Por Mário Chagas (Unirio),
Joana D´Arc Fernandes Ferraz(UFF)
Uma intelectual desdobrável
Mulher é desdobrável. Eu sou.
(Adélia Prado)
Myrian Sepúlveda dos Santos é uma intelectual desdobrável. Assim como o eu lírico de Adélia Prado ela inaugura linhagens, conversa com dores, amarguras, tristezas e alegrias e firma, ao seu modo, um modo de pensar e praticar as ciências sociais. Trata-se de um modo de viver e conviver, que cuida (a palavra cuidado habita o seu cotidiano) da inseparabilidade entre a vida vivida e a ciência, entre a vida na universidade e a vida na casa; que cuida de pensar o social, a sociedade, o cultural, o histórico e, ao mesmo tempo, pensar-se. Pensar e viver o macro e o microcosmo em correspondência é uma chave importante para acessar a obra desta intelectual diferenciada.
Pode parecer estranho para pessoas que não convivem com a Myrian um parágrafo introdutório que se abre com uma conversa poética. Mas Myrian é isso. Ela tem um diálogo forte e consistente com a literatura, o cinema, a filosofia, a história, a sociologia, a antropologia, a ciência política, a psicologia social, a psicanálise, a arte, a cultura e a museologia. Trata-se de uma intelectual rigorosamente interdisciplinar e que atravessa fronteiras. Seus livros, cursos, projetos e textos constituem, de alguma forma, “passagens intelectuais”[1], travessias temporais e, especialmente, insubmissões. De modo mais preciso: Myrian nasceu em 1955 e faz parte de uma geração insubmissa e indisciplinada do ponto de vista comportamental e intelectual. Trata-se – e esse registro é novo – de uma mulher que na década de 1970, participou da luta contra a ditadura empresarial-militar brasileira e nomeadamente do Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP). Correr riscos, viver momentos de angústia e medo, viver a potência da coragem e da ousadia são marcas dessa mulher desdobrável.
Desde a década de 1980 a memória, os museus e suas relações, representações, processos e construções constituem objetos de estudo de Myrian Sepúlveda. A sua dissertação “História, Tempo e Memória: Um Estudo sobre Museus”, defendida, em 1984, no antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ/Cândido Mendes), bem como os artigos “Objeto, Memória e História” e o “Pesadelo da Amnésia Coletiva”, publicados respectivamente, na Revista Dados, em 1992, e na Revista Brasileira de Ciências Sociais, em 1993, estão, sem dúvida, entre as primeiras pesquisas sobre Memória Social publicadas em revistas especializadas de Ciências Sociais no Brasil.
De acordo com o professor José Reginaldo Santos Gonçalves a referida dissertação ocupa na “vasta literatura sobre coleções, museus e patrimônios culturais”, uma “posição original e pioneira” e um de seus méritos “é precisamente nos oferecer uma reflexão desnaturalizadora sobre esse tema, focalizando dois importantes museus brasileiros situados no Rio de Janeiro: o Museu Histórico Nacional e o Museu Imperial”[2].
Não obstante a posição acima mencionada – ou até mesmo por ela – a própria pesquisadora registra, no memorial publicado em 2019 em “Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares”, que seu interesse pela “memória como objeto de estudo não
teve acolhida imediata” no IUPERJ. “Apenas, um ano depois – diz ela -, com a chegada do professor Ricardo Benzaquén de Araújo, consegui uma orientação adequada.”[3]
Ao ser aprovada, em 1989, para o doutorado no Departamento de Sociologia, da New School for Social Research, a pesquisadora, mantendo-se fiel ao tema da memória social, embora o mesmo não estivesse, na ocasião, no rol dos objetos de estudo valorizados pela sociologia, também não encontrará facilmente uma orientação acadêmica. Superada a dificuldade inicial, com a orientação de Jeffrey Goldfarb, a pesquisadora defenderá, em 1994, a tese “Memory: Social Construction and Critique” e obterá o título de PhD em ciências sociais e políticas.
A formação acadêmica da cientista não ocorre separada de sua vida pessoal, doméstica e familiar. A sua casa é também espaço de convivência acadêmica e social, de celebração das amizades, de encontros, conversações e reuniões políticas e culturais, de performances poéticas e debates aquecidos. A cozinha de sua casa, por exemplo, tem múltiplas funções, serve para produções culinárias e também para orientações, planejamentos e articulações. Muitos de seus orientandos e amigos conheceram e, em certa medida, conviveram com os seus filhos e com o seu pai; e, cada um ao seu modo, pode compreender a sustentação que a cientista fazia da natureza política da família.
