Maria da Glória Bonelli

Por Fabiana Luci de Oliveira (UFSCar)

A obra de Maria da Gloria Bonelli é basilar na constituição e expansão da área da Sociologia das Profissões no Brasil, sendo referência no campo de estudo das profissões jurídicas e das suas relações com a sociedade, o mercado, o Estado e a política.

A socióloga nasceu no Rio de Janeiro, em 16 de abril de 1957, em uma família de classe média. Seu pai era médico, e sua mãe, formada em letras.

Cursou a graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre 1976 e 1979, no contexto de distensão política e retomada do movimento estudantil, no qual militou ativamente pela redemocratização do país. Durante a graduação, trabalhou como pesquisadora junto ao Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), na realização de diagnósticos sociais em municípios das regiões nordeste, sul e centro-oeste do país, experiência à qual atribuiu importância para ter conhecido a realidade brasileira “fora dos livros”.

Ingressou no mestrado em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 1984, para estudar os militares e a redemocratização, sob orientação de Bolívar Lamounier, mas sua participação em um projeto sobre a classe média paulistana no IDESP (Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo) levou-a para a área da Sociologia. Sua dissertação, “A classe média do ‘milagre’ à recessão: mobilidade social, expectativas e identidade coletiva”, sob orientação de Sergio Miceli, foi defendida em 1987, e publicada como livro em 1989 (A Classe Media do Milagre à Recessão. São Paulo: IDESP, 1989).

Em 1988, como pesquisadora do IDESP, integrou a equipe do projeto “História das Ciências Sociais no Brasil”, iniciando, nesse mesmo ano, o doutorado na UNICAMP, sob a orientação de Vilmar Faria, no qual estudou a identidade profissional e o mercado de trabalho dos cientistas sociais. Durante o doutorado, fez estágio sanduíche na Northwestern University, sob a co-orientação de Howard Becker, o que contribuiu para o aprofundamento da sua formação sociológica na abordagem do interacionismo simbólico, influência marcante ao longo de sua trajetória.

No retorno ao Brasil, em 1992, foi aprovada no concurso público para docente no recém-criado Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal de São Carlos. No ano seguinte, defendeu a tese “Identidade profissional e mercado de trabalho dos cientistas sociais: as Ciências Sociais no sistema das profissões”, na qual analisou as estratificações e competições profissionais entre os formados em ciências sociais para ingresso no mercado de trabalho e domínio de conhecimentos específicos, dialogando com modelos analíticos propostos por Andrew Abbott e Erving Goffman.

Após a defesa do doutorado, Gloria Bonelli passou a estudar as profissões jurídicas, atuando no survey “A crise do judiciário vista pelos juízes”, coordenado pela cientista política Maria Tereza Aina Sadek, no IDESP, entre 1993 e 1994, voltado ao diagnóstico do funcionamento do sistema de justiça no país, para subsidiar propostas de reforma judicial. Nesse projeto, a socióloga trabalhou a morfologia social e de carreira de juízes e desembargadores, interessada nas relações entre profissões e Estado.

Em 1994, fundou o grupo de pesquisa “Sociologia das Profissões”, dedicado ao estudo dos processos de profissionalização de ocupações novas, incluindo jornalismo, propaganda e marketing, youtubers, entre outras, e profissões tradicionais, como as carreiras do direito e a medicina.

As pesquisas desenvolvidas nesse período marcam uma mudança no enfoque da socióloga, redirecionando a discussão das profissões no mercado e do profissionalismo como uma estratégia coletiva da classe média para ascensão social, para as relações das profissões com a política e o Estado, estudando, para isso, os processos de profissionalização das carreiras jurídicas – advogados, magistrados, promotores públicos e delegados de polícia civil. Bonelli mostrou como o argumento da expertise era a base para fundamentar a indispensabilidade da assessoria desses profissionais ao Estado e como a construção da autoridade moral distinguia o profissionalismo jurídico da política convencional. A realização de um pós-doutorado na American Bar Foundation, em Chicago, em 1996, foi relevante para essa mudança, a partir do contato com pesquisadores como Terence Halliday, Lucien Karpik e Bryant Garth. Os resultados dessa agenda de pesquisa foram publicados no livro “Profissionalismo e política no mundo do Direito” (EdUFSCar/ Sumaré/ Fapesp, 2002).

Em 2003, propôs a criação do Grupo de Trabalho Ocupações e Profissões na Sociedade Brasileira de Sociologia, em parceria com Luiz Antônio de Castro Santos e Maria Ligia de Oliveira Barbosa, que se consolidou como o principal espaço de articulação e discussão da sociologia de grupos profissionais no Brasil.

