Por Edemilson Paraná (UFC)
Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro (1958-2022) foi um sociólogo brasileiro dedicado ao campo das relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Nesta área, publicou dezenas de artigos e capítulos de livros, e 10 livros como único autor. Seus trabalhos trataram de temas como tecnociência, biotecnologia, bioprospecção, design inteligente, avaliação institucional, universidade, e formação de recursos humanos em áreas estratégicas, com pesquisas empíricas apoiadas por distintos órgãos de fomento nacionais.
Lecionou na Universidade de Brasília (UnB) de 1989 até 2016, ano em que aposentou na condição de Professor Titular do Departamento de Sociologia. Neste período, ministrou cursos optativos e obrigatórios, e orientou dezenas de estudantes de iniciação científica, graduação, mestrado e doutorado. Exerceu ainda importantes cargos administrativos, como Decano de Ensino de Graduação e Chefe da Área de Planejamento da Universidade de Brasília. Teve participação ativa na política universitária, atuando em discussões e momentos importantes da história institucional da UnB. Em 2014, foi Presidente da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP/DF). Atuou, ainda, como professor e pesquisador visitante em importantes instituições acadêmicas nacionais e internacionais, como a University of Warwick (2016-17); a Ludwig-Maximilians-Universität (2010), a Open University (2006-07) e a Universidade de Campinas (2005-06). Além de avaliações para periódicos nacionais e internacionais, concedeu pareceres e realizou trabalhos e consultorias técnicas para vários órgãos do Ministério da Educação e Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil, para o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, e para instituições de fomento e avaliação acadêmica no Brasil e no exterior.
Trigueiro tem graduação, mestrado e doutorado em Sociologia pela UnB, mas iniciou sua trajetória na Engenharia Civil, curso que não chegou a concluir. Antes da UnB, lecionou matemática no ensino médio e trabalhou como pesquisador na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), onde iniciou, no então Departamento de Difusão Tecnológica (DDT), sua trajetória na Sociologia da Ciência e da Tecnologia pesquisando sobre os “fatores determinantes da escolha do problema de pesquisa no setor público agropecuário brasileiro”. Em termos substantivos, a produtiva trajetória intelectual de Michelangelo pode ser melhor acessada a partir de seus trabalhos pioneiros de mestrado e doutorado, que darão a tônica das questões, abordagens e contribuições empíricas e teóricas que serão desenvolvidas e aprofundadas nos anos seguintes de atuação profissional.
Em seu primeiro de trabalho de fôlego – sua dissertação de mestrado, premiada, em 1988, pela Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural (SOBER) e pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) – buscou compreender o papel de uma instituição de pesquisa, a própria EMBRAPA, no processo de geração de tecnologias. Entre a Sociologia das Organizações e a Sociologia da Ciência e Tecnologia, aprofundou, na ocasião, o desenvolvimento crítico do que, em diálogo com outras referências, definiu como a “estrutura da prática tecnológica”. Pelo termo, o pesquisador definiu o conjunto articulado de componentes físicos e institucionais que se relacionam entre si mediante um vasto campo de conflitos, os mais diversos, o qual é resultado de determinadas ações intencionais, no processo de produção de tecnologias. A ideia de intencionalidade, na estrutura da prática tecnológica, explica Trigueiro, significa que há certo direcionamento, um curso razoavelmente previsível na obtenção dos resultados tecnológicos, embora muitas das ações verificadas no processo de produção de tecnologia pressuponha gama muito distinta de motivações e enfrentamentos, nem sempre planejados. Em outras palavras, a estrutura da prática tecnológica atua no sentido de implementar, efetivamente, as possibilidades tecnológicas que já passaram por algum processo seletivo, mediante disputas diversificadas na prática tecnológica. Também neste trabalho, Michelangelo avança o conceito de “operador tecnológico”, que diz respeito à ativação relacional dos pontos de contato entre as diversas dimensões da “prática tecnológica” (base socio-material, estrutura institucional, estoque de conhecimentos científicos e tecnológicos e as alternativas de escolhas humanas, permeadas por um campo de conflitos a englobar todos esses aspectos).
Na passagem ao doutorado, vai se afastando das influências do Estruturalismo e do Marxismo Estrutural, características do trabalho anterior, em direção à Teoria Crítica, chegando a um engajamento com a Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas. Na ocasião, passa a se dedicar ao tema novas biotecnologias, que começavam a se estruturar no Brasil em meados da década de 1980. Na visão de Trigueiro, as novas biotecnologias propiciavam condições para a ampliação de um debate no interior da sociedade, e de ações comunicativas reflexivas, nos termos de Habermas. Seu foco se volta, então, às questões ideológicas e aos embates sobre a hegemonia na condução de determinadas tecnologias, com destaque à importância do cotidiano e das relações interpessoais, em diferentes setores da vida em sociedade, na configuração de novas tecnologias. Tais estudos o aproximam, ademais, do pensamento alemão e da fenomenologia. Desde esse ponto de entrada, investiga a problemática da legitimação na prática científico-tecnológica contemporânea. A esse respeito, desenvolveu o conceito de “contexto institucional de produção científico-tecnológica”, que destaca o modo como determinadas instâncias mais estruturadas da prática tecnológica condicionam o que foi designado, em seu trabalho, por “ideologia da prática” (expressão adaptada das formulações originais de Edward Yoxen), a qual, por sua vez, condiciona e também é condicionada pelas atitudes e pelos comportamentos dos pesquisadores, em suas decisões no processo investigativo.
