Por Jorge Leite Jr (UFSCar)
A professora e pesquisadora Maria Celeste Mira é uma das intelectuais responsáveis pelo desenvolvimento e consolidação da área de Sociologia da Cultura no Brasil, em especial no diálogo desta com a área de Comunicação. Professora livre-docente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sua trajetória é marcada por uma formação multidisciplinar e o constante diálogo entre antropologia e sociologia. Com seu inabalável e contagiante bom humor, seus trabalhos são referências incontornáveis nos estudos sobre cultura popular tradicional, cultura popular de massa, consumo, lazer, entretenimento, gosto e práticas culturais no Brasil.
Nascida em 01 de dezembro de 1954 na cidade de São Paulo, quando jovem ingressa na faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (no ano de 1973), em plena ditadura. Logo após se formar e tirar a carteira da OAB, entra no curso de Serviço Social da PUC de São Paulo. Participante das Comunidades Eclesiais de Base, ansiava pelo aprofundamento na teoria social que era debatida em outras salas de aula da mesma universidade. Assim, em 1979, troca de curso e entra em Ciências Sociais, também na PUC- SP.
Em 1983, após prestar concurso, entra novamente na PUC-SP agora como professora do Ciclo Básico, iniciando sua carreira docente na disciplina Antropologia e Realidade Brasileira. Neste período, junto a outros colegas e sob a liderança de José Mário Ortiz Ramos, começa a se reunir para discutir textos sobre a cultura brasileira do período (poderíamos dizer que era um grupo de estudos avant la lettre). Nesses encontros, que marcaram sua trajetória e sua admiração intelectual por José Mário, duas coisas ficaram claras: não era possível refletir sobre a vida nacional sem levar em conta a indústria cultural – o que depois ficou claro com o livro A moderna tradição brasileira de Renato Ortiz – e o quanto esta noção frankfurtiana necessitava ser atualizada e adaptada para se pensar a América Latina e o Brasil.
Quando o ciclo Básico foi extinto, em 1987, o mesmo grupo de docentes criou a disciplina Antropologia e Crítica Cultural, para assim manter a discussão dentro da nova grade de disciplinas do curso de Ciências Sociais da PUC- SP. A bibliografia unia autores como Edgard Morin, Adorno e Horkheimer Pierre Bourdieu, Raymond Williams, Jesús Martin-Barbero, Néstor García Canclini, entre outros, além da constante atualização de autores contemporâneos. Essa disciplina se manteve por muitos anos, dela saindo vários de seus orientandos do PEPG em Ciências Sociais da PUC-SP, no qual ingressou em 1999 e alguns membros do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), por ela criado – certificado em 2008 e ainda atuante. Além disso, lecionou Sociologia Geral e da Comunicação no curso de Jornalismo por mais de dez anos.
Depois de participar da pesquisa pioneira Telenovela: história e produção, coordenada por Renato Ortiz, resolve fazer com ele seu mestrado, lidando com um dos temas mais desqualificados academicamente na época: a cultura popular de massa. De maneira inovadora, Celeste Mira pesquisa o Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) criado pelo apresentador de programas de auditório Silvio Santos. Ao refletir sobre a vida do dono do canal e, principalmente, sobre a grade de programação da emissora, a autora questiona as noções de “popular” e “popularesco” inserindo-as nas dinâmicas de distinção social e mercado cultural, pensando o processo de modernização no Brasil através do gosto popular.
É importante lembrar que certas produções não eram então vistas no campo da Sociologia da Cultura como “dignas” de serem estudadas e que a interpretação dominante na área das Ciências Sociais seguia o paradigma da Escola de Frankfurt. Enquanto esta linha teórica afirmava que a indústria cultural degradava a “alta cultura” e o “gosto legítimo” (Bourdieu), Mira, apoiada sobretudo nos estudos de Martín-Barbero (1987), apresenta uma ideia inovadora: a cultura popular de massa retira a grande maioria de seus temas e formas apropriando-se da cultura popular tradicional, e não da cultura erudita. Seu mestrado é publicado em 1995, com o título Circo Eletrônico (ed. Olho D´água/ Loyola) e tem uma ótima recepção – na área da Comunicação!
