Por Tálisson Melo de Souza (PPGSA/UFRJ)
Traçando uma trajetória de cerca de quatro décadas como pesquisadora dedicada à sociologia da cultura, Maria Lucia Bueno (São Paulo, 1950) desenvolveu um conjunto substancial de contribuições para a construção da sociologia da arte no Brasil. Ao longo desse período vem tecendo uma ampla e diversificada rede de relações com pesquisadores/as consagradas/os e em formação, com uma produção contínua de livros que escreveu, organizou e concatenou para traduções, além de artigos e dossiês em revistas e organização de eventos nacionais e internacionais. Seus trabalhos de conclusão de mestrado (PUC-SP, 1984-91) e doutorado (UNICAMP, 1991-5), ambos em programas de Ciências Sociais, foram dedicados à pesquisa sociológica sobre o campo das artes visuais.
Soma-se a isso tantos outros resultados de pesquisas de estudantes que orientou, compondo uma bibliografia de forte cunho interdisciplinar que vem florescendo de seu trânsito institucional como socióloga atuante em departamentos de ciências sociais, história, artes e design. Destacam-se: sua atuação entusiasmada e criteriosa para a formação do Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens, no Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora do qual também foi a primeira coordenadora em sua abertura oficial em 2013. Desde 2010, leciona disciplinas relacionadas à história da arte brasileira, da moda e do design, linguagens artísticas contemporâneas, teorias da arte e metodologia de pesquisa. É também ser docente-orientadora no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da mesma instituição. Atuou ainda como professora e pesquisadora no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Bolsista FAPESP) e na Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (2001-2010). Organizou o Programa de Pós-graduação em Moda, Cultura e Arte em 2005 no Centro Universitário Senac, do qual foi coordenadora até 2008.
Sempre mantendo a perspectiva sociológica como eixo dessa produção, sua atuação, conjugando ensino e pesquisa, volta-se a um espectro amplo de objetos: desde a cultura audiovisual e televisiva, passando pelas condições de trabalho de artistas e demais agentes do campo artístico; suas instituições, das museais às de mercado, às dinâmicas de difusão, produção, mediação e consumo culturais, com ênfase nos mundos da moda, do design e da gastronomia. Dois conceitos-chave são recorrentes no corpo de sua produção e influência: “estilo de vida” e “globalização”.
À guisa de trilhos de coerência para os vagões de uma “ilusão biográfica”, vale mencionar que, antes de sua inserção no campo das ciências sociais desde a graduação (também na PUC-SP, 1980-3), Maria Lucia chegou a desempenhar importante papel como agente mediadora do campo artístico em momento efervescente do mercado de arte moderna e contemporânea na cidade de São Paulo, gerindo e organizando exposições da Galeria Projecta (1976-82) e da Galeria Traço (1983-4). Essa atuação tanto animou sua iniciativa de compreender sociologicamente o universo artístico, quanto lhe propiciou uma inserção a esse universo que informa sobremaneira as interpretações e refinamentos teórico-metodológicos que foi compondo ao longo de sua trajetória enquanto pesquisadora.
Quanto à noção de “estilos de vida”, é através dela que a perspectiva elaborada por Maria Lucia identifica o potencial de se estudar a relações de afetação mútua entre estética, cultura, consumo e sociedade, conformando quadros de análise profícuos ao considerar de maneira sistemática as implicações entre objetos aparentemente tão distintos como as artes visuais, a moda e o design e a gastronomia, os museus, a mídia, o mercado, os ateliês de artistas e estilistas, as coleções, as casas de leilões e guias de restaurantes.
A noção de “globalização” é central no modo como Bueno vem explorando as dinâmicas sociais do campo artístico e seus estudos constituem uma observação cuidadosa e cosmopolita que evidencia a complexidade dos fluxos de interações que vão (re)configurando os mundos da arte de modo transfronteiriço, articulando centros e periferias, até mesmo viabilizando questionamentos acerca de uma visão binária ou monolítica dos processos de globalização cultural . Isto se observa sobretudo no seu primeiro livro monográfico, um desdobramento da tese de doutorado, Artes Plásticas no século XX: Modernidade e globalização (pela Editora da UNICAMP, 1999, reeditado em 2001). Seu olhar sobre a globalização das artes plásticas não perde de vista as implicações do cenário local em que esteve mais diretamente inserida, o da capital paulista, ou nacional (brasileiro), sempre articulado a vetores de escalas mais amplas, trânsitos internacionais e globais.
