Por Rodrigo Estramanho de Almeida (FESPSP)
Miguel Wady Chaia, nasceu em São Paulo em 3 de fevereiro de 1947 e aos 40 dias de idade retornou para onde viveu seus primeiros anos de vida na fazenda Correntes, nas cercanias da cidade mato-grossense do sul de Aquidauana. Filho de pai e mãe libaneses, o primeiro, imigrante que tinha como destino os EUA, acabou por se inserir nas atividades de lavoura e pecuária no oeste brasileiro e a mãe, que se refugiava dos conflitos de fins do Império Otomano, acabou por se estabelecer com a família na cidade de São Paulo.
Foi, portanto, no pantanal brasileiro, que Miguel Chaia viveu sua primeira década de vida, cercado pela herança libanesa da cultura de seus ancestrais, bem como do meio natural do meio oeste e das línguas e culturas indígenas que frequentavam a pequena escola rural primária estabelecida dentro da fazenda por seu pai, em parceria com o poder público local.
Após a morte do pai, quando a fazenda Correntes já se mantinha como produtora agropecuária, Miguel completou oito anos e seguiu para a capital Campo Grande a fim de completar os estudos primários e dar continuidade a sua formação escolar no colégio Salesiano Dom Bosco. A experiência nesta escola, será intensa pelas atividades de interação que o colégio promovia com os povos indígenas da região, sobretudo com as etnias Bororo e Terena, promovendo eventos comuns e os estudos de suas tradições e línguas.
No entanto, a decisão do círculo familiar, em inícios da década de 1960, era a de que Miguel deveria fazer-se médico e para isso deveria mudar para São Paulo onde terminaria o último ano do científico e simultaneamente frequentaria aulas em um curso preparatório para essa finalidade. Assim, em 1965, mudou-se para esta cidade, instalou-se numa república, e matriculou-se no curso do último ano do científico no Colégio Ipiranga. Seguindo o plano, se inscreveu, simultaneamente, no curso preparatório para vestibulares, recentemente criado por João Carlos Di Genio (1939-2022) – atual Grupo Objetivo.
Entre os amigos que Miguel conheceu no tempo do curso preparatório para medicina, a maior parte seguiu o rumo esperado, mas alguns deles passaram a se reunir para ir a teatros, cinemas, exposições e discutir leituras em geral muito mais do que estudar para medicina. Nasceu ali o que Miguel, chamou de ‘verdadeiro despertar’: “– Me encantei pelas artes, pelas narrativas e, sobretudo, pelo poder do cinema. E estava combinado que se eu não entrasse em medicina eu seguiria para o rumo que eu quisesse…” *
Assim, diante deste despertar para as artes e a cultura, Miguel se matriculou, por volta de 1967, na Escola Superior de Cinema São Luiz, precursora do gênero dessa formação em São Paulo, onde aglutinavam-se docentes, tais como Décio Pignatari (1927-2012), Anatol Rosenfeld (1912-1973), Luis Sergio Person (1936-1976) e Carlos Reichenbach (1945-2012) e ondem orbitavam outras figuras que viriam a ser ícones do assim denominado Cinema Marginal paulistano tal como José Mojica Marins (1936-2020), Rogério Sganzerla (1946-2004), entre outros.
Na sua passagem pela Escola de Cinema, Chaia dirigiu, roteirizou e produziu alguns filmes, curtas-metragens e animações. Parte desse material pode ser encontrado nos acervos do Itaú Cultural (IC) e da Cinemateca Brasileira. O que vale dizer aqui é que esses filmes, tais como o Entregador de panfletos (1969) e Odisseia (1970), já guardavam forte relação com os temas sociais do trabalho e do homem comum e com questões relacionadas à resistência política. Na área das atividades audiovisuais atuou, também, como assistente de direção de Roberto Santos (1927-1987) e produtor informal de Andrea Tonacci (1944-2016).
