Por Telma Menicucci (UFMG)
Mercês Somarriba, como ficou conhecida, é mineira, nascida em Jequeri, na zona da Mata mineira, em 24 de setembro de 1943. Filha de fazendeiro e de mãe professora, que assumiu uma escola rural de forma voluntária para alfabetizar os filhos dos trabalhadores rurais da região, além de ter também alfabetizado seus 12 filhos. Nessa escola, já despontava a vocação de professora de Mercês, desenvolvida brilhantemente mais tarde, uma vez que, desde os oito anos, ajudava a mãe nas aulas da escola rural. A grande sensibilidade social dos pais já influenciava a menina e deixaria marcas na sua trajetória, marcada pela união indissociável entre o conhecimento da academia e a preocupação político-social.
Seu ginasial, como então era chamado o segundo ciclo do ensino fundamental, foi cursado num internato em Ponte Nova. Dessa experiência ficou a lembrança negativa das freiras anticomunistas e a consciência da desigualdade racial, pois observava que apenas uma interna era negra e que sofria discriminação. E não por acaso, era a grande amiga da adolescente Mercês. Também em Ponte Nova concluiu o curso normal – o destino esperado para as moças da época -, depois de uma pequena passagem por Ouro Preto. Embora curta, essa experiência foi fundamental para seu processo de politização e para a escolha da Sociologia, que venceu seu embate com a possível escolha pelo curso de Letras, uma vez que a literatura era uma das paixões da jovem que devorava livros, particularmente todos os de Jorge Amado.
O distanciamento gradativo do mundo rural completou-se com a mudança para Belo Horizonte a partir do ingresso, em 1964, no curso de Sociologia e Política da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Nessa escola, que se destacou pela qualidade e incentivos à formação de estudantes para o mundo acadêmico, formaram-se vários professores e pesquisadores importantes para as ciências sociais brasileiras, técnicos de instituições governamentais, ministros de Estado, etc. Mercês fez parte de uma “elite” do curso, formada pelos alunos de destaque que tinham bolsas de dedicação integral sob a condição de terem alto desempenho. Lá fez sua primeira pesquisa sobre o tema movimento estudantil, muito forte nos anos de chumbo da história brasileira, a partir de sua atuação no diretório acadêmico. Mas à noite, atuava como docente num curso de alfabetização de adultos usando o Método Paulo Freire, idealizado pela então “primeira dama” do governo de Minas. A carreira docente continua após a graduação em 1967, então ministrando a disciplina sociologia na PUC de João Monlevade, cidade a mais de 100 km de Belo Horizonte, onde durante o dia atuava como socióloga no governo estadual.
Dois anos depois de graduada (1969), se torna professora colaboradora da Universidade de Brasília. Suas aulas de sociologia incomodaram o então vice-reitor da UNB, um Capitão de Mar e Guerra, no período em que a disciplina era objeto de vigilância e censura. No recém criado mestrado em sociologia da UNB, sua dissertação foi a primeira lá concluída, em 1973, e dois anos depois foi fazer o doutorado, também em sociologia, na Universidade de SUSSEX na Inglaterra, doutorando-se em 1978. A perseguição política do vice-reitor, que posteriormente se tornou reitor, se expressou na suspensão discriminatória de seu salário durante a realização do doutorado e na recusa em enquadrá-la no cargo de docente adequado após a titulação. Isso levou ao seu desligamento da UNB e seu ingresso na Fundação João Pinheiro (FJP) como pesquisadora, retornando a Belo Horizonte.
Na FJP se explicitam de forma clara as suas duas áreas de atuação que marcaram sua trajetória acadêmica: movimentos populares e saúde. Montou uma área de pesquisa em saúde na perspectiva da sociologia política, algo novo à época e fez o seu primeiro trabalho de fôlego, em coautoria com Marisa Afonso e Jessica Valadares e que veio a ser uma referência: Lutas Urbanas em Belo Horizonte, publicado pela editora Vozes, em 1984. No final da ditadura, o associativismo urbano tinha explodido e o trabalho foi pioneiro ao estudar essa temática no próprio momento, realizando uma pesquisa empírica relevante e tendo logrado construir uma tipologia do associativismo local. Antes do grande desenvolvimento dos estudos e da literatura sobre participação e sobre movimentos sociais, que acompanha as transformações da democracia e do ativismo após a retomada da democracia no país, o Lutas Urbanas já trazia a temática da participação e da democratização do poder local.
