Por Andréa Borges Leão (UFC) e Maria Eduarda da Mota Rocha (UFPE)
Se “mais velho era o relógio que a fazenda”, o tempo corria na casa de Tombos do Rio Carangola como uma linha entretecendo no mesmo pano o presente e o passado. O relógio, trazido da Europa por um vice-rei e largado por lá, nas palavras do poeta José do Nascimento, envelhecia como símbolo de regulação das relações sociais, evocando o tempo longo que passava pelas pessoas e as coisas (Elias, 1998). O velho relógio da casa de fazenda marcava fluxos de experiências singulares. Mitologias, íntimas e coletivas, que encontravam expressão na literatura, nos acordos da política e no trabalho da memória.
Foi na fazenda de Tombos, cidade do interior de Minas Gerais, região de fronteira com o Rio de Janeiro, que nasceu Maria Arminda do Nascimento Arruda, em uma família abastada, cultivada e católica, em 1948. Uma família ligada ao negócio do café. A origem paterna era portuguesa açoriana. A da mãe, uma parte vinha de avós portugueses de Guimarães, outra parte de alemães, afeitos igualmente ao cultivo das letras e dos idiomas estrangeiros. O pai, José do Nascimento, agrônomo de formação e escritor, fez das frequentes viagens com a esposa para a cidade do Rio de Janeiro um elo familiar entre o universo agrário e a cultura urbana carioca. Após a primeira escolarização dos filhos e na contingência das reviravoltas nos negócios e perdas financeiras, a família muda-se para o Rio de Janeiro, a fim de recomeçar embora, anos após, tenha se deslocado para São Paulo.
Maria Arminda chega em São Paulo aos 15 anos, ainda cursando o colegial. São Paulo evocava, na sua memória, entre outras imagens, o lugar onde brotavam as arvorezinhas impressas nas capas dos livros que lia na fazenda. As árvores de São Paulo eram a marca comercial da Editora Melhoramentos, que, além dos livros, também produzia papel. Arminda logo faz amizade com um grupo de jovens judeus politizados, que a levam para a militância no movimento estudantil, à experiência da sociabilidade no teatro, a ida aos cinemas. Do bairro do Bom Retiro, o grupo desbrava a metrópole.
No final dos anos 1960, Maria Arminda ingressa no curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo e, logo após, se casa com o historiador Jobson Arruda. Faz a sua formação de base com os professores que são referências na estruturação da sociologia brasileira, Maria Silvia Carvalho Franco, Maria Alice Foracchi, Gabriel Cohn, José de Souza Martins, Francisco Wefort, Leôncio Martins Rodrigues, Luiz Pereira, entre outros da mesma geração.
Em entrevista que concedeu ao CPDOC/FGV, em 2013, recorda as marcas deixadas pelo curso de Rui Coelho no seu trabalho intelectual em Sociologia da Cultura. A Sociologia da Comunicação, curso ministrado pelo Professor Gabriel Cohn, teve a importância de redimencionar o marxismo para a nova geração de estudantes, impondo a reprodução como problemática de base. O momento, porém, era tenebroso, uns professores caçados pelo regime militar; outros, partindo para o exílio.
No mestrado, Maria Arminda, orientada por Cohn e defendido em 1978, mergulha em profundidade na obra dos frankfurtianos, na de Theodor Adorno principalmente. A abordagem e os conceitos da Teoria Crítica foram utilizados na sua pesquisa em Sociologia da Comunicação, que resultou em trabalho pioneiro sobre a publicidade. O livro A embalagem do sistema é hoje referência nos estudos sobre as mensagens como mediações entre a produção e o consumo. Vale lembrar que nesse momento se consolidava uma indústria da cultura no Brasil, na esteira do chamado “milagre econômico”, apesar de os estudos sobre o moderno sistema de produção simbólica ainda dessem os primeiros passos.
O encontro com a teoria literária de Antonio Candido foi igualmente marcante no percurso autoral de Maria Arminda. Pode-se afirmar que a problemática das congruências entre as formas estéticas e a estutura social no amadurecimento dos sistemas simbólicos atravessa o conjunto da sua obra. A tese de doutorado, defendida na Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor Azis Simão, em 1986, circuscreve o imaginário mineiro na vida política e cultural do Brasil. No livro Mitologias da Mineiridade, publicado em 1990, descortinamos as diversas matrizes de uma cultura política própria que ganha relevo em momentos de transição e se objetiva nos fenômenos conhecidos como “de conciliação”.