Miguel Chaia, seguirá as aulas de cinema no curso do São Luiz até o terceiro ano, tornando-se um dos criadores e presidente do Centro Acadêmico Humberto Mauro, quando, por motivos de ordem intelectual, decidiu pleitear uma vaga no curso de jornalismo na Escola de Comunicação de Artes (ECA) da Universidade São Paulo (USP), onde ingressou em 1968. No desenrolar das primeiras aulas do curso, retomou leituras iniciadas no curso preparatório para medicina, de sociólogos brasileiros, notadamente Octávio Ianni (1926-2004) e Gabriel Cohn (1938 -), bem como passou a acompanhar a produção de outros intelectuais na revista Civilização Brasileira da qual se tornou leitor assíduo. Chaia, encontrou nestes autores, sobretudo nas obras de Ianni e Cohn, de forma mais sólida e sistematizada, temas que já o fascinavam em filmes como Deus o Diabo da Terra do Sol (1968) de Glauber Rocha (1939-1981): as forças sociais, do poder e do misticismo sobre a trajetória do homem comum brasileiro.
Uma conferência do sociólogo, Leôncio Martins Rodrigues (1934-2021) – de quem mais tarde viria a ser amigo – a qual assistiu na mesma época em um evento no Teatro de Arena, somado às leituras de Ianni e de Cohn, sobretudo àqueles voltados ao conceito frankfurtiano de indústria cultural marcaram, então, em definitivo sua atração pelas Ciências Sociais.
A descoberta desta vocação – ou verdadeira paixão, como declara* – o levou ao trancamento simultâneo dos cursos de cinema e jornalismo e consequentemente ao ingresso no bacharelado em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) em 1969, instituição onde irá se formar em 1972. No interim do curso, por vias da colega dos tempos do curso preparatório para medicina, Heloísa Ianni – sobrinha de Octávio Ianni – Miguel entrou em contato com este sociólogo, então atuante na sede do Centro Brasileiro de Análise de Planejamento (Cebrap), à época sediado na rua Bahia em São Paulo. Este encontro foi fundamental para a trajetória de Miguel Chaia na sociologia. Deste modo, os laços se estreitaram e não demorou para Ianni intermediar os primeiros encontros entre o jovem aspirante a sociólogo com outro de seus autores favoritos, Gabriel Cohn, com quem desenvolveu amizade e pareceria intelectual.
De fato, uma vez graduado na PUC/SP, Miguel Chaia elaborou seu mestrado, na Universidade de São Paulo, sob a orientação do prof. Gabriel Cohn, pautado no tema das chanchadas brasileiras, na análise interna de suas narrativas e suas ambivalências entre forma e conteúdo com o populismo varguista. A inovação, até hoje muito citada por aqueles que tomam as artes por objeto nas ciências sociais: valorizar os aspectos internos das obras como variáveis fundamentais na formulação de suas hipóteses de pesquisa, sem deixar de tencioná-los de forma crítica com a realidade circundante. Esse o mote principal de O tostão furado, dissertação defendida por Chaia no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo em 1981.
Entre o último ano do bacharelado e o encontro com Ianni e Cohn, Chaia concorreu a uma vaga de professor assistente no Departamento de Política da PUC/SP e passou a atuar como docente na graduação daquela instituição a partir de 1973. Dois anos antes, entretanto, ainda como aluno do bacharelado foi contratado como estagiário da Hidroservice Engenharia de Projetos, onde atuou no Departamento de Economia e Sociologia (ES) sob a supervisão do sociólogo José Albertino Rodrigues (1928-1992) e da economista Lenina Pomeranz (1933-). Uma vez cumprida a etapa do estágio, foi contratado pela empresa desenvolvendo atividades relacionadas ao setor de Engenharia de Projetos atuando como sociólogo nas áreas de planejamento urbano, regional e agrário, em projetos de desenvolvimento e irrigação para o Nordeste, a América Latina e a África. Deste modo, as atividades docentes na PUC/SP e as de sociologia aplicada na Hidroservice serão conciliadas até 1982 quando acabou por se desligar desta última.
No ano seguinte, duas novas jornadas foram iniciadas na trajetória acadêmica e profissional de Miguel, posto que ingressou como sociólogo na Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), atuando primeiramente no desenvolvimento e implantação da pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) coordenada pela socióloga Annez Andraus Troyano (1944-), realizada em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE). Paralelamente, na mesma instituição, foi responsável por reativar a edição da revista São Paulo em Perspectiva, publicando análises significativas nas áreas da Economia e Ciências Sociais. Na ocasião, Miguel Chaia produziu artigos e análises voltados à renda e empregabilidade, destacando aquelas preocupadas em cruzar as variáveis raciais com desemprego o que já demonstrava condicionamentos importantes e inegáveis entre esses atributos, em uma época em que muito pouco ainda se ventilava sobre um tema de grande importância para a realidade brasileira.
