Por Glaucia Villas Bôas (UFRJ)
Mauricio Vinhas de Queiroz deixou um legado ímpar para a sociologia. Uma de suas contribuições foi fomentar um diálogo profícuo da disciplina com a história, a antropologia e a economia. Essa prática, inconfundível em suas pesquisas, ao contrário do que se pensa, muitas vezes, fortaleceu a institucionalização e o reconhecimento da identidade da sociologia no contexto das décadas de 1960 e 1970. Em visão retrospectiva de sua obra, percebe-se, ainda, que a abordagem interdisciplinar, adotada pelo sociólogo, colocou em foco temas aparentemente tão díspares, como os movimentos messiânicos e as práticas corporativistas de grupos econômicos multibilionários, cujo eixo comum encontra-se, entretanto, no interesse do pesquisador em evidenciar os contrastes e as desigualdades profundas da vida social brasileira.
Em sua trajetória intelectual, Maurício Vinhas de Queiroz exerceu atividades como jornalista e se formou em Ciências Sociais pela Faculdade Nacional de Filosofia da antiga Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nessa universidade, foi professor de sociologia da antiga Faculdade Nacional de Ciências Econômicas e pesquisador do Instituto de Ciências Sociais. Mudou-se do Rio de Janeiro para Brasília, em 1969, quando se tornou professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade de Brasília. Ele doutorou-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1973.
No antigo Instituto de Ciências Sociais, criado na Faculdade Nacional de Filosofia, em 1958, Mauricio Vinhas de Queiroz se distinguiu pela sua atuação como pesquisador. Nas palavras de Gilberto Velho[1], sob a coordenação do sociólogo, o ICS “abrigou um dos projetos mais ambiciosos sobre grupos econômicos e condições institucionais da industrialização brasileira”. A pesquisa identificou, pela primeira vez, os grupos econômicos multibilionários brasileiros e estrangeiros instalados no país, desvendando a história de sua acumulação originária. Na época, nada se conhecia desses grupos, que incrementavam o desenvolvimento capitalista no país, estimando-se, equivocadamente, que seu número era irrelevante para a economia brasileira.
O ICS foi o primeiro instituto de pesquisa em Ciências Sociais a integrar uma universidade na cidade do Rio de Janeiro e dela receber recursos para as suas atividades. Durante os anos em que lá trabalhou, Mauricio Vinhas de Queiroz conviveu com Evaristo de Moraes Filho, Luiz de Aguiar Costa Pinto, Luiz de Castro Faria, Victor Nunes Leal, Roberto Cardoso de Oliveira e Marina São Paulo de Vasconcellos, que compunham o Conselho Diretor do Instituto. Além desses professores, ele manteve contato próximo com os colegas de sua equipe da pesquisa: Luciano Martins de Almeida, Alzira Abreu, Maria Luiza Proença, Rosélia Perissé, Maria Stella Amorim e José Antônio Pessoa de Queiroz. José de Souza Martins veio de São Paulo por sugestão de Fernando Henrique Cardoso para participar da pesquisa, enquanto Gilberto Velho e Alba Zaluar nela se integraram como bolsistas[2].
O convívio em ambiente intelectual fértil e promissor, voltado para a discussão e a pesquisa marcou não só a trajetória de Maurício Vinhas de Queiroz como repercutiu na formação e na escolha de carreira dos jovens participantes. Os resultados do trabalho causaram impacto nos meios acadêmicos carioca e paulista, uma vez que contrariavam a tese, defendida por políticos e intelectuais à época, de que a burguesia nacional era capaz de conduzir o processo de reformas do país. O golpe e a instauração da ditadura militar, em 1964, logo comprovaram o acerto do projeto. Em 1967, o ICS teve suas atividades encerradas. Maurício Vinhas de Queiroz foi para a Universidade de São Paulo fazer o doutorado com Luís Pereira, defendendo, em 1973, a tese intitulada Grupos econômicos e modelo brasileiro.
Bem antes de concluir seu doutorado, durantes os anos em que esteve envolvido com a pesquisa dos grupos multibilionários, Maurício Vinhas de Queiroz publicou diversos artigos e dois livros: Messianismo e Conflito Social: a guerra sertaneja do Contestado (1912-1916), em 1966, e Paixão e Morte de Silva Jardim, em 1967. Os artigos divulgavam, na sua maioria, os resultados parciais do estudo sobre os grupos econômicos no país. No entanto, temas como a arquitetura, o milenarismo e a metodologia das ciências sociais também mereceram sua atenção. Vale ressaltar que a biografia de Antônio Silva Jardim, um dos mais importantes abolicionistas e republicanos brasileiros, foi editada pela primeira vez, em 1947, com o título, Uma garganta e alguns níqueis. Vinte anos depois, reeditado com novo título pela Civilização Brasileira, o livro se tornou referência obrigatória nas interpretações da obra e da atuação do escritor e jornalista.
Não resta dúvida, porém, que a obra de maior repercussão do sociólogo é Messianismo e conflito social, considerado um clássico sobre a Guerra do Contestado. Com base em levantamento exaustivo de documentos e matérias jornalísticas, além da coleta de depoimentos, Maurício Vinhas de Queiroz analisou os vínculos entre as condições sociais precárias e conflituosas nas quais surgiu o movimento messiânico que deu origem à Guerra do Contestado, no interior de Santa Catarina e do Paraná. A pesquisa minuciosa entremeia ações e relações de natureza econômica, social, política e religiosa, desnudando questões fundiárias e a luta pela terra contra a exclusão e o desemprego. A escrita clara e elegante do autor contribui para o entendimento de um dos maiores conflitos sociais brasileiros, que, entretanto, é relegado ao esquecimento.
