Por Neyara Araújo (UFC)
Maria Sulamita de Almeida Vieira nasceu no município de Canindé, sertão central do Ceará, região do Estado das mais castigadas pelas estiagens. Esta não é apenas uma informação retirada de documento oficial, pois, como ela mesma, orgulhosamente, diz: carrega em si a identidade de filha do sertão. Quem desfruta do privilégio de sua convivência percebe bem o profundo significado disso. Ou seja, eu poderia dizer: não é que ela tenha vindo à luz em uma localidade casual denominada Serra do Machado e, sim, que ela foi gestada pelo sertão, no centro do sertão.
Ali, um jovem casal, herdeiro de um médio proprietário rural, tomou nas mãos o seu quinhão de terra, que não era grande, posto que representava apenas um décimo da terra destinada aos filhos de seu avô materno. Daquela terra, o jovem casal extraiu a sobrevivência de sua dúzia de filhos, dois dos quais adotados, coisa muito própria das famílias sertanejas de então. Na fila dos dez filhos biológicos Sulamita é a quinta.
A mãe foi a professora dos filhos, pois não havia escola no lugar. O pai foi o enfermeiro prático de toda a vizinhança, pois não havia serviço médico no lugar.
Haveria o que naquele sertão, meu Deus? Se não havia escola, nem posto de saúde, nem estrada!… Seu pai que se ocupasse em abrir passagem em direção à cidade mais próxima!
Havia situações incompreensíveis à menina Sulamita – moradores homens que vinham prestar serviço na fazenda em dia combinado; moradoras mulheres ocupadas na cozinha sob a direção de sua mãe; o tipo e o jeito de comer, diferentes dos hábitos de sua família… E tantas outras situações, as quais, posteriormente, a jovem estudante de Ciências Sociais, Sulamita Vieira, começou a desnaturalizar, e como, hoje, a Professora Sulamita se ocupa em ensinar para os seus alunos.
Dentro de casa, em meio a tantas dificuldades e desafios, Sulamita reconhece que a mãe ensinou aos filhos uma qualidade inestimável: sobrepor o coletivo ao individual. No futuro, Sulamita teria um irmão preso pela ditadura militar e outro assassinado pelo latifúndio… A mãe também legou aos filhos o espírito curioso e o gosto pela leitura, imprimindo-lhes o hábito da interpretação – “Não queiram aprender como papagaio que repete só aquilo que você diz”.
Quem convive com a Sulamita percebe facilmente que ela é dona de uma delicada rigidez de berço. Este traço fundamental de sua personalidade pavimenta não só a sua sociabilidade, mas também supre de significados e de valores a sua trajetória acadêmica. Digo melhor: a sua vida acadêmica. Ela mesma diz que encontrou naqueles confins uma vasta biblioteca que lhe abriu a mente – e eu acrescento: para a compreensão do mundo de maneira sensível, solidária e diversa. Forja-se aí a base para a formação da brilhante cientista social que ela é, para quem a fronteira da Antropologia com a Sociologia é bastante tênue.
A sua formação em Ciências Sociais foi iniciada em 1969, na Universidade Federal do Ceará. Quem se graduou nesse período sabe bem o seu significado. Alguns nem conseguiram seguir na turma, sendo perseguidos e presos. Como lição muito positiva, Sulamita relata o modo como os estudantes superavam as dificuldades: por exemplo, diante da falta de dinheiro para a compra de livros e da inexistência de uma biblioteca universitária mais completa, eles criaram uma rede de ajuda mútua, estudando em grupo no contratempo das aulas, de modo que, aqueles que dominavam melhor um dado conteúdo, davam aula para os demais.
Apesar de tudo, o denodo dos professores permitiu o cumprimento das tarefas universitárias de ensino, pesquisa e extensão. Em relação a esta última, pela qual tenho, particularmente, muito apreço, destaco a experiência da estudante de Ciências Sociais, Sulamita Vieira, no Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária (CRUTAC-CE). A ação envolvia estudantes de diversos cursos das diversas áreas de graduação, tendo sido concentrada geograficamente no município de Itapipoca, para onde o grupo interdisciplinar deslocava-se aos finais de semana e férias. Ali, os estudantes se iniciavam em pesquisa, imersos no território, proferiam palestras nas escolas e acompanhavam as famílias, entre outras atividades consideradas como ação comunitária. A importância do CRUTAC na formação universitária pode ser apontada em dois vetores: o contato dos estudantes com as questões do mundo rural e a descoberta, por parte destes, do sentido social das profissões para as quais estavam se preparando.
Com relação à pesquisa científica, destaco, na formação acadêmica de Sulamita Vieira, a investigação que realizou sobre “os sistemas de relações socioculturais numa praça de mercado”, a qual, posteriormente, lhe serviu de base para o seu estudo de mestrado em Sociologia sobre a feira como acontecimento sociocultural (1980).
Prosseguindo os estudos em que articula a cidade e o sertão, e trazendo à luz a noção de cultura que os atravessa, Sulamita chega ao doutorado em Sociologia com o projeto “Representações do sertão na música de Luiz Gonzaga” (1999). Ambos, mestrado e doutorado, realizados na UFC.
Tendo eu que encerrar estas notas, devo dizer que elas estão bastante incompletas, pois mil palavras são poucas para expressar a grandeza pessoal e intelectual da Sula. Sua generosidade está presente em instituições como: SBPC, onde foi eleita por dois biênios como secretária regional; FUNCAP-CE, Arquidiocese de Crateús, ADUFC, ESPLAR etc., com as quais ela contribuiu profissionalmente. Entre sua obra, além da dissertação e da tese, destaco, a meu gosto, os títulos: “Caminhos das Ciências Sociais na UFC”; “Velhos sanfoneiros”; e, notadamente, seu memorial para exame titular, publicado com o título “Do sertão para a cidade: entrelaçando caminhos”. Considero o referido memorial um material didático de primeira ordem para quem deseja aprender como se escreve acerca da intrincada relação entre biografia e história.
No que diz respeito às atividades de ensino, destaco o esmero da Professora Sulamita corrigindo, palavra por palavra, os textos de seus alunos de graduação e anotando, ao lado da página, observações pertinentes, na disciplina de Cultura Brasileira; talvez, como lhe fizera sua mãe ao alfabetizá-la: preste atenção na escrita e interprete sempre! Em troca de seu inesgotável esforço, ela exige do aluno que ele supere o senso comum e aprenda a expressar seu próprio pensamento. Mal sabem eles o bem que ela lhes faz.
Encerro agora: doce-rígida educadora, generosa pesquisadora-professora, querida colega-amiga Sulamita – uma profícua carreira que se renova a cada dia.
Sugestões de obras da autora:
VIEIRA, Maria Sulamita de Almeida. Caminho das Ciências Sociais na UFC. 1. ed. Fortaleza: Edições UFC, 2016. v. 1. 286p .
VIEIRA, Maria Sulamita de Almeida. Velhos sanfoneiros. Fortaleza: Museu do Ceará, 2006. 120p .
VIEIRA, Maria Sulamita de Almeida. O sertão em movimento: a dinâmica da produção cultural. 1. ed. São Paulo-SP: Annablume, 2000. v. 1. 267p .
VIEIRA, Maria Sulamita de Almeida. Cultura e política: tecidos do cotidiano brasileiro. 1. ed. Fortaleza-Ce: Edições UFC, 1998. v. 1. 238p .