Por Marcelo Saturnino da Silva (UEPB)
A ampla produção teórica de Marilda Aparecida de Menezes é hoje leitura obrigatória para qualquer pessoa que se interessa pelo mundo rural brasileiro, especificamente, pela relação entre campesinato, família, trabalho e migrações – temas que a motivam intelectual e afetivamente.
Seu pai, Manoel Messias de Menezes – artesão e mestre sapateiro – era natural de Sergipe. Ainda solteiro, migrou para o Rio de Janeiro e, posteriormente, para o interior de São Paulo, onde conheceu sua esposa, Isolina Ferreira de Menezes. Logo após o casamento, na década de 1950, o casal migrou para a região metropolitana do Estado de São Paulo, conhecida como ABC Paulista, por congregar três grandes cidades: Santo André; São Bernardo e São Caetano do Sul.
Marcada pela exacerbada concentração industrial, a Região do Grande ABC se constituiu também como “território” dos migrantes nordestinos que para lá se dirigiam, sobretudo nas décadas de 1970/1980. A região é conhecida como berço do movimento metalúrgico, que marcou a história do sindicalismo brasileiro.
Foi nessa região que Marilda Aparecida de Menezes nasceu, no dia 23 de dezembro de 1956. Foi, aí, no berço dessa família e no contexto da região do ABC, que ela viveu os vinte e quatro primeiros anos de sua vida. Aos 14 anos, começou a trabalhar “com carteira assinada”, tendo inclusive assumido um cargo de secretária numa fábrica local, passando a conciliar trabalho e estudo.
Em 1975, auge do governo militar, ingressou no Curso de Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia e Letras da Fundação Santo André. Ao término do curso, em 1978, participou – como monitora – de uma experiência de alfabetização de adultos em uma favela do município de Santo André, cujos habitantes eram, em sua maioria, migrantes procedentes do Estado da Paraíba, precisamente da região do Sertão de Cajazeiras.
Mais tarde, já residindo em Campina Grande – PB e cursando o mestrado de Sociologia Rural na Universidade Federal da Paraíba – UFPB, Marilda Aparecida de Menezes entrou em contato com as famílias de seus antigos alunos. Esses trabalhadores e seus grupos familiares constituíram os personagens de sua dissertação, escrita sob orientação da Profa. Ghislaine Duque, e intitulada “Da Paraíba prá São Paulo e de São Paulo, prá Paraíba”: migração, família e reprodução da força de trabalho.
Neste trabalho, já é possível vislumbrar a delicadeza da pesquisadora, preocupada em compreender “os significados da migração para o grupo estudado” e, nesse sentido, sua filiação às correntes epistemológicas marcadas pela perspectiva Interpretativista, bem como seu compromisso ético-político expresso na tentativa de tomar os camponeses trabalhadores-migrantes como sujeitos sociais, evitando a armadilha do pensamento binário, que ora reifica o sujeito, dotando-o de um poder ilusório; ora o reduz à condição de pura passividade. Em suas análises, Marilda Aparecida de Menezes assume, ao contrário, uma posição dialética fundada na ideia de que o ser humano é ativo, produzindo e sendo reproduzido no âmbito das condições e relações sociais nas quais está inserido.
Após a conclusão do mestrado, em 1985, Marilda atuou no Centro de Estudos Migratórios (CEM), instituição ligada à Congregação Católica Scalabriniana, cuja ação pastoral é voltada para os migrantes nacionais e internacionais. No CEM, ela desenvolveu atividades de pesquisa e assessoria, organizando também as publicações. A partir de 1986, participou da fundação do Serviço Pastoral de Migrantes (SPM), vinculado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), quando então assumiu a primeira secretaria nacional desse organismo. Atuou, ainda, como editora da “Travessia – Revista do Migrante”.
O trabalho junto à Pastoral dos Migrantes favoreceu o contato com camponeses paraibanos que, sazonalmente, trabalhavam no corte de cana da Zona da Mata de Pernambuco, grupo este que constituiria os personagens de sua tese de doutorado, defendida em 1997 na Universidade de Manchester, Inglaterra, sob a orientação do Prof. Ducan Scott, e coorientação de Collin Murray.
Na tese, posteriormente publicada pela editora da UFPB, em parceria com a Relume-Dumará, com o título “Redes e enredos nas trilhas dos migrantes: um estudo de famílias de camponeses migrantes”, Marilda Aparecida de Menezes analisa as condições de exploração dos trabalhadores no corte de cana-de-açúcar e da vida desses sujeitos nos alojamentos. Utilizando a noção de “resistência cotidiana” – de James Scott (1985, 1990) –, ela analisa, igualmente, as formas de resistência, buscando apreender “se e como o migrante questiona, rejeita, resiste às condições de trabalho e de vida determinadas pelo capital” (MENEZES, 1990, p. 26), contrapondo-se à grande parte da literatura especializada segundo a qual os camponeses trabalhadores-migrantes eram tidos apenas como passivos e submissos às condições de exploração.