Em 1969, Mauricio Vinhas de Queiroz ingressou no quadro dos professores de sociologia da recém-criada Universidade de Brasília. Oferecia disciplinas sobre o tema das desigualdades sociais e do desenvolvimento econômico, destacando-se pelo conhecimento da obra de Marx e dos movimentos sociais, rurais e urbanos. Em Brasília, passou a conviver com novo círculo de cientistas sociais por onde transitavam Roberto Cardoso de Oliveira, David Fleischer, Vilma Figueiredo, Barbara Freitag, Roque Laraia de Barros, Júlio César Melatti que integravam, ao lado de outros colegas, o conjunto de docentes e pesquisadores da Universidade de Brasília.[3]
Em depoimento de dois de novembro de 2021[4], a professora Regina Bruno da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e antiga orientanda de Maurício Vinhas de Queiroz, afirmou que o professor ministrava com maestria os cursos sob sua responsabilidade. Graças a sua concepção interdisciplinar, ele não somente relacionava a sociologia com disciplinas afins, mas ressaltava os aspectos políticos dos fenômenos observados, realçando as conexões finas entre diversos processos sociais. Quanto às leituras de textos para as aulas, o professor insistia sempre com os alunos que era preciso “ouvir a voz dos autores” antes de interpretá-los precipitadamente.
Regina Bruno lembrou, ainda, de um artigo sobre as especificidades do desenvolvimento brasileiro e japonês, publicado em 1973, que considera um bom exemplo da ousadia temática peculiar ao seu antigo orientador. Naquela época eram raros os estudos comparados, ainda mais se tratando de um país tão distante geográfica, histórica e culturalmente. Vivendo sob a ditadura militar, Mauricio Vinhas de Queiroz se opôs ao regime autoritário, expressando seu descontentamento em diversas ocasiões. Uma vez, impedido de comemorar o dia dos trabalhadores no primeiro de maio, ele convidou alguns de seus alunos para sua sala no “minhocão” para lhes falar sobre o significado da data e não deixar que passasse despercebida.
Mauricio Vinhas de Queiroz nasceu no Rio de Janeiro e faleceu em novembro de 1996, aos 75 anos. Sua atuação na docência e formação de pesquisadores, bem como suas ideias e pesquisas ressoam até hoje na sociologia brasileira, inscrevendo-se na história da disciplina.
Sugestões de obras do autor:
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Uma garganta e alguns níqueis. Rio de Janeiro, Editora Aurora, 1947. (2ª edição, Paixão e Morte de Silva Jardim, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira,1967)
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Arquitetura e desenvolvimento. Revista do Instituto de Ciências Sociais, ano I, n° 1, jan- jun. (Reproduzido em Arquitetura: Revista do Instituto de Arquitetos do Brasil, n° 8. fev, 1963; e em Módulo, ano 9, n° 37, agosto de 1964.
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Os grupos econômicos no Brasil. Revista do Instituto de Ciências Sociais, ano I, n° 2, jul- dez, 1962.
QUEIROZ, Maurício Vinhas de; COSTA PINTO, Luiz A. Textos de Sociologia: problemas de abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro: Instituto de Ciências Sociais, 1963.
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Cargo cult na Amazônia: observação sobre o milenarismo Tukuna. América Latina, ano 6, n° 4, out-dez, 1963.
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Os grupos multibilionários. Revista do Instituto de Ciências Sociais, vol. 2, n° 1, jan-dez., 1965
QUEIROZ, Maurício Vinhas de Messianismo e Conflito Social: a guerra sertaneja do Contestado (1912-1916). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. (2ª edição: São Paulo: Ática, 1977; 3ª edição: 1981)
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Grupos econômicos e modelo brasileiro. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, 1963.
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Brasil e Japão: analogia e contrastes históricos. Debate e Crítica, ano I, jul-dez., 1973.
QUEIROZ, Maurício Vinhas de; EVANS, Peter. “Um delicado equilíbrio: o capital local e o multina cional na industrialização brasileira”. In Multinacionais, Internacionalização e Crise (Vários). Caderno Cebrap, n° 28. São Paulo: Brasiliense, 1977.
QUEIROZ, Maurício Vinhas de; EVANS, Peter. A Estrutura Agrária Brasileira: a CFP e a sua divulgação. Série Sociologia 31. Fundação Universidade de Brasília, 1981.
[1] Gilberto Velho, “Maurício Vinhas de Queiroz (1921-1996)”, Anuário Antropológico, 1996, p 283.
[2] Para mais informações sobre o projeto, ver Glaucia Villas Bôas, “80 anos de Ciências Sociais na UFRJ. Relembrando o pioneirismo dos projetos Grupos Econômicos (1962) e Trabalhadores Cariocas (1987)”, Sociologia & Antropologia V 09.0I, jan.fev.2019,297-312.
[3] A respeito da área de sociologia na UNB, ver de Maria Francisca Pinheiro Coelho, Lourdes M. Bandeira e Mariza Veloso, “Três olhares, um só foco: a sociologia na Universidade de Brasília,” Sociedade e Estado, Brasília, i. 31, n. especial, 2016, 921-938.
[4] Agradeço muito a gentileza de Regina Bruno, professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da UFRRJ, em conversar comigo sobre seu convívio com Mauricio Vinhas de Queiroz na Universidade de Brasília. Sua dissertação de mestrado, orientada por ele, intitula-se “As condições sociais da agricultura no Distrito Federal” e foi defendida em 1976.