Em 2006, realizou pós-doutorado no Instituto Internacional de Sociologia Jurídica de Oñati, passando a pesquisar mudanças e disputas no conteúdo do profissionalismo, com ênfase nos impactos da reforma do Judiciário na identificação profissional dos magistrados, e as relações de importação e exportação de expertise jurídica e de formatos institucionais do sistema de justiça, discutindo a resistência local ao modelo global de reforma judiciária. Nesse mesmo ano, tornou-se Professora Titular da Universidade Federal de São Carlos.

A partir de 2008, incorporou a perspectiva de gênero e da diferença à sua agenda de pesquisa, investigando o impacto das diferenças de gênero e raciais na profissionalização nas carreiras jurídicas, incluindo magistratura, advocacia privada, defensoria pública e ministério público. Estudou, também, a fragmentação dos modelos de docência no direito e a trajetória profissional e o perfil do corpo docente nas faculdades de direito no Brasil, além de atividades paralegais, a partir do grupo profissional dos despachantes documentalistas, sob perspectiva do estigma de instituição bastarda e de trabalho sujo.

Maria da Gloria Bonelli aposentou-se no Departamento de Sociologia em 2015, seguindo como docente sênior do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, dando continuidade às pesquisas no grupo Sociologia das Profissões, investigando dinâmicas contemporâneas no profissionalismo, como a internacionalização da expertise, a participação feminina nas carreiras e a articulação entre profissionalismo, gênero e diferença. Em 2016, realizou pós-doutorado na University of Leeds Law School, no Reino Unido, estreitando a colaboração com Hilary Sommerland, acerca dos processos globais de generificação e racialização das profissões jurídicas.

O conjunto da sua obra reúne contribuições robustas e inovadoras à sociologia brasileira no estudo das profissões, consolidando a interpretação de que a construção social das profissões e das identidades profissionais se dá tanto pelo estabelecimento de fronteiras na delimitação de práticas profissionais, quanto pelo “borramento de fronteiras” entre diferentes formas estabelecidas de profissão, e entre o profissional e o político, no caso das profissões jurídicas.

Sugestões de obras da autora:

BONELLI, Maria da Gloria. O Mercado de Trabalho dos Cientistas Sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 09, n.25, p. 110-126, 1994. Link: <http://www.anpocs.com/images/stories/RBCS/25/rbcs25_11.pdf>

BONELLI, Maria da Gloria. Profissionalismo e política no mundo do Direito. 1. ed. São Carlos: EdUFSCar/ Sumaré/ Fapesp, 2002. v. 1. 303p. Link: <https://edufscar.com.br/edufscar/profissionalismo-e-politica-no-mundo-do-direito-503300027?page=9&limit=50>

BONELLI, Maria da Gloria. Profissionalismo e diferença de gênero na magistratura paulista. Civitas. Revista de Ciências Sociais, v. 10, p. 270-292, 2010. Link: <https://doi.org/10.15448/1984-7289.2010.2.6491>

BONELLI, Maria da Gloria. Brazilian judges’ in-between professionalism, gender and difference. International Journal of the Legal Profession, v. 21, p. 1-17, 2015. Link: <https://doi.org/10.1080/09695958.2015.1029488>

BONELLI, Maria da Gloria. Docência do Direito: fragmentação institucional, gênero e interseccionalidade. CADERNOS DE PESQUISA (FUNDAÇÃO CARLOS CHAGAS. (ONLINE), v. 47, p. 94-120, 2017. <https://doi.org/10.1590/198053143659>

BONELLI, Maria da Gloria. Women, Difference and Identities in the Brazilian Legal Professoriate. In: SCHULTZ, Ulrike; SHAW, Gisela; THORNTON, Margaret; AUCHMUTY, Rosemary. (Org.). Gender and Career in Legal Academy. 1ed.Londres: Hart Publishing, 2021, v. 1, p. 95-114. Link: <https://www.bloomsburycollections.com/book/gender-and-careers-in-the-legal-academy/ch4-women-difference-and-identities-in-the-brazilian-legal-professoriate>

Sobre a autora:

FONTAINHA, F. de C., & LEITE, M. C. L. (2019). Profissões, gênero e Sociologia do Direito – Entrevista com Maria da Gloria Bonelli. Plural, 26(2), 271-303. Link: <https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2019.165728>