Em todo caso, em meados de 1982, a ideia da tese de doutorado já se fazia presente em conversas constantes com Gabriel Cohn, mas o tema era por demais complexo, como o próprio Miguel reconhece: “- Queria identificar o potencial sociopolítico, medindo o maior ou menor grau de cada gênero e tipo de arte produzidas nos anos 1960 e 70 no Brasil. Até hoje me ocupo destas questões… Mas embora não tenha resultado em uma tese, se tornou um campo fértil ao qual tenho me dedicado até hoje.” *
Como este tema não foi factível, e trabalhando na fundação Seade, percebeu um manancial empírico para uma tese de doutorado que ia ao encontro de outros de seus interesses: o mundo do trabalho, a sociologia política, a universidade e os intelectuais. Resolveu por um tema que aliasse a sua experiência acadêmica e a do Seade, que lhe colocou em contato com o DIEESE. A partir desse tema mais geral, percebeu que havia um setor mais institucionalizado do mundo do trabalho onde intelectuais e sindicalistas se encontravam de forma complementar e ambivalente, e onde ocorria uma aliança no sentido da formação de uma hegemonia para a classe trabalhadora no Brasil, como resistência às instituições do regime militar. Estes os pressupostos básicos de sua tese finalizada em 1989 e que veio a ser uma de suas principais obras, Intelectuais e sindicalistas: a experiência do DIEESE – 1955-1990.
Em 1998, pelo convite da profa. Elide Rugai Bastos (1937 -), Miguel Chaia passa a integrar o corpo docente do Departamento de Estudos Pós-Graduados da PUC/SP, onde estava Octávio Ianni. Um ano antes, criou junto com a cientista política, professora da PUC/SP, Vera Lúcia Michalany Chaia, com quem é casado desde 1973, o Núcleo de Estudos em Arte Mídia e Política (NEAMP), que desde 1997, realizou diversos estudos e pesquisas entres as quais destacam-se O inventário da obra da artista plástica Tomie Ohtake, coordenada por Miguel Chaia, Lideranças Políticas no Brasil, coordenada pela professora Vera Chaia, ambas financiadas pela FAPESP. As atividades do NEAMP ainda mantêm, há mais de uma década, a publicação da Aurora: revista de arte, mídia e política; além da formação e participação em seus estudos, publicações e pesquisas, de mais de uma dezena de pesquisadores nos mais diversos níveis de graduação ao pós-doutoramento. Na PUC/SP, além de professor e pesquisador Miguel Chaia também exerceu a função de Editor da Editora da Universidade Católica (Educ) entre 2006 e 2020, desenvolvendo um trabalho estratégico de renovação editorial.
Entre os cientistas sociais marcantes na carreira de Miguel outros dois contribuíram para o equacionamento de duas paixões – as Ciências Sociais e as Artes, oferecendo-lhe novas pistas para o aprofundamento de seus interesses e pesquisas.
Ainda durante a graduação em Ciências Sociais na PUC/SP durante uma conferência da antropóloga Carmem Junqueira (1936 -), Miguel conta ter escutado dela algo que para ele soou como fundamental. Tratava-se de uma palestra sobre algo como a ‘Ciência dos modernos, o conhecimento nas Ciências Humanas e os saberes dos povos indígenas’. Estava sendo apresentado radicalmente ao relativismo e em um determinado ponto, Junqueira adiciona que a arte também deveria ser levada muito a sério como forma de saber e de conhecimento. Nas palavras de Chaia: “- Isso me abriu um mundo! Não à toa eu repito isso em tudo que falo e escrevo! A arte é uma forma de conhecimento, de saber! Mas foi a Carmem que me fez ver isso!” *
De fato, se Miguel Chaia não está em uma sala de aula, ou envolvido em uma pesquisa ou leitura, certamente está bisbilhotando algum museu, instituto cultural, ateliê, alguma nova galeria, se interessando pelo mundo de um novo artista, escrevendo ou organizando livros nas áreas das artes tais como Mídia e Política (org. 2000) Arte e Política (org. 2007); Cinema & Política (org. 2015), capítulos como em a Arte popular brasileira: olhares contemporâneos (WMF Martins Fontes, 2019), trabalhando em dezenas de curadorias, redigindo outras dezenas de catálogos e guias de exposições de artes visuais ou mesmo atuando na direção de instituições, tais quais o Museu de Arte de São Paulo (MASP), a Bienal de São Paulo e o Instituto Tomie Ohtake.
