Por Liliana Segnini (Unicamp)
Um intelectual intransigente.
Maurício Tragtenberg (1929-1998) sintetiza sua trajetória pessoal e intelectual afirmando “O que eu sou é o que me faz viver”.[1] Frase que traduz a coerência presente em sua forma de ser, expressa a denúncia das formas de opressão, dominação e exploração, bem como a procura do conhecimento que funda a solidariedade presentes em toda a sua vida. Nesse sentido ele era intransigente: “nunca cooptou com a ciência que não tivesse como horizonte a elevação da condição humana, a dignidade do homem”, nas palavras de seu ex-aluno e amigo Fernando Cláudio Prestes Motta (Motta, 2001). Sociólogo e professor, Maurício nasceu em Getúlio Vargas, Rio Grande do Sul, no dia 4 de novembro de 1929, e faleceu aos 69 anos, em São Paulo.[2]
Primeiros passos na construção da solidariedade
Na qualidade de pequenos proprietários camponeses, seus avós imigraram para o Rio Grande do Sul, no início do século XX, fugindo dos massacres provocados pelos progroms, dentro de um projeto da Cia. Judaica de Colonização no início do século. Cultivavam como unidade familiar “uma agricultura de subsistência onde o excedente era vendido no mercado, em Erebango, que depois tornou-se Erexim e, finalmente, Getúlio Vargas.” (op.cit) Trata-se de uma experiência fundada no apoio mútuo e na solidariedade, tal como na revolução maknovista na Ucrânia, destruída pelo bolchevismo, em 1918.
Na biblioteca e nas discussões dos colonos, referências anarquistas por meio das leituras políticas e literárias, textos recebidos da Argentina e do Canadá. Tolstói, Pushkin e Tchekov, Bakunin, Kropotkine, Malatesta, James Guillaume, Rudolf Rocker, além de obras de Emma Goldman e Nestor Maknó contribuíam para o aprimoramento dos princípios anarquistas.
Pouco a pouco, a cidade grande atraiu sua família. Foi em Porto Alegre que Maurício frequentou o Grupo Escolar Luciana de Abreu, num bairro judeu. “A condição de `judeu´, numa sociedade nacional mais ampla, leva você a uma `politização precoce´”, afirma Tragtenberg. Logo depois, a família mudava para São Paulo, num vagão de segunda classe da então Viação Férrea do Rio Grande do Sul, indo morar no bairro do Bom Retiro, na rua Tocantins. Estudou na escola judaica ortodoxa “Thalmud Torá”.
Universidades não convencionais
Maurício concluiu o 1º grau no terceiro ano primário, retomou os estudos escolares quando ingressou na FFCHL na USP mediante apresentação de uma monografia à Congregação (op.cit)
Reconstruindo esta trajetória, Tragtenberg relata: ‘Comecei a trabalhar muito cedo para ajudar um fraco orçamento doméstico, meu pai falecera e minha mãe costurava. Iniciei minhas “universidades”, frequentando um bar na rua Ribeiro de Lima, que tinha duas características: comida barata e mesa sem toalhas. Lá acorriam trabalhadores de origem letã, lituana, russa, polonesa, muitos haviam inclusive participado da Revolução Russa, haviam topado pessoalmente com Lênin, Trotsky, Zinoviev ou Bukharin. Não eram “temas” de academia e sim expressão de relações sociais e políticas vividas.” (id.ibid)
Na Fundação do Partido Socialista, conheceu Antonio Candido, ministrando curso de História do Brasil. e Azis Simão que discutia sindicalismo e a burocracia. Frequentou as conferências do Centro de Cultura Social discutindo com Edgard Leuenroth, Pedro Catallo, a feminista Anita Carrijo e o escritor Mário Ferreira dos Santos.
A burocracia como poder torna-se seu objeto de estudos desde então, além de experienciar uma vivência concreta: aprovado no concurso para o cargo de escriturário do Departamento de Águas e Energia Elétrica, lá travara contato com a burocracia e seus rituais.