O esgarçamento – e em certas situações o rompimento – das fronteiras entre a esfera doméstica (privada) e a esfera acadêmica (pública) não tem nada de ingênuo ou inconsciente. Romper estas fronteiras, na perspectiva da intelectual desdobrável – tem correspondência direta com estudos feministas que problematizam as relações de trabalho que reproduzem distinções e desigualdades entre sexos e apontam na direção da aplicação da justiça na vida pessoal e doméstica.
A contribuição da socióloga para os estudos da memória na perspectiva das Ciências Sociais é impressionante. Trata-se de um tema que, como é fácil verificar, atravessa a sua obra. Considera-se como obra não apenas as suas publicações, mas também as aulas, os projetos – destaquem-se os projetos de museus -, as entrevistas, os vídeos, as orientações e mais. É possível, do ponto de vista poético e político, considerar a sua obra como uma passagem intelectual, simbólica; não se trata apenas de uma travessia entre tempos e espaços, mas também de uma travessia entre saberes. Dialogar com a obra de Myrian é um desafio para todos os que pensam o conhecimento em perspectiva ética-política e que se dispõem a atravessar fronteiras e abrir buracos nos muros do pensamento monolítico.
O estudo da memória social para Sepúlveda dos Santos tem relação direta com a vida. Trata-se de um modo de agir sobre o presente e também sobre o passado, que é força viva, instigante e catalizadora de futuros possíveis. Por tudo isso, a conexão, a articulação entre os estudos de memória e o seu percurso existencial são tão notáveis.
Myrian Sepúlveda dos Santos tem a capacidade de extrair vestígios do passado e do presente e deslizar sobre diferentes temporalidades com uma linguagem clara, precisa e rigorosa. O domínio de teorias sociais complexas, a capacidade de se movimentar em universos distintos e criar pontes e passagens; a potência de diálogo com intelectuais como Walter Benjamin, Jacques Derrida, Hannah Arendt, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, Karl Marx, Lélia Gonzalez, Max Weber, Maurice Halbwachs, Michel Foucault, Nancy Fraser, Henri Bergson, Eric Hobsbawm, Benedict Anderson, Judith Butler, Gayatri Spivak, Susan Stewart, Marianne Hirsch e outros, fazem da professora Myrian uma intelectual desdobrável e singular.
Ainda que a memória social seja um tema que atravessa a sua obra, nela também comparecem o esquecimento, o museu, a violência, o sistema carcerário, as relações raciais, a cidade, as ruas, os bairros, o carnaval e as Escolas de Samba – tudo em movimento.
Há na obra da professora Myrian um compromisso social visível, sensível: ela nos provoca e convoca a não mirar o mundo com o olhar das esculturas patriarcais de mármore ou de bronze; ela nos desafia e nos encoraja a ver, ouvir, saborear, tocar e perceber os cheiros dos invisibilizados, subalternizados, colonizados. Em sua obra, contudo, eles não são tratados como falta, mas como potência, como brechas e desdobras, como criadores de espaços de (re)existência[4] e de repertórios inovadores.
Uma marca importante na carreira acadêmica e no percurso existencial da cientista social é o seu interesse e sua crítica contundente ao universo dos museus. Desde os seus estudos de mestrado, na década de 1980, no IUPERJ, a crítica aos museus esteve presente. Rememorando aquele período ela mesma diz: “Meu interesse pelos museus não estava relacionado ao papel social das instituições, mas aos discursos relacionados ao passado”[5]. Esta pegada crítica inspirou e continua inspirando artigos, monografias, dissertações e teses em diversas áreas de conhecimento.
Estabelecendo conexões entre os museus e as relações raciais a pesquisadora sustenta que:
As representações do negro e da escravidão nos museus brasileiros lidam com questões de poder e discriminação. Em grande parte de museus subsidiados pelo Estado observamos ainda hoje silêncio, representações estereotipadas e vitimização.[6]
O interesse da professora Myrian na função social dos museus e na denominada museologia social revela-se na virada do século XX para o século XXI. Ela acompanha e participa com entusiasmo crítico a construção da Política Nacional de Museus e do Instituto Brasileiro de Museus; ela propõe e cria, de modo participativo, o Ecomuseu da Ilha Grande, o Museu do Cárcere e o Museu Afrodigital Rio, todos no âmbito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), à qual a professora está vinculada desde 1994.
