundamental das organizações internacionais e de cooperação multilaterais, Nísia participou ativamente da resposta global à pandemia de Covid-19, a partir de diversos fóruns de cooperação transnacional. Integrou a Força-Tarefa da Comissão Lancet COVID-19 sobre Ajuda Humanitária, Proteção Social e Grupos Vulneráveis e da Coalizão de Pesquisa Clínica de COVID-19, para acelerar a pesquisa clínica de COVID-19 em ambientes com recursos limitados. Co-presidiu o Grupo Diretor de Recuperação Econômica, um dos grupos do Roteiro de Pesquisa da ONU para a Recuperação da COVID-19. Tornou-se membro do Comitê Diretivo do Colaborativo Regional de Produção de Vacinas (RVMC) e da Plataforma Regional da OPAS/OMS para Avançar na Produção de Vacinas contra COVID-19 e Outras Tecnologias de Saúde nas Américas, e membro independente do Conselho da Coalizão de Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI).
Além de um ator da Saúde Global, Nísia Trindade Lima se tornou uma das mais importantes faces públicas na comunicação pública da ciência e de defesa da vida da população e das medidas sanitárias baseadas em evidências científicas tais como o uso de máscaras e a vacinação, sempre reforçando o valor social da ciência no Brasil e a realização de ações que aproximem a ciência da sociedade mesmo em contexto adverso. Em janeiro de 2023, tomou posse no cargo de Ministra de Estado da Saúde, a primeira mulher e cientista social a ocupar essa posição desde a criação do Ministério da Saúde em 1953. A trajetória de Nísia Trindade Lima mostra que a análise sociológica é, também, política pública.
Sugestões de obras da autora:
Lima, Nísia Trindade. Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva. Saúde em Debate, v. 46, p. 9-24, 2022.
Lima, Nísia Trindade; Hochman, Gilberto (orgs.). Médicos Intérpretes do Brasil. São Paulo: Hucitec Editora, 2015.
Lima, Nísia Trindade; André Botelho. Malária como doença e perspectiva cultural nas viagens de Carlos Chagas e Mario de Andrade a Amazônia. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 20, p. 745-763, 2013.
Lima, Nísia Trindade. Um Sertão Chamado Brasil. Segunda edição. Hucitec Editora, 2013
Lima, Nísia Trindade; Dominichi Miranda de Sá (orgs.). Antropologia Brasiliana: ciência e educação na obra de Roquette-Pinto. Belo Horizonte, Rio de Janeiro: Editora UFMG/Editora Fiocruz, 2008
Lima, Nísia Trindade. Public Health and Social Ideas in Modern Brazil. American Journal of Public Health, v. 97, p. 1209-1215, 2007.
Lima, Nísia Trindade; Marchand, Marie Hélène (orgs.). Louis Pasteur & Oswaldo Cruz: inovação e tradição em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2005.