Por Flavio Carvalhaes (UFRJ)
Um sociólogo das populações
Nelson do Valle Silva nasceu no Rio de Janeiro em 1946. Graduou-se em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) em 1968. Fez mestrado em Informática – concluido em 1972 – na mesma instituição. Em 1978 doutorou-se em Sociologia na Universidade de Michigan nos Estados Unidos.
Simultaneamente a sua formação acadêmica, Nelson do Valle Silva teve uma inserção profissional direcionada à análise de dados sociais, o que, segundo ele próprio[1], o aproximou dos estudos populacionais e da sociologia. Durante a década de 1970 ele passou a integrar o quadro do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, onde permaneceu de 1973 a 1980. Ainda, entre 1971 e 1974 lecionou no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), para onde retornou e ficou entre 1980 a 2010. Entre 2010 e 2018 seu vínculo institucional foi com o IESP-UERJ. Depois de se desligar do IBGE, Valle Silva se integrou ao Laboratório Nacional de Computação Científica, onde permaneceu como pesquisador titular até 2002.
Essa interessante e idiossincrática trajetória acadêmica e profissional revela uma marca que perpassa os trabalhos de Nelson do Valle Silva. Nos termos de hoje é possível afirmar que Nelson foi um pioneiro da mobilização da ciência de dados na sociologia brasileira. Em seu mestrado, por exemplo, ele programou uma interface que ajudava pessoas com pouco conhecimento em programação a executar operações numéricas em bases de dados. Seus trabalhos fizeram uso das ferramentas de estatística multivariada avançadas, além de ter trabalhado com dados de volume significativo em termos de tamanho, como censos demográficos e surveys com centenas de milhares de casos, como as Pesquisas Nacionais de Amostragem Domiciliar. Isso em uma época em que o preço dos recursos computacionais era altíssimo e sua disponibilidade era ínfima. Conhecendo as dificuldades e particularidades de mobilizar dados nesse contexto, a qualidade, sofisticação e atualidade dos trabalhos de Nelson do Valle Silva em relação às discussões metodológicas e analíticas mobilizadas em suas múltiplas publicações são traços admiráveis de seu trabalho.
Uma outra característica que marca toda trajetória de Nelson é seu tratamento de temas sociológicos como problemas populacionais[2]. Em todos seus trabalhos é muito clara a preocupação de ligar a dinâmica populacional a processos que estruturam a desigualdade social. Isso significa que o trabalho de Nelson do Valle Silva está atento à variabilidade presente nos fenômenos sociais, à sua natureza probabilística e à possibilidade de encontrar certas regularidades ou padrões que são passíveis de serem conhecidos somente com a mobilização de ferramentas estatísticas, uma vez que elas não são conhecidas pelos atores sociais que as “produzem”. Nessa direção, o autor fez verdadeiras descobertas científicas sobre a sociedade brasileira em diversos temas: mobilidade social, estratificação educacional, transição demográfica, entre muitos outros.
Apesar de ter se dedicado ao estudo de diversos temas, publicamente o nome de Nelson do Valle Silva está fortemente associado ao estudo da relação entre raça e desigualdade no Brasil. Sua primeira contribuição ao estudo desse objeto é sua tese de doutorado Black-white income differentials: Brazil 1960, orientada por William (Bill) M. Mason. Utilizando microdados do Censo de 1960[3], Valle Silva mobilizou técnicas estatísticas recém-criadas (como a decomposição Oaxaca-Blinder) e mostrou a persistência de hiatos raciais salariais da população brasileira em 1960, mesmo quando se comparavam indivíduos parecidos nos atributos medidos no censo (idade, escolaridade, região de moradia, etc). Esses resultados contradiziam tanto teses que postulavam a “democracia racial” brasileira como análises otimistas quanto ao processo de modernização que tinha como hipótese que a desigualdade racial seria paulatinamente eliminada a partir da industrialização e desenvolvimento econômico.
A partir daí, o autor tocou um verdadeiro programa de pesquisa sobre raça e desigualdade no Brasil em conjunto com o sociólogo Carlos Hasenbalg[4]. Em síntese, é possível dizer que os resultados dessas pesquisas apontaram para o processo de acumulação de desvantagens ao longo do ciclo de vida entre a população que se autoidentifica como preta e parda no Brasil. Os autores sugerem que a probabilidade de indivíduos desses grupos raciais serem pobres é maior, tanto pelo padrão de sua distribuição espacial (sobrerepresentação em regiões mais pobres do Brasil) como pelo processo histórico que marcou a transição da escravização para o mercado de trabalho capitalista no século XIX e XX. As maiores taxas de pobreza, por sua vez, estão associadas a mais dificuldades para progredir no sistema educacional faz com que negros tenham acesso empregos mais precários e com menor remuneração, em um ciclo cumulativo que os prejudica quando comparados com a população branca. Do ponto de vista analítico, duas inovações para as discussões sobre a estruturação da desigualdade social no Brasil já se fazem presentes nesses trabalhos: a importância de entender como a desigualdade é estruturada de forma diferente ao longo do ciclo de vida – nascimento, infância, vida adulta – além do caráter inter-geracional da estruturação da desigualdade. A pesquisa sobre esses temas, ainda hoje segue e está atenta a esses contornos.