Ainda se questionando sobre a noção frankfurtiana de massa, Celeste Mira imagina uma pesquisa sobre as bancas de revista e sua incrível variedade de magazines (na época existiam mais de 1000 títulos disponíveis). Em 1992, ingressa no doutorado em Ciências Sociais da UNICAMP, com o mesmo orientador. Desta vez, o foco é a Editora Abril e a segmentação da cultura expressa nas revistas. Novamente, a indústria cultural (e o mercado) não são a explicação, mas o que tem que ser explicado. Estudando a variação das publicações ao longo do tempo, pôde perceber a mudança dos costumes através da segmentação do mercado de revistas e a emergência de movimentos socioculturais por meio da relação entre consumo e construção de identidades. Defendido em 1997, o doutorado é publicado em 2001 com o título O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX (ed. Olho D´Água / FAPESP), sendo bastante lido nas Ciências Sociais.
Durante o período do doutorado, conhece o sociólogo Edson Silva de Farias, convidando-o para participar da Intercom. Esse encontro rendeu uma parceria profícua, que os levou a coordenar vários GTs na ANPOCS e que se mantem até hoje, sendo que, desde 2004, coordenam juntos o GT, atual CP (Comitê de Pesquisa) de Sociologia da Cultura nos congressos da SBS.
Em 2002, faz um pós-doutorado na França sobre as origens das festas populares – em sintonia com as discussões internacionais sobre o tema – e, em 2003, começa sua pesquisa de livre-docência investigando o grande revival das tradições populares. Como a cultura popular tradicional, o “folclore”, dado até alguns anos antes como extinto, se tornou a “bola da vez” das políticas culturais e do mercado no início do século XXI, repercutindo em várias áreas como moda, gastronomia, música – inclusive internacionalmente. Através do trabalho dos mediadores culturais, Celeste Mira analisa como a “tradição” cultural popular é recriada por movimentos sociais em sintonia com uma nova rodada de definições políticas das identidades (e identificações) nacionais e regionais na arena mundializada, transformando a “beleza do morto” (nos termos de Michel de Certeau) em “Cultura Viva” (programa criado por Gilberto Gil quando foi ministro da cultura nos dois Governos do presidente Lula). A livre-docência é defendida em 2014 e publicada como livro em 2016, com o título Entre a beleza do morto e a cultura viva: mediadores da cultura popular na São Paulo da virada do milênio (ed: Intermeios/ FAPESP).
Em suas pesquisas, Maria Celeste Mira encontra uma forma de discutir a sociedade brasileira através das práticas culturais das classes populares. A televisão, as revistas e as festas são meios para essa reflexão. Grande conhecedora de Bourdieu, suas sofisticadas reflexões denunciam o “racismo de classe” brasileiro, apresentam como a cultura popular (tradicional ou de massa) dribla e subverte suas carências, ao mesmo tempo em que ajudaram a consolidar o campo da Sociologia da Cultura no Brasil. Se hoje já é ponto pacífico que lutas sociais são também lutas culturais e Ciências Sociais e Comunicação são áreas que dialogam tão bem, é muito graças ao trabalho desta competente – e divertida – pesquisadora.
Sugestões de obras da autora:
MIRA, Maria Celeste. Circo eletrônico. Silvio Santos e o SBT. São Paulo, Olho D´água / Loyola, 1995.
MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas. A segmentação da cultura no século XX. São Paulo. Olho D´água / FAPESP, 2001
MIRA, Maria Celeste. Entre a beleza do morto e a cultura viva. Mediadores da cultura popular na São Paulo da virada no milênio. São Paulo, Intermeios/ FAPESP, 2016