Seguindo e aprofundando essas elaborações teóricas, Michelangelo publicou trabalhos sobre biotecnologia e biosprospecção (tema que irá lhe acompanhar até a fase final da carreira), ensino superior, reforma universitária e as universidades no Brasil, e mesmo sobre as controvérsias entre ciência e religião, como no caso do Sudário de Turim.
A despeito de muitos dos seus argumentos pregressos (como suas primeiras reflexões em torno do “conteúdo social da ciência e da tecnologia”) guardarem certa proximidade e semelhança com as contribuições do Construtivismo e dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (STS), é só em meados da década de 1990, quando esses debates chegam com mais força ao Brasil, que Trigueiro irá se engajar com este campo. Em autores como Bruno Latour, Michel Callon, Harry Collins, Karin Knorr-Cetina, Trevor Pinch, Wiebe Bijker, Steve Woolgar, dentre outros, se entusiasmou, em particular, com o programa empírico de pesquisa sobre C&T que ofereciam, em contraposição a abordagens normativas na Teoria do Conhecimento e particularmente na Sociologia da Ciência e Filosofia da Ciência. Como produto dessa aproximação, em 2006, foi convidado a prefaciar a edição brasileira do livro “Dr. Golem – como pensar a medicina”, de Harry Collins e Trevor Pinch. A influência dessas ideias é notória em grande parte dos seus trabalhos da primeira década dos anos 2000.
A partir de 2010, no bojo de um período de trabalho no Instituto de Filosofia, Lógica e Teoria do Conhecimento, na Ludwig-Maximilian Universität, retorna ao debate realismo versus anti-realismo em Filosofia da Ciência e, por essa via, realiza uma inflexão na linha seguida até então, aproximando-se do chamado “Realismo modesto”, de autores como James Robert Brown e de Philip Kitcher. Desta reflexão resulta um de seus mais importantes livros, “Ciência, Verdade e Sociedade – Contribuições para um Diálogo entre a Sociologia e a Filosofia da Ciência” (Fabrefactum, 2012).
Além deste e do livro “Sociologia da Tecnologia – Bioprospecção e Legitimação” (Centauro, 2009), ainda caudatário da fase anterior, quiçá esboçando uma transição entre elas, no qual adensa a noção de “conteúdo social da tecnologia”, destaca-se seu último livro, publicado postumamente, poucos meses depois de seu falecimento, “A legitimação no estágio atual do capitalismo” (Contracorrente, 2022). Para além de uma aguda intervenção sobre a complexa conjuntura em que vivemos, o texto configura uma espécie de síntese de sua frutífera trajetória intelectual, acima descrita. De seu modelo geral de análise à noção de operador social, de seu enquadramento do Estado à problemática da legitimação no capitalismo contemporâneo, da reflexão sobre a crise societal à oferta de propostas e prognósticos, culminando em considerações sobre o fazer das ciências sociais no presente, encontramos, em sua última publicação, para além de novos aportes, uma intrigante costura de temáticas, reflexões e abordagens cuja operacionalização passou pelo crivo de anos investigações, publicações, debates e cursos.
Incansável, até pouco dias antes de seu falecimento, Michelangelo trabalhava em um outro projeto de livro, para o qual já havia escrito cerca de 20 páginas. Tendo em vista a pandemia do Coronavírus e a mudança climática, lhe preocupava o que via como uma impenetrabilidade da Sociologia ao atravessamento da dimensão biológica da vida no estudo da sociedade e às discussões correspondentes que isso deveria suscitar. Para tanto, pretendia refletir, conforme abertura do manuscrito que não teve tempo de finalizar, sobre “a relação entre a chamada ‘base biológica’ e a sociedade, em aspectos fundamentais da vida coletiva, no estágio atual do desenvolvimento capitalista. De modo mais específico, o modo como essa base interfere no Estado, no ‘mundo vivido’ e no que foi designado, anteriormente, como operador social”.
Por fim, cumpre encerrar destacando sua dedicação e esmero para com o ensino, sua devoção quase sacerdotal à sala de aula. Na preparação exaustiva e cuidadosa dos cursos, na atenção às necessidades dos estudantes, na busca das formas mais justas e qualificadas de avaliação, no incentivo enérgico ao aprendizado crítico e autônomo, no reconhecimento parcimonioso – nada condescendente – ao esforço, na paixão contagiante com que conduzia cada uma dessas tarefas, este Professor, no sentido forte do termo, marcou a formação intelectual de várias gerações de sociólogos e sociólogas.
Sugestões de obras do autor:
TRIGUEIRO, M. G. S. Sociologia da Tecnologia; Bioprospecção e Legitimação. São Paulo: Centauro, 2009.
TRIGUEIRO, M. G. S. Ciência, Verdade e Sociedade; Contribuições para um Diálogo entre a Sociologia e a Filosofia da Ciência. Belo Horizonte: Fabrefactum Editora, 2012
TRIGUEIRO, M. G. S. A legitimação no estágio atual do capitalismo. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022.