Fato é que, há mais de 20 anos, nessas encruzilhas entre as Ciências Sociais e as Artes, Miguel vem estudando sob diversos ângulos a dramaturgia de Shakespeare, tal como pode ser ver em A natureza da política em Shakespeare e Maquiavel (CHAIA, 1995). A história que, em parte faz compreender este interesse é um tanto quanto curiosa e mais uma vez nos leva as redes das relações de nosso personagem com figuras centrais das Ciências Sociais brasileiras.
Em meados dos anos 1970, por intermédio de uma amiga em comum, a socióloga Atsuko Haga, Miguel passa a visitar com alguma frequência o então recém repatriado Prof. Florestan Fernandes. Depois de estreitado algum laço, Miguel lhe pergunta o que acharia de voltar a lecionar e se lhe conviria que esse retorno se desse na PUC/SP. Fernandes se mostrou muito disposto. Miguel Chaia, então, procurou a cientista política Maria Tereza Sadek, então na chefia do Departamento de Política daquela instituição, que poderia dar cabo da contratação a qual procedeu com grande interesse e providenciou os trâmites para que Fernandes ingressasse como professor na Graduação e pouco mais tarde na Pós-Graduação daquela universidade.
Em que pese este episódio da história das Ciências Sociais brasileiras, fato é que, certa feita, Fernandes mostrou a Miguel um artigo que teria escrito para a Folha de S.P. O artigo versava sobre a política na obra de Shakespeare e como ela podia ser aplicada para a compreensão do conturbado momento político do Brasil àquele momento. Segundo Miguel, ele teve ali a sensação parecida com a que tivera na aula de Carmem Junqueira: “- A arte tem muito a dizer sobre a política e a sociedade.” *
Miguel Chaia se define em poucas palavras como um “devedor de Gabriel Cohn, sem se esquecer, também, da presença marcante de Octávio Ianni” *. Mas, para além do tributo a essas figuras em sua trajetória, Chaia se declara um adepto da ‘leitura interna’ do objeto em análise, sem, claro, deixar de fora os aspectos conjunturais. Nestes termos, considera, sobretudo àqueles que trabalham com arte e com intelectuais, indispensável a leitura de Antonio Candido (1918-2017). Nas suas palavras, “- Um sociólogo deve pensar sempre em ‘estrutura e conjuntura’ e jamais renunciar aos clássicos, sobretudo Karl Marx (1818-1883) e Marx Weber (1893-1920)” *. Entre as áreas, a sociologia da compreensão, do conflito, do conhecimento e da cultura são as que mais lhe interessam.
*entrevista gentilmente concedida por Miguel Chaia para o autor da nota biográfica em fevereiro de 2022.
Sugestões de obras do autor:
CHAIA, Miguel. (Org.). Cinema e Política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2015.
CHAIA, Miguel. (Org.). Arte e Política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007.
CHAIA, Miguel; Vera, CHAIA. (Orgs.). Mídia e Política. São Paulo: EDUC, 2000.
CHAIA, Miguel. Intelectuais e Sindicalistas: a experiência do DIEESE (1955-1990). São Paulo: Editora Humanidades, 1992.
CHAIA, M. W.. Mirian: para além da pintura figurativa. In: Vilma Eid; Germana Monte-Mór. (Org.). Arte popular brasileira: olhares contemporâneos. 1ed.São Paulo: Editora Martins Fontes, 2018, v. 1, p. 131-135.
CHAIA, M. W.; DIEESE, . A necessidade de uma nova conceituação de emprego e desemprego: a pesquisa. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 1, n.1, p. 15-25, 1985.
CHAIA, M. W.. A Estética Urbana do Desvario. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 5, n.2, p. 22-31, 1991.
CHAIA, M. W.. A Natureza da Política Em Shakespeare e Maquiavel. Revista de Estudos Avançados, USP – São Paulo, v. -, n.23, p. 165-182, 1995.
Obras sobre o autor
Memória Dieese – Disponível em: https://memoria.dieese.org.br/navegacao/nossas_historias/miguel-wady-chaia Acessado em: maio de 2022.