No período de 2004-2005, ela aprofundou a noção de resistência cotidiana, no âmbito de um Pós-Doutorado realizado no Agrarian Studies Program da Yale University, tendo trabalhado diretamente com o Prof. James Scott.
Leitora de Walter Benjamin, Marilda A. de Menezes é reconhecida também pelo uso profícuo que faz da história oral, assumida por ela como uma metodologia de pesquisa que permite o acesso à memória, sem perder de vista as diversidades de narrativas relacionadas às diferentes posições dos sujeitos sociais. Ao lado da memória, da narrativa, há, na produção desta pesquisadora, um intenso uso também das redes sociais como estratégia para a compreensão da migração dos camponeses-trabalhadores-migrantes bem como da organização de grupos e dos espaços sociais nos territórios de vida e de trabalho desses sujeitos. Em 2011, ela se aprofundou na perspectiva de “redes sociais” no âmbito de outro pós-doutorado realizado no Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob orientação da professora Emília Pietrafesa de Godoi.
A professora Marilda Aparecida de Menezes é considerada uma das grandes testemunhas das reconfigurações nos processos migratórios sentido Nordeste/Sudeste, das últimas décadas do século XX e das duas décadas iniciais do século XXI. Tendo iniciado seus estudos na primeira metade da década de 1980, abordou a migração de trabalhadores nordestinos para a cidade de São Paulo e também para a plantação de cana-de-açúcar no Sudeste e no próprio Nordeste (neste caso, uma migração local); ela acompanhou as reconfigurações nesses processos migratórios favorecidas pelo novo lugar que o agronegócio canavieiro passou a ocupar no país pós-democratização, sobretudo a partir da última década do século XX e das primeiras décadas do século XXI, concomitantemente ao processo de reestruturação produtiva com o decréscimo das ocupações em outros setores produtivos. Atualmente, com a consolidação do processo de mecanização da colheita de cana-de-açúcar, os fluxos migratórios sentido Nordeste-Sudeste também se reconfiguram, fazendo emergir, para os camponeses, trabalhadores-migrantes, novas vulnerabilidades, as quais têm sido objeto dos seus trabalhos mais recentes.
Em 2012, após se aposentar do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) – onde atuou por 22 anos como professora e pesquisadora –, Marilda Aparecida de Menezes continuou produzindo conhecimento e formando novos pesquisadores no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da UFABC e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNICAMP. Além disso, continuou atuando no conselho editorial das revistas Agrarian South: Journal of Political Economy; Travessia, RURIS (UNICAMP), RAÍZES (UFCG), Estudos Sociedade e Agricultura e desenvolvendo pesquisa na qualidade de Pesquisadora do CNPQ nível 1C.
Sugestões de obra da autora:
MENEZES, M.A. (2020) Trabalhadores migrantes em usinas de cana de açúcar Condições de trabalho e práticas de resistência. In: Germán Quaranta; Paola Mascheroni. (Org.). Boletín del Grupo de Trabajo Trabajo agrario, desigualdades y ruralidades. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, v. 3, p. 93-111.
MENEZES, M. A. (2020) Economia moral em James Scott e as perspectivas de seus críticos. RAIZES (UFPB), v. 39, p. 225-240.
MENEZES, M. A. (2002) Redes e enredos nas trilhas dos migrantes: um estudo de famílias de camponeses – migrantes. Rio de Janeiro e João Pessoa: Relume Dumará e Ed. UFPB, 2002.
MENEZES, M. A. (2005) História oral: uma metodologia para o estudo da memória. Vivência (Natal), Natal – RN, n.28, p. 23-36, 2005.
Sobre a autora:
JUNIOR, J. S. (2020) Veredas, Inquietações e Engajamentos: sobre o desafio de “ler” Marilda Menezes. Revista Latinoamericana de Antropología del Trabajo. V. 4, n. 7.
MACIEL, L. M. (2020) Entrevista com a Profa. Dra. Marilda Aparecida de Menezes. Idéias. Campinas, SP, v.11, 1-13, e020012.
MENEZES, M. A. (2020) Trabalho, família e migrações: uma relação afetiva e uma trajetória de pesquisa. Revista Latinoamericana de Antropologia del Trabajo. v. 4, p. 01-09.