Quanto a esse caminho investigativo, é notável a influência de sua participação no Núcleo de Estudos da Globalização, coordenado por Octavio Ianni e Renato Ortiz (vinculado ao Instituto de Estudos Avançados da USP, 1991-95), bem como nos projetos de pesquisas sobre i.) história social da arte no Brasil, coordenado por Sergio Miceli, no Instituto de Estudos Econômicos Sociais e Políticos de São Paulo (1991-4); e ii.) sobre história e produção das telenovelas no Brasil (1986-7), também coordenado por Ortiz – seu orientador do mestrado e doutorado à época. Também parece crucial para a elaboração de seu trabalho o contato mantido com instituições acadêmicas francesas, onde desenvolveu estágios de pesquisa em diversos momentos desde seu doutoramento em 1993, até 2020 – com mais frequência na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Em suas experiências de pós-doutorado inclui-se ainda uma passagem pela New School for Social Research, de Nova York (2016). A mesma articulação de escalas de um olhar atento ao nacional e ao internacional se projeta em seus estudos sobre revistas de moda e da gastronomia – constantemente instigada a pensar sobre as relações local-global, desterritorializações e reterritorializações das práticas culturais de produção, consumo e mediação.
Esse movimento através de fronteiras também se concretizou na forma de edições e traduções de livros referência para uma bibliografia de sociologia da cultura (da arte e da moda mais especificamente) em língua portuguesa. Inserem-se nesse âmbito das contribuições de Maria Lucia Bueno: textos traduzidos da socióloga estadunidense Diana Crane, Ensaios em moda, arte e globalização cultural (Editora Senac, 2011); co-organização dos livros Corpo, território da cultura (com a socióloga Ana Lúcia de Castro, pela Annablume, 2005), e Cultura e consumo: estilos de vida na contemporaneidade (com o sociólogo Luiz Octávio de Lima Camargo, pela editora Senac, 2008).
Organizou o livro Sociologia das Artes Visuais no Brasil (editora do Senac, 2012), no qual apresenta um capítulo resumindo e atualizando dados de sua pesquisa sobre a fase de emergência do mercado de arte no Brasil, aprofundada desde sua dissertação de mestrado.
Maria Lucia também organizou dossiês em revistas do Brasil e do exterior com colegas da sociologia da cultura e da arte, colocando em convergência diversas perspectivas. Sobressaem aqueles voltados aos estudos sobre moda na revista Iara – um com Diana Crane (“Moda e Teoria Social”, 2008), com a antropóloga Elisabeth Murilho da Silva (“Jovens pesquisadores: Arte, moda e design no Brasil”, 2009) –, eum dossiê enfocando estudos sobre “Alimentation et gastronomie”, com a historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna, na revista francesa Brésil(s) – Sciences Humaines et Sociales (2020). Além disso, compõe o corpo editorial da revista NAVA do PPG-ACL/UFJF, organizando alguns de seus dossiês entre 2016 e 2020. Conta ainda com publicações regulares de difusão de perspectivas teóricas e metodológicas sobre moda e sociedade para a revista dObra[s] da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Moda (Abepem).
Entre inúmeros artigos de sua autoria, dois se propõem ao balanço de contribuições para estudos em sociologia da arte, evidenciando seu contínuo exercício de sistematização e atualização sobre a produção nesse campo específico da sociologia: “Do moderno ao contemporâneo: uma perspectiva sociológica da modernidade nas artes plásticas”, publicado na Revista de Ciências Sociais UFC (2010); e “Sociologia da Arte: notas sobre a construção de uma disciplina”, publicado na Revista Brasileira de Sociologia (2018), em coautoria com as sociólogas Lígia Dabul e Sabrina Sant’Anna.
Sugestões de obras da autora:
BUENO, Maria Lucia. 2001. Artes Plásticas no século XX: Modernidade e globalização. 2ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP/Imprensa Oficial/FAPESP.
BUENO, Maria Lucia. 2002. “As transformações da condição de artista plástico na modernidade. Uma perspectiva de análise a partir do espaço do ateliê do artista. Revista Projeto História, p. 223-238.
BUENO, Maria Lucia. 2005. “O mercado de galerias e o comércio de arte moderna. São Paulo e Rio de Janeiro nos anos 1950-1960″. Revista Sociedade e Estado, v. 20, no.2, p.377- 402.
BUENO, Maria Lucia, CAMARGO, Luiz Octavio L.(org.). 2008. Cultura e consumo. Estilos de vida na contemporaneidade. São Paulo: Editora do Senac.
BUENO, Maria Lucia (org.). 2012. Sociologia das Artes Visuais no Brasil. São Paulo: Editora do Senac.
BUENO, Maria Lucia, 2013. “Gastronomia e Sociedade de Consumo. Tradições culturais brasileiras e estilos de vida na globalização cultural”. In REINHEIMER, P.; SANT’ANNA, S. (orgs.). Reflexões sobre cultura material. Manifestações artísticas e ciências sociais. Rio de Janeiro: Folha Sêca.
BUENO, Maria Lucia. 2014. “Une modernité brésilienne : Art moderne et marche de l’art à Sao Paulo et Rio de Janeiro au milieu du XXe siècle”. Sociologie de L’art. Revue Internationale, v.22, p.109 – 124.
BUENO, Maria Lucia. Arte e cultura na modernidade-mundo.Sociologia da cultura e da arte(Ensaios) Prefácio de Paula Guerra. Juiz de Fora : Editora da UFJF, 2021.