Por Ana Paula Perrota Franco (UFRRJ)
Neide Esterci nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1941. Formou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em 1965. Três anos depois ingressou no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional-UFRJ e em 1970, passa a dar aulas no Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Realizou o seu doutorado em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP), e teve sua tese, posteriormente transformada em livro, defendida em 1985. Entre 1989 e 1991 foi pesquisadora visitante de pós-doutorado no Institute of Latin American Studies da Universidade de Londres, e entre 1995 e 1996 na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris.
A pesquisadora teve participação relevante na institucionalização e expansão da área de Antropologia no Brasil. Suas pesquisas, realizadas na Amazônia e no Nordeste brasileiros, inspiraram cientistas sociais de diferentes estados dessas regiões e o seu envolvimento em programas de cooperação universitária, ao longo de sua carreira, foram importantes para o avanço e a consolidação da Pós-Graduação no Brasil. Além disso, a dedicação de Neide Esterci à docência e à orientação acadêmica, durante quatro décadas (1970-2010), resultou na formação de dezenas de novos pesquisadores. Como reflexo do rigor e da atenção que investiu nesse trabalho, muitos dos seus alunos passaram a ocupar cargos em diversas universidades brasileiras.
A contribuição acadêmica de Neide Esterci se notabilizou pelo impacto sobre os estudos rurais no país, particularmente vinculados aos temas do campesinato, mas também sobre os efeitos dos projetos de desenvolvimento associados à questão socioambiental. Se destaca, por outro lado, pela emergência e consolidação do tema-chave do trabalho escravo contemporâneo.
A obra da pesquisadora chama atenção pela capacidade de transitar entre as abordagens sociológicas e antropológicas, e de mobilizar conceitos clássicos da sociologia, como conflito e dominação, sem desconsiderar que os processos sociais se dão conforme a participação e a maneira como os atores sociais se posicionam no espaço social. O seu livro “Escravos da desigualdade”, publicado em 1994, é um exemplo disso. A preocupação principal foi em analisar como a dominação adquire significado e legitimação contextualmente.
A partir dos anos 2000, Neide Esterci incorporou a questão ambiental em suas reflexões ao compreender a ligação dessa nova problemática com as situações de conflito e processos de desigualdade pesquisados no mundo rural. Tornou-se referência percussora nesse debate, estando à frente da constituição do próprio conceito de socioambientalismo e da formação desse campo como uma nova área de pesquisa nas Ciências Sociais. Os seus estudos dedicados aos conflitos socioambientais e à relação entre sociedade e natureza estão presentes em seus artigos, livros organizados e no trabalho editorial no Boletim Rede Amazônia, assim como na criação de grupos de trabalho na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e na Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS).
Seus trabalhos alertam para a importância de colocarmos em questão a pressuposta homogeneidade de categorias e instituições. Ao discutir, por exemplo, o lugar do Estado, bem como o da Igreja Católica, nas situações de conflitos analisadas, Neide Esterci demonstra que tais instituições abrangem campos de forças e de disputas, a partir dos diferentes projetos e posições que se confrontam em seu interior. O livro “Conflito no Araguaia – peões e posseiros contra a grande empresa” (Vozes, 1997), demonstra como até mesmo a categoria trabalhadores possui nuances, conforme as atividades, relações e posicionamentos dos diversos atores nas estruturas organizativas em que estão inseridos.
Os seus diferentes trabalhos nos levam a perceber, portanto, a importância de olharmos de maneira cuidadosa para as categorias e modos de identificação dos atores sociais. Esse esforço alinhou-se ao pressuposto de que tais classificações, longe de serem autoevidentes, são fruto de alianças, estratégias, posicionamentos políticos, sendo também carregadas de conteúdos político e morais. Nesse sentido, o trabalho desenvolvido acerca desses temas tornou-se indispensável enquanto referencial analítico nas Ciências Sociais, mas também para outras áreas do conhecimento, como os campos do direito, do serviço social e das ciências naturais.
Por fim, gostaria de terminar citando a última passagem do livro “Escravos da desigualdade”: “essas indicações demonstram, para todos os efeitos, que as vítimas são sujeito e que a dominação e a exploração se fazem sobre elas mas não a despeito delas”. Considero que essa sentença marca a maneira com Neide Esterci tratou, ao longo de toda a sua carreira, os sujeitos de sua pesquisa, conferindo a eles dignidade e ensinando a escapar de um olhar que desumaniza e objetifica aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade, na medida em que os considera despossuídos da capacidade de elaborar estratégias individuais e coletivas. Esse aspecto nos permite falar da contibuição política de Neide Esterci, uma vez que toda a sua trajetória acadêmica se deu em diálogo e participação direta com diferentes organizações sociais, como por exemplo, o antigo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), e o Instituto Socioambiental (ISA). Esse contato constituiu-se desde os anos iniciais de sua formação, durante o período da ditadura militar, e perdurou durante a redemocratização, até sua aposentadoria em 2010, de modo que o seu comprometimento acadêmico rigoroso não se furtou de um engajamento político compromissado contra as formas de injustiças sociais.
Sugestões de obras da autora:
ESTERCI, N.; SANT’ANA JR., H. A.; TEISSERENC, M. J. S. A. (Orgs.). Territórios socioambientais em construção na Amazônia brasileira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2018. 312 p.
RAMALHO, J. R.; ESTERCI, N. (Orgs.). Militância Política e Assessoria: compromisso com as classes populares e resistência à ditadura. São Leopoldo: OIKOS Editora, 2017. 358 p.
ESTERCI, N.; VALLE, R. S. T. (Orgs.). Reforma Agrária e Meio Ambiente. 1ª ed. São Paulo: Linear B, 2003. 191 p.
ESTERCI, N. Ambientalismo e Conflito social na Amazônia Brasileira. Boletim Rede Amazônia, 2002, Ano 1, nº 1, pp. 51-62.
ESTERCI, N.; FRY, P.; GOLDENBERG, M. (Orgs.) Fazendo Antropologia no Brasil. 1ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 340 p.
ESTERCI, N. Imobilização Por Dívida e Formas de Dominação No Brasil, Hoje. Lusotopie, Paris, p. 123-139, 1996.
ESTERCI, N. Escravos da Desigualdade: um estudo sobre o uso repressivo da força de trabalho hoje. 1ª ed. Rio de Janeiro: CEDI/KOINONIA, 1994. 133 p.
ESTERCI, N. Conflito no Araguaia: peões e posseiros contra a grande empresa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1987. 201 p.
ESTERCI, N. Cooperativismo e Coletivização no Campo: questões sobre a prática da Igreja Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero/ISER, 1984.