A Biblioteca Municipal Mário de Andrade significou uma de suas “universidades”. Lá lia o que lhe interessava ler, discutia com outros autodidatas, tais como Sílvia Leser, Bento Prado Jr., Aracy Martins Rodrigues, Carlos Henrique Escobar, Flávio Rangel, Antunes Filho, Maria Lúcia Montes, Leôncio Martins Rodrigues, Cláudia Lemos. Lia-se de tudo, afirma Tragtenberg, “de Aristóteles a Sprengler, passando por Fernando Pessoa, Sá-Carneiro e José Régio.” (id. Ibid)
Em certa ocasião, Antonio Candido, no saguão da Biblioteca Municipal, mencionara-lhe uma lei federal que permitiria apresentar uma monografia à FFCHL da USP, para prestar vestibular e cursar a universidade. Em 150 dias preparou a monografia e foi aprovado na USP. Inicialmente Ciências Sociais, posteriormente História. Concluiu o curso e foi aprovado no concurso de ingresso ao magistério oficial do Estado de São Paulo. Iguape, no início da carreira, Taubaté em seguida e, mais tarde, Mogi das Cruzes.
A convite do Prof. Wilson Cantoni, foi contratado como docente Faculdade de Filosofia de São José do Rio Preto, atual campus da Unesp onde ministrou aulas de Cultura Brasileira para os alunos do curso de Letras e Pedagogia. Ali, foi colega de Michael Löwy, que, mais tarde, viria a fazer carreira universitária na França. “Porém, lembra Maurício, veio 64, fomos demitidos sumariamente e passamos a ministrar curso de “extensão universitária” na Delegacia de Polícia local.”(id.ibid.)
Maurício Tragtenberg viveu, no período, um esgotamento nervoso e ficou internado no Instituto Aché durante 90 dias. Leu livros, com autorização médica, estruturou a tese de doutorado, que defendeu na área de Política da USP – Burocracia e Ideologia. O intelectual afirma que “1964 fora realmente o pior ano de minha vida. Saí do hospital, sem cargo, sem trabalho e com dívidas a pagar, por aí a gente vê como um currículo não pode ser somente ‘edificante’ e ‘vitorioso´: é também composto de indecisões, incertezas e derrotas.” (id ibid).
Convidado por Cláudio Abramo dirigiu na Folha de S. Paulo o noticiário internacional, durante três anos. Posteriormente, retornou à vida acadêmica a convite da Fundação Getúlio Vargas para ministrar o curso de Sociologia da burocracia. Por outro lado, a PUC-SP e a Unicamp foram-lhe universidades relevantes quanto à formação de novos mestrandos e doutorandos, cursos e pesquisas realizadas. Formou um número grande de mestres e doutores, ensinando-lhes a elaborar perguntas pertinentes e respondê-las por meio de muita leitura e observação crítica do contexto social. Eu tive o privilégio de fazer parte deste grupo tanto no mestrado como no doutorado.
As contribuições do pensador para a crítica histórica, sociológica, política e pedagógica, possibilitaram a organização da Coleção Maurício Tragtenberg, pelo sociólogo Evaldo Amaro Vieira e publicado pela Editora Unesp. Composta por textos clássicos, inéditos e uma grande variedade de artigos publicados na imprensa, principalmente no jornal sindical O Batente, os textos que integram a coleção abrangem toda a obra do autor.
Sugestões de obras do autor:
TRAGTEMBERG, Maurício. Burocracia e Ideologia. São Paulo: Ed. UNESP, 2006.
TRAGTEMBERG, Maurício. Administração, Poder e Ideologia. São Paulo: Ed. UNESP, 2004
TRAGTEMBERG, Maurício. O capitalismo do século XX. São Paulo: Ed. UNESP, 2009
TRAGTEMBERG, Maurício. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo: Ed.UNESP, 2006.
TRAGTEMBERG, Maurício. Reflexões sobre o socialismo. São Paulo: Ed.UNESP, 2016.
Sobre o autor:
CATANI, Afrânio Mendes. Maurício Tragtenberg: um intelectual contra o poder intelectual (1929-1998), Revista ADUSP, junho, 1999, p,88-90
VIANA, Alexandra. O Pensamento de Maurício Tragtenberg – Um Encontro com Marx e Weber. Editora Ragnatela, 2022.
SILVA, Doris Accioly; MARRACH, Sonia Alem (Compiladores). Maurício Tragtenberg: Uma vida para as ciências humanas. São Paulo: Ed. UNESP, 2001.
[1] Shakespeare, Henrique VIII: Epígrafe do memorial apresentado por Maurício Tragtenberg na Faculdade de Educação da Unicamp no concurso para Professor Titular. In: Revista Pro-Posições, no. 4 – marçol de 1991, p. 79 – 87.
[2] Os argumentos e fatos narrados neste texto foram informados pelo próprio Prof Maurício Tragtenberg, no Memorial já citado.