A busca por nexos e articulações entre diferentes gêneros discursivos, formas estéticas e estruturas sociais orienta boa parte do trabalho de investigação da socióloga. Nas Mitologias, afirmava que a poesia concreta “cria um quadro de referências transnacional” (Arruda, 1986, p. 20), objeto retomado no livro Metrópole e Cultura: São Paulo no meio do século XX, publicado em 2001, que resultou da tese de livre docência defendida na Universidade de São Paulo.
Trabalho de maturidade, Metrópole e Cultura aciona o vasto repertório sociológico e cultural para a construção de um “objeto prismático” em que convergem diferentes expressões simbólicas (Miceli, 2001). Em todos os planos, quando enfoca o teatro de Jorge Andrade, a sociologia de Florestan Fernandes, as vanguardas concretas ou os projetos de intervenção urbana, a obra é uma síntese das linhas de força presentes na formação de Maria Arminda, pois equilibra uma preocupação com a trajetória dos produtores e as diferentes linguagens. De um lado, vemos uma história social dos intelectuais cuja expertise foi calibrada pela participação no projeto História das Ciências Sociais no Brasil (1989 e 1995). De outro, as marcas profundas da tradição de Candido e sua concepção social da forma literária. Maria Arminda fez o último curso de Teoria Literária que o mestre ofereceu antes de se aposentar. Ficaram próximos, em muito devido ao parentesco entre Candido e Jobson Arruda, seu esposo (entrevista ao CPDOC, 21). Com a aproximação ao sociólogo Sérgio Miceli, no começo dos anos de 1980, mediada pela “amiga-irmã” Gisela Taschner, ingressa na equipe da pesquisa sobre a História das Ciências Sociais no Brasil.
Em 1973, quando Taschner trabalhava como horista na FGV, Maria Arminda dava os primeiros passos na carreira docente, com todas as dificuldades decorrentes de um casamento e maternidade precoces. Depois de uma breve passagem pela PUC de São Paulo, quando se encontrava em uma pequena faculdade de Guarulhos, Taschner a indicou para trabalhar com Miceli, na FGV, em uma investigação sobre lazer. Mais tarde, em 1985, atua como horista na Fundação. Até que finalmente é convidada por Miceli para o projeto História das Ciências Sociais no Brasil, do IDESP, onde atua como pesquisadora entre 1986 e 2000, publicando textos nos dois volumes relativos à pesquisa (1989 e 1995). O segundo deles foi sobre a obra de Florestan Fernandes e seu trabalho de institucionalização da sociologia em São Paulo, um tema caro ao longo de toda a sua carreira, marcada também pela organização de volumes e reedição de livros do autor.
Arriscamos a hipótese de que a reflexão sobre o esforço de construção institucional por Florestan Fernandes tenha contribuído para a sua própria carreira institucional na Universidade de São Paulo, onde ingressou como professora em 1988. A partir dos anos de 1990, foi progressivamente assumindo cargos de gestão acadêmica, como Chefe do Departamento de Sociologia, Diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Pró-Reitora de Extensão e Cultura e, em 2022, Vice-Reitora. Nesse percurso, soube fazer da USP o seu lugar.
Maria Arminda formou gerações de sociólogas e sociólogos. A maior parte exerce a docência em universidades públicas brasileiras.
Na Pró-Reitoria de Extensão e Cultura, Maria Arminda deu vazão às suas disposições íntimas, ao gosto pelas artes plásticas, pela música de orquestra, o cinema, dirigindo a vasta aparelhagem cultural da Universidade. Como Vice- Reitora, é, mais uma vez, desafiada a por em marcha os valores herdados do mundo de origem em contexto tão diverso, agora tensionado pela crise da própria tradição a que pertence, e sobre a qual tem tido a coragem de refletir. Depois de tantos golpes na cultura, na universidade, contra os/as intelectuais e as mulheres, essa mineira paulistana, e um pouco carioca, defende sua posição com firmeza, brilho intelectual e a delicadeza da renda que, nas palavras do poeta José do Nascimento, entretece o frágil tempo com as coisas do passado.
Sugestão de obras da autora:
Arruda, Maria Arminda do Nascimento. A embalagem do Sistema. A Publicidade no Capitalismo Brasileiro. Bauru: EDUSC, 2004.
Arruda, Maria Arminda do Nascimento. Mitologias da Mineiridade. O imaginário mineiro na vida política e cultural do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
Arruda, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura. São Paulo no meio do século XX. Bauru: EDUSC, 2001.
Arruda, Maria Arminda do Nascimento. Garcia, Sylvia. Florestan Fernandes. Mestre da Sociologia Moderna. Editora Paralelo 15, 2003.
Sobre a autora:
Maria Arminda do Nascimento Arruda. Memória das Ciências Sociais no Brasil, FGV-CPDOC