Lúcio Vasconcellos de Verçoza (UFAL)
A socióloga e o transver o mundo
Quando ainda era uma jovem estudante de graduação em Ciências Sociais, Maria Aparecida de Moraes Silva costumava ler livros em cima de uma árvore. A imagem incomum revela muito da socióloga e de sua obra: os pés apontados para as raízes fincadas na terra (no real) e a imaginação tocando além do alto da copa frondosa (na utopia, no real recriado em outros termos). Foi assim na sua iniciação à Sociologia, nos sombrios anos de 1964 a 1968. E é assim ainda hoje. Para ela Sociologia é uma artesania. Um ofício que exige rigor, imaginação e sensibilidade. Algo que, como bem frisou Wrigtht Mills, pressupõe imersão total no processo de trabalho. E é por isso que ela é uma socióloga em tempo integral: faz Sociologia enquanto dorme, acorda e sonha.
A trajetória de Maria Moraes começou em primeiro de junho de 1944. Filha de pequenos sitiantes do interior de São Paulo, nasceu no município de Altinópolis e viveu a primeira infância no mundo rural – seu tempo era marcado pelo ritmo cíclico da natureza, pela textura das bonecas feitas de sabugo de milho e pelo cheiro da lavoura de café e da ordenha de leite. Aos sete anos de idade, ocorreu uma grande inflexão em sua trajetória: foi estudar na cidade. Longe do modo de vida camponês se sentia desenraizada. O choque de universos simbólicos e o ambiente hostil para quem saía do campo fizeram com que ela estabelecesse inicialmente uma relação de estranhamento com a escola. O estranhamento foi sendo desfeito à medida que a pequena Maria Moraes teve contato com professores inspiradores e com o fascinante mundo da leitura. De tanto ler, seu pai logo a presenteou com um dicionário. Ela lia as páginas do dicionário e, a cada nova palavra descoberta, um mundo novo se abria.
Sua paixão pela literatura a fez pensar em cursar Letras. Para a sorte da Sociologia brasileira, de última hora ela optou pelo vestibular de Ciências Sociais. Ingressou no curso de Araraquara em 1964 (hoje UNESP), ano do golpe militar. Sua graduação se deu em meio ao contexto de perseguição aos professores, estudantes e opositores ao regime. Uma parte do quadro de docentes do curso foi exilada ou teve que deixar a universidade para não ser presa. Dentre os que permaneceram lecionando, cabe destacar a professora Heleieth Saffioti, que teve grande influência na formação de Maria Moraes. Anos depois elas se tornariam amigas e colegas de trabalho.
Após concluir o curso, trabalhou como docente no ensino médio. Durante oito anos foi professora da Escola Álvaro Guião, em São Carlos. Nesse tempo, falava sobre o passado para se referir ao presente. A metáfora e a alusão ao passado eram formas perspicazes de desvelar os horrores do real. Discutia com os alunos romances de Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Ainda hoje, quando chega o dia dos professores, recebe cartas de ex-alunos que relembram suas aulas brilhantes e dizem que com elas aprendiam a pensar.
Em 1976 sua trajetória teve uma nova guinada. Viajou à França e cursou mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade de Paris 1, da Sorbonne. Retornou ao Brasil em 1981 e não tardou a ser efetivada como professora da Unesp de Araraquara. Após se aposentar como livre-docente dessa mesma universidade (em 1997), trabalhou como professora e pesquisadora em cursos de pós-graduação de diversas instituições: UFCG, PUC, USP, Unesp (Presidente Prudente e Botucatu) e Universidade de Comahue (Argentina). Desde 2007 é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, onde atua ainda hoje.
Há mais de 40 anos, dedica-se ininterruptamente aos estudos das condições de vida e labor dos trabalhadores e trabalhadoras rurais dos canaviais, cafezais e laranjais. Em sua vasta obra as temáticas de classe, gênero, raça-etnia, migração, memória e resistência são analisadas de modo entrelaçado, como parte da mesma totalidade. Seu pensamento é agudamente dialético e antilinear, buscando sempre as contradições dos processos e os sujeitos ocultados pelas estruturas. O clássico livro Errantes do fim do século, fruto de sua tese de livre docência, é o exemplo mais bem acabado dessa perspectiva.