A graduação na Universidade Federal Fluminense (UFF), o mestrado no IUPERJ e o doutorado na New School for Social Research foram realizados com a companhia das filhas (Rita e Maria Clara) e do filho (Felipe). O pós-doutorado concluído no Theory, Culture & Society Centre, da Nottingham Trent University e no Centre of Latin American Studies, em Cambridge, realizou-se sem a presença cotidiana das filhas e do filho. Esta referência é importante, por um motivo relativamente simples, na década de 1980, quando a pesquisadora iniciou sua formação um dos professores fez questão de dizer: “Nas estatísticas realizadas [no IUPERJ], não há mulheres com três filhos neste curso de pós-graduação”[7]. Contrariando as estatísticas a professora Myrian indica que as mulheres são desdobráveis; com um, dois, três filhos ou mais, elas podem fazer o que quiserem, podem fazer graduação, mestrado, doutorado e mais.
Myrian Sepúlveda dos Santos é professora, pesquisadora, escritora, historiadora, socióloga e mãe de três filhos e filha de duas mães. A primeira mãe morreu quando ela tinha um ano e marcará a sua vida pela ausência de memória; a segunda, a sua madrasta, a segunda esposa de seu pai, era professora, gostava de ler e estimulou a leitura da menina Myrian.
Entre tempos domésticos e profissionais, entre mais velhos e mais novos, Myrian viveu com intensidade. Dedicou cuidado aos mais novos e aos mais velhos (madrasta e pai). Cuidou com afeto e registrou a seguinte reflexão:
A responsabilidade feminina pela esfera doméstica reproduz comportamentos. No meu caso, ela une passado e presente; os cuidados cotidianos com os idosos do presente se unem àqueles anteriores destinados aos filhos. Embora a questão de gênero não seja meu objeto de estudo, devo aos estudos feministas a ampliação teórica com que trabalho não só os conceitos de memória, mas também as diferentes questões sociológicas das quais me aproximo[8].
Ela não seria quem é se não tivesse duas filhas e um filho, se não tivesse perdido a mãe quando tinha um ano de idade; ela não seria quem é se não tivesse abandonado o curso de medicina, cursado história na UFF e feito mestrado no IUPERJ; ela não seria quem é se não tivesse entrado no mundo dos museus pelos museus convencionais. Mas, além de tudo isso, se Myrian Sepúlveda dos Santos não fosse quem é não teríamos a intelectual desdobrável que temos. Myrian é uma cientista social desdobrável, original, criativa e singular.
Sugestões de obras da autora:
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos; RIBEIRO, Yves. Quatro Histórias, Duas Colônias, Uma Ilha. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2017, v.01. p.296.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória coletiva e Identidade Nacional. São Paulo: Annablume, 2013
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Os Porões da República: a barbárie nas prisões da Ilha Grande 1894-1945. Rio de Janeiro: Ed. Garamond/EDUERJ, 2009, v.1. p.280.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. A Escrita do Passado nos Museus Históricos. Rio de Janeiro: Garamond/Minc, Iphan, Demu, 2006, v.1. p.142.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos (org.) Memória coletiva e justiça social.1 ed.Rio de Janeiro: Garamond Editora, 2021Joana D’Arc Fernandes Ferraz
[1] Passagens é o título de uma obra clássica do filósofo Walter Benjamin que inspirou Myrian Sepúlveda desde a sua juventude. No Brasil, o livro Passagens foi publicado em português, em 2006, pela Editora da UFMG em parceria com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Aqui estamos utilizando a expressão “passagens intelectuais” como uma referência à capacidade de alguns intelectuais de produzir conexões espaço-temporais diferenciadas, de propiciar, por meio de suas obras, articulação entre mundos, tempos e culturas diferentes e, especialmente, de articular saberes e fazeres distintos.
[2] Ver o prefácio do livro “A escrita do passado em museus históricos”, assinado por José Reginaldo Santos Gonçalves. O livro é de autoria de Myrian Sepúlveda dos Santos e foi publicado em 2006, no Rio de Janeiro, pela editora Garamond/DEMU.
[3] Ver o Memorial de Myrian Sepúlveda dos Santos publicado no periódico Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares. Rio de Janeiro: UERJ, v. 21, n. 1 (2019).
[4] Termo inspirado no ciclo de webinários “Patrimônios, museus e (re)existências”, organizado pelo Comitê de Patrimônios e Museus da Associação Brasileira de Antropologia durante o ano de 2020.
[5] Ver o Memorial de Myrian Sepúlveda dos Santos publicado na revista Interseções. Rio de Janeiro: UERJ, v. 21, n. 1 (2019).
[6] Idem.
[7] Idem.
[8] Idem.