Um outro registro de pesquisa interessante que marcou o trabalho de Nelson foi o estudo do mercado matrimonial[5]. O autor tomou a formação de casais como um indicador importante sobre padrões de sociabilidade e utilizou as informações das características dos casais para entender, por exemplo, a permeabilidade das fronteiras raciais no país. Usando dados do censo de 1980 Nelson encontrou que os casais da mesma raça eram mais comuns, mas que também havia taxas não triviais de casamentos entre pessoas que se identificavam como brancas e pardas, muito mais comuns do que entre pessoas brancas e pretas ou entre pessoas que se autoidentificavam como pretas e pardas.
Mais recentemente, nos anos 2000 Nelson liderou um consórcio de pesquisadores na produção de indicadores sociais a partir de dados secundários e, mais importante, na geração de dados primários sobre fenômenos estruturantes da desigualdade social no Brasil. O survey[6], de representatividade nacional, colheu informações em 8048 domicílios brasileiros no ano de 2008 sobre temas jamais pesquisados no país, como percepção de discriminação, percepção de justiça, riqueza, saúde mental, entre outros temas. A pesquisa contém aquela que é provavelmente a fonte mais rica sobre dimensões sociais da desigualdade já colhida no país, uma contribuição de valor inestimável de Nelson do Valle Silva para a construção do conhecimento sociológico brasileiro.
Por fim, ao mencionar o nome de Nelson do Valle Silva é necessário lembrar de sua facilidade, talento e didática na docência sobre qualquer assunto: indicadores sociais, metodologia de pesquisa, estratificação social entre vários outros. Responsável pela formação metodológica e estatística de inúmeros cientistas sociais que fizeram sua formação no Rio de Janeiro, Nelson contribuiu para que inúmeros pesquisadores “de humanas” tivessem conhecimento mínimo sobre a pesquisa quantitativa, além também de ajudar a despertar o interesse e o aperfeiçoamento dessa área entre estudantes de diversas gerações, como é o caso deste que aqui escreve.
Ainda que breve, este balanço permite afirmar que a contribuição de Nelson, o estudo sobre a desigualdade social no Brasil ampliou significativamente a discussão científica e sociológica brasileira. Tema de interesse geral atualmente, o tema tinha atenção mais localizada no passado, fora exceções, das quais Nelson é uma presença marcante. Ele esteve envolvido em todas as frentes ligadas ao debate público e científico sobre a desigualdade: coleta de dados, construção institucional de institutos de pesquisa, sistematização e tratamento de dados, publicação de relatórios, capítulos e artigos científicos, treinamento de alunos e sua orientação. É seguro afirmar que grande parte das pessoas envolvidas no debate sobre desigualdade no país, especialmente aquelas ligadas à sociologia, é tributária em relação ao trabalho de Nelson do Valle Silva, uma referência respeitada, admirada e querida.
Sugestões de obras do autor
VALLE SILVA, Nelson do; Pastore, J. . Mobilidade social no Brasil. 1. ed. São Paulo: Makron Books, 1999. v. 1. 100p.
VALLE SILVA, Nelson do; HASENBALG, Carlos; Lima, M. Cor e estratificação social no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999. v. 1. 240p.
VALLE SILVA, Nelson do; HASENBALG, Carlos. Relações raciais no Brasil Contemporâneo. 1. ed. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1992. v. 1. 150p.
VALLE SILVA, Nelson do. “Distância social e casamento inter-racial no Brasil”. Estudos Afro-Asiáticos, 14, (1987): 54-84.
[1] SILVA, Nelson do Valle. Nelson do Valle Silva (depoimento, 2012). Rio de Janeiro, CPDOC/Fundação Getúlio Varbas (FGV), (1h0min).
[2] Para um desenvolvimento desse argumento ver Goldthorpe, John H. Sociology as a Population Science. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.
[3] Para uma narrativa de Nelson sobre o acesso a esses dados ver Barbosa, Rogério Jerônimo, Murillo Alves Marschner De Brito, Diogo Ferrari, Patrick Silva, Ian Andrade Prates, and Leonardo Sangali Barone. “Ciências sociais, censo e informação quantitativa no Brasil: entrevista com Elza Berquó e Nelson do Valle Silva.” Novos estudos CEBRAP, 2013, 143–55. https://doi.org/10.1590/S0101-33002013000100008.
[4] Para uma apresentação da colaboração dos autores ver Ribeiro, Carlos Antônio. “Sociologia Como Ciência Das Populações: Contribuições de Carlos Hasenbalg e Nelson Do Valle Silva No Brasil.” BIB. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica Em Ciências Sociais 86, no. 2 (2018): 7–35.
[5] Silva, Nelson do Valle. “Distância social e casamento inter-racial no Brasil”. Estudos Afro-Asiáticos, 14, (1987): 54-84.
[6] Disponível em: https://centrodametropole.fflch.usp.br/pt-br/noticia/base-de-dados-pesquisa-dimensoes-sociais-da-desigualdade-pdsd