Outro traço marcante de sua obra é a criatividade teórica e metodológica. Maria Moraes não se conforma apenas com dados quantitativos, entrevistas, questionários, diários de campo, exaustivo levantamento bibliográfico, pesquisa nos cartórios e em outras fontes documentais; na sua Sociologia o desenho feito por crianças ou uma oficina de artesanato com senhoras são também possíveis caminhos para decifrar problemas sociológicos. O mesmo é válido para o método de exposição do resultado de suas pesquisas: ele caminha por textos em linguagem poética aliado a extremo rigor analítico, pela criação de documentários, por registros fotográficos exibidos em antigos projetores – numa época na qual a informática ainda engatinhava.
Na trajetória de Maria Moraes, a vida intelectual e pessoal se fundem. O seu ofício é concebido a partir dos fios que ligam a pesquisa, a docência e a busca por justiça social. Assim ela continua lecionando: sempre lendo e relendo incansavelmente montanhas de textos para dar aulas magistrais – aulas inesquecíveis para quem as presencia. Desse modo, ela também prossegue construindo novos projetos de pesquisa e inspirando jovens pesquisadores. Teimosamente persiste em participar de audiências públicas e em colaborar com movimentos e entidades de defesa de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais (como a Pastoral do Migrante e Grupos de Trabalho do Ministério Público).
Nos anos 2020, tem se dedicado à construção de um repositório digital contendo a memória de trabalhadores rurais. Esse repositório será constituído pelo acervo de inúmeras fotografias e de mais de mil horas de entrevistas que realizou ao longo das últimas quatro décadas. São o registro das vozes de homens e mulheres que migraram do Vale do Jequitinhonha e do Nordeste do país para as lavouras de São Paulo, além de entrevistas com sitiantes e assentados rurais. Mais do que um valioso banco de dados para pesquisas futuras, trata-se de um exercício de práxis política em torno da luta pela memória, uma forma de escovar a história a contrapelo.
Certa vez o poeta Manoel de Barros escreveu que O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. A Sociologia de Maria Moraes é imprescindível porque nos permite transver o mundo. É preciso transver o mundo. Tanto ontem, no tempo em que ela lia no alto das árvores, quanto agora.
Maria Moraes participou do livro organizado por Mary Del Priori que ganhou o Prêmio Jabuti – História das Mulheres no Brasil, (Ed.Contexto, 1997). Em 2005 foi laureada com o Prêmio Érico Vannucci Mendes, concedido pelo CNPq. Teses sob a sua orientação foram premiadas em concursos nacionais promovidos pela Sober (2013) e pela Rede de Estudos Rurais (2016).
Sugestão de obras da autora:
SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Errantes do Fim do Século. 1a. ed. São Paulo: EDUNESP- Editora da UNESP, 1999.
SILVA, Maria Aparecida de Moraes. A luta pela terra. Experiência e memória. 1. ed. São Paulo: Edunesp, 2004.
SILVA, Maria Aparecida de Moraes; ANTUNES, Ricardo. (Org.). O avesso do trabalho. 1. ed. São Paulo: Expressão popular, 2004.
SILVA, Maria Aparecida de Moraes; VERÇOZA, Lúcio Vasconcellos de (Org.). Vidas tejidas al reverso de la historia. Estudios sobre el trabajo en los cañaverales y los campos de flores en Brasil. 1. ed. Buenos Aires: CLACSO, 2020. v. 1. 263p
SILVA, Maria Aparecida Moraes Silva. As andorinhas: nem cá, nem lá. Documentário. UNESP/Araraquara, 1990. Acesso: https://www.youtube.com/watch?v=TGYAr8M37Zs
Sobre a autora:
OCADA, Fábio Kazuo; MELO, Beatriz Medeiros. Entrevista com Maria Aparecida de Moraes Silva. Revista NERA (UNESP), v. 11, p. 117-136, 2009.
SILVA, Maria Aparecida de Moraes. Lições do Vale: narrativa de uma pesquisadora. In: NOGUEIRA, MARIA DAS DORES PIMENTEL. (Org.). Vale do Jequitinhonha. Educação e trabalho. 1 ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013, v. 1, p. 17-36.