Maria Stella Faria de Amorim

Por Glaúcia Villas Bôas (UFRJ)

Maria Stella Faria de Amorim nasceu em 26 de janeiro de 1936, em Niterói, em uma família de imigrantes portugueses, e faleceu em 11 de setembro de 2022, no Rio de Janeiro. Foi aluna do curso de Ciências Sociais da antiga Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, de 1958 a 1961. Após a conclusão da licenciatura e bacharelado, Stella ingressou com uma bolsa de estudo no Instituto de Ciências Sociais, e pouco depois, mediante aprovação em concurso público, passou a integrar o quadro permanente de pesquisadores do ICS.[1] Foi pesquisadora assistente de David Melbourne Lewis na Universidade de Harvard de 1971 a 1972.  Em seguida, fez sua livre docência em Sociologia na Universidade Federal Fluminense, em 1975.

Stella foi uma das poucas mulheres que se formou na fase de florescimento da pesquisa em Ciências Sociais na cidade do Rio de Janeiro. Embora o curso de Ciências Sociais da antiga Universidade do Brasil tivesse sido criado em 1939, a realização de  projetos de pesquisa coletivos e a iniciação regular de jovens na investigação social ocorreram somente no final da década de 1950, quando o Centro Latino Americano de Pesquisa em Ciências Sociais/CLACSO, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais/CBPE e o Instituto de Ciências Sociais/ICS estavam no auge de suas atividades. Os centros e o instituto mantinham bibliotecas atualizadas à disposição de professores, pesquisadores e estudantes, e recebiam, com frequência, pesquisadores brasileiros e estrangeiros a exemplo de Herbert Blumer, José Medina Echevarria, Gino Germani e Wright Mills, entre tantos outros.

Em entrevista que concedeu em 28 fevereiro de 2020[2],  Stella  disse que,  junto aos centros de pesquisa atuantes na cidade, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros/ISEB constituía a grande atração dos estudantes do curso de Ciências Sociais. Eles costumavam ir ao ISEB para ouvir as conferências de professores afamados e se inteirar do debate sobre o desenvolvimento do país. Ela também frequentava o Instituto, e embora incentivada para a pesquisa etnológica por Roberto Cardoso de Oliveira e Darcy Ribeiro, no ISEB que descobriu sua vocação para a sociologia. Na época, figuravam de seu círculo de relações Maurício Vinhas de Queiroz, Luciano Martins, Evaristo de Moraes Filho, Luiz Aguiar da Costa Pinto, Roberto Cardoso de Oliveira e Darcy Ribeiro. Stella relembra com carinho, que conheceu, também, Wanderley Guilherme dos Santos, Carlos Estevam Martins e Alberto Coelho de Souza, na FNFI, quando eles estudavam filosofia e lideravam o movimento estudantil na cidade.

A inserção de Stella na Universidade do Brasil, como aluna, pesquisadora do ICS e, posteriormente, transferida como professora e pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, contribuiu para que viesse a desempenhar um papel chave na história do curso carioca. Ao lado de outros poucos colegas, destaca-se o empenho notável de Stella em manter aberto o curso de Ciências Sociais da UFRJ depois de 1964, quando se instaurou a ditadura militar no país. Durante o governo autoritário, sem biblioteca e com as salas vigiadas por agentes do Departamento de Ordem Política e Social/DOPS, foi Stella quem, generosamente, passou o legado do curso para os jovens professores, impedidos que estavam de conhecer ou manter vínculos com seus antecessores, devido à repressão política e às cassações. Não fora o seu entusiasmo com a vida acadêmica e apoio aos jovens, ao lado de sua determinação em revelar às novas gerações o seu passado institucional, pouco se saberia da história das ciências sociais, não somente na UFRJ, mas na cidade do Rio de Janeiro.

A reviravolta política e institucional que marcou a trajetória profissional de Stella se faz sentir nas diferentes fases do seu percurso na pesquisa. Este percurso se inicia com um estudo sobre os Maxacalí, do qual, publicou o artigo “A situação dos Maxacali” (1967) [3]. A partir de dados coletados em 1963, no nordeste de Minas Gerais, ela mostra como os Maxacalí tiveram suas terras usurpadas e resistiam às influências do mundo de fora, defendendo a língua indígena e se opondo aos casamentos interétnicos. Porém, o envolvimento de Stella na pesquisa etnológica, que tinha na figura de Roberto Cardoso de Oliveira o seu mentor, passou por uma profunda mudança, como ela própria relata, com o desafio posto por Mauricio Vinhas de Queiroz ao formular o projeto dos grupos econômicos multibilionários no Instituto de Ciências Sociais. A proposta contrariava a tese corrente de que havia um número pequeno daqueles grupos no país, e resultou em uma intervenção de peso nos debates sobre o papel da burguesia nacional no desenvolvimento do país. Stella participou do subprojeto intitulado Grupos Multibilionários Nacionais e Estrangeiros, juntamente com Maurício Vinhas de Queiroz. A experiência como pesquisadora nesse projeto motivou a jovem a investigar os meandros do sistema burocrático brasileiro, na tentativa de compreender as relações entre a burocracia do Estado e o investimento no empresariado nacional.