Foi na UFMG que Mercês teve sua principal atuação acadêmica em todas as suas expressões no período de 1981 a 1995, destacando-se não apenas na docência, pesquisa e extensão, mas também desempenhando um trabalho de construção institucional inclusive, sendo uma das responsáveis pela criação do programa de doutorado em Ciências Humanas – Sociologia e Política -, fruto de uma parceria entre o Departamento de Sociologia e Antropologia e o Departamento de Ciência Política da UFMG.
Os estudos sobre a saúde como tema sociológico, foram introduzidos no programa de pós-graduação por Mercês, que deu uma contribuição marcante e inovadora para a formação de profissionais de diversas áreas profissionais, muitos deles vinculados ao movimento sanitário, responsável pela introdução do SUS na constituição brasileira. Mercês foi sempre uma orientadora séria e afetuosa e foi responsável por favorecer a carreira acadêmica de muitos estudantes de pós-graduação em sociologia. Além de ter se tornado uma referência acadêmica nessa área, formou vários discípulos.
Neste período de muita atividade, além das atividades acadêmicas, também teve papel institucional de destaque com sua contribuição para as associações nacionais da área: fez parte da diretoria da Anpocs (biênio 1995-1996), integrou o Conselho Fiscal da Sociedade Brasileira de Sociologia (1995) e foi também diretora da SBS (1988-1989).
Após sua aposentadoria na UFMG, retomou à Fundação João Pinheiro como consultora e, entre outras atividades, participou da criação, implantação e consolidação do programa de pós-graduação em administração pública desta instituição.
Ao lado de sua atuação acadêmica e institucional no campo da sociologia da saúde e da participação popular, Mercês sempre exerceu de forma discreta, mas nem por isso irrelevante, a militância político-partidária. Participou ativamente do processo de formação política do Partido dos Trabalhadores, buscando socializar no partido aquilo que fazia na academia. De fato, a sua militância política é indissociada de sua vida acadêmica, podendo-se dizer que o conhecimento produzido e acumulado enquanto acadêmica, era colocado a serviço da política. Nesse sentido, sempre fez política na sua forma nobre e alicerçada no saber sociológico. E sempre contribuindo para a formação de pessoas em diferentes espaços de atuação.
Mercês é antes de tudo uma mestra.
Mercês tem dois filhos, Valentina e Tomás, e três netos.
Após sua aposentadoria definitiva, se considera hoje uma sitiante. Num sítio, cuida de bichos, hortas e jardins.
Sugestões de obras da autora:
SOMARRIBA, M. M. G. On The Limitations Of Community Health Programmes. In: Susan B. Rifkin. (Org.). Readings In Health, Development And Community Participation. Genebra-Suiça: World Councilof Churches, 1980, p. 61-67.
SOMARRIBA, M. M. G.; AFONSO, M. R.; VALADARES, M. G. Lutas Urbanas em Belo Horizonte. 1ª. ed. Petrópolis-Belo Horizonte: VOZES-Fundação João Pinheiro, 1984. 140p .
SOMARRIBA, M. M. G. As Ciências Sociais em Saúde e o Ensino: Notas para Debate. In: Ana Maria Canesqui. (Org.). Dilemas e Desafios das Ciências Sociais na Saúde Coletiva. 1ªed.São Paulo – Rio de Janeiro: HUCITEC – Abrasco, 1995, p. 145-149.
SOMARRIBA, M. M. G.; DULCI, O. S. A democratização do poder local e seus dilemas: a dinâmica atual da participação popular em Belo Horizonte. In: Eli Diniz; Sérgio de Azevedo. (Org.). Reforma do Estado e Democracia no Brasil. 1ªed.Brasília: UnB – ENAP, 1997, p. 391-425.
SOMARRIBA, Mercês; SOMARRIBA, Valentina. “Um século de avanços e retrocessos da cidadania no Brasil”, in: Claudemir Francisco Alves (Org.). Igreja e sociedade: análises em perspectiva. Contagem/MG: editora FUMARC, 2015.