O projeto teve início com um levantamento da burocracia estatal desde a fundação do DASP em 1942, até 1968. As questões diziam respeito à existência e qualidade dos serviços e das políticas implementadas em favor do desenvolvimento brasileiro. Participaram desta pesquisa, ainda como graduandos e bolsistas da UFRJ, Gilberto Velho, Yvonne Costa Ribeiro e Luitgarde Cavalcanti que, posteriormente, desenvolveram suas carreiras no ensino superior. A pesquisa iniciada no ICS foi absorvida em 1967 pelo IFCS quando Stella foi transferida daquele instituto para a universidade.  Segundo relata, em seu Curriculum Vitae (Lattes), ao término da organização de um arquivo “ com o material colhido e quando se entrava em fase analítica, o IFCS passou por período de instabilidade, em que os órgãos de segurança de então, revistavam os arquivos das pesquisas. No caso da pesquisa em tela havia levantamento dos ministérios militares, levantando suspeitas sobre o projeto, o que nos levou a considerá-lo oficialmente extinto. Os arquivos foram doados ao CPDOC da FGV, mediante oficio de recebimento desta instituição”.

Em 1968, Stella retomou a pesquisa sobre a relação entre a burocracia estatal e o desenvolvimento do país, ao vincular-se ao Projeto Estudo Comparativo do Desenvolvimento Regional, coordenado pelos Professores David Maybury-Lewis e Roberto Cardoso de Oliveira, e desenvolvido  na antiga  Divisão de Antropologia do Museu Nacional, que se incorporou ao Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ em 1969. Com projeto sobre o tema da burocracia, ela inscreveu-se no doutorado na USP sob a orientação de Fernando Henrique Cardoso. Mais uma vez, devido à repressão política, teve o doutorado interrompido, vindo a apresentar sua pesquisa sobre burocracia e desenvolvimento em concurso de livre docência no Departamento de Sociologia da UFF, trabalho que foi equiparado ao título de doutorado de acordo com a legislação vigente na época. Fizeram parte de sua banca, Luís de Castro Faria, Roberto Cardoso de Oliveira, Pedro Demo e Arthur Rios.

Perseguindo uma trajetória singular, Stella atuou no campo da sociologia, e, quando aposentada como professora titular na UFRJ, enveredou pela área da Sociologia do Direito, como docente em programa de pós graduação em Direito da Universidade Gama Filho e, em seguida, da Universidade Veiga de Almeida, onde exerceu suas atividades de pesquisa e formação de pesquisadores como professora titular até seu falecimento. Nessa fase, Stella enfrentou o desafio de incentivar os estudantes de Direito a investigar o tema da administração de conflitos em modelos de Estado Democrático de Direito, de uma perspectiva empírica, combatendo assim as abordagens tradicionais e dogmáticas utilizadas no campo do Direito. Stella se envolveu e participou ativamente do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, InEAC/Instituto de Estudos comparados em Administração Institucional de Conflitos, sob a coordenação de Roberto Kant de Lima.

Stella viveu cercada de alunos e colegas queridos. Deu aulas em universidades estrangeiras e participou de inúmeros seminários e congressos, vivendo intensamente a vida acadêmica. Vale lembrar que em meio às suas pesquisas e publicações, chama a atenção o seu interesse em registrar a memória de seus mestres e contemporâneos, como demonstram seus textos sobre Luiz Aguiar da Costa Pinto, Berta Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira e Guerreiro Ramos, além de sua atuação frente à Fundação Darcy Ribeiro.  Em 1989, organizou no IFCS um evento inesquecível comemorativo dos 50 anos do curso de ciências sociais, registrado em documentário (1989)[4], no qual homenageou os fundadores do curso e fez um balanço de sua história.

Sugestões de obras da autora:

AMORIM, Maria Stella de. Juizados Especiais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, v 17, 2006, p. 107-131.

AMORIM, Maria Stella deLIMA, Roberto Kant de (Org.); BURGOS, Marcelo Baumann (Org.) . Juizados Especiais Criminais, sistema judicial e sociedade no Brasil. 1. ed. Niterói: Editora Intertexto, 2003, 229 p

AMORIM, Maria Stella de. Roberto Cardoso de Oliveira, um artífice da Antropologia.  Brasília: Paralelo 15/CAPES, 2001, 132p.

AMORIM, Maria Stella de; RUBINGER, Marcos Magalhães; MARCATO, Sônia de Almeida. Índios Maxakali: resistência ou morte. Belo Horizonte: Interlivros de Minas Gerais Ltda., 1980, 199p.
AMORIM, Maria Stella de
. Costa Pinto e a missão sociológica. In: Marcos Chor Maio; Glaucia Villas Bôas. (Org.). Ideais de Modernidade e Sociologia no Brasil: ensaios sobre Luiz de Aguiar Costa Pinto.  Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1999,

[1]  Para informações sobre o instituto, ver de Glaucia Villas Bôas, “80 anos de Ciências Sociais na UFRJ. Relembrando o pioneirismo dos projetos Grupos Econômicos (1962) e Trabalhadores Cariocas (1987)”, Sociologia & Antropologia V 09.0I, jan.fev.2019, 297-312.

[2] Entrevista concedida por Stella Amorim a Glaucia Villas Bôas, Yvonne Maggie e Antônio Brasil Jr.  em 28 de fevereiro de 2020. Acervo Glaucia Villas Bôas.

[3] Amorim, Maria Stella de F, “A situação dos Maxacalí”,  Revista do Instituto de Ciências Sociais (vol. 4, no 1, Rio de Janeiro: UFRJ, 1967, p. 3- 25); publicado também em Índios Maxakalí: resistência ou morte, de Marcos Magalhães Rubinger, Maria Stella Amorim e Sônia de Almeida Marcato, Belo Horizonte, Interlivros, 1980.

[4]

VILLAS BÔAS, Glaucia K.; LINHART, A. M. G. . Continuidade e ruptura: os 50 anos do curso de Ciências Sociais na UFRJ. 1998. Vídeo. Arquivo Glaucia Villas Boas CPDOC/FGV