João Marcelo Maia (CPDOC-FGV)
Maria Alice Rezende de Carvalho é uma historiadora convertida à sociologia, ou uma socióloga com sensibilidade historiográfica. Licenciada em História pela PUC-Rio em 1975, tornou-se professora auxiliar do mesmo departamento no ano seguinte, afastando-se em 1978 para fazer seu mestrado no programa de História Social da UNICAMP, no qual seria orientada por Maria Stella Bresciani. Na dissertação “Cidade e Fábrica: a construção do mundo do trabalho na sociedade brasileira”, defendida em 1983, já se notava uma das principais preocupações analíticas de Maria Alice – a produção da vida urbana em uma sociedade capitalista periférica, na qual as dinâmicas burguesas foram atravessadas pela escravidão e pela informalidade.
O interesse de Maria Alice pela interpretação da experiência periférica brasileira também encontrava tradução na vida pública, em especial ao longo da década de 1980, período marcado pela abertura política e pelo processo constituinte. Nessa conjuntura, teve participação ativa no grupo da revista Presença, publicação que reunia intelectuais próximos ao PCB interessados nas conexões entre comunismo, democracia e sociedade civil, e que buscavam manter uma interlocução com o liberalismo que se mostrou central para a derrota do autoritarismo.
Após terminar seu mestrado, Maria Alice tornou-se professora adjunta no departamento da História da PUC e inscreveu-se no doutorado em Sociologia do IUPERJ em 1985. Vale lembrar que, naquele momento, no Rio de Janeiro, os programas de pós-graduação em Ciências Sociais eram mais longevos e consolidados do que os de História, em especial pelo papel cumprido pelo IUPERJ (Política e Sociologia) e pelo Museu Nacional (Antropologia), ambos criados ainda em 1969.
Em 1988, quando ainda era aluna de doutorado, foi aceita para fazer parte do quadro docente do IUPERJ, num movimento de renovação e abertura disciplinar conduzido pelo então diretor Wanderley Guilherme dos Santos. Nesse mesmo processo, os jovens cientistas sociais Ricardo Benzaquen de Araújo e Luiz Eduardo Soares também foram recrutados para a instituição.
Sua tese de doutorado foi finalizada em 1997, sob orientação de José Murilo de Carvalho, e emergiu em um ambiente formado por diversos pesquisadores interessados nas tensões entre americanismo e iberismo na formação brasileira, no qual participavam nomes como Luiz Werneck Vianna, Rubem Barboza Filho, Lúcia Lippi Oliveira e Beatriz Jaguaribe, além do próprio Murilo de Carvalho. Sua marca particular nesse grupo era a combinação entre o repertório conceitual de Antonio Gramsci – adquirido ao longo da década de 1980 na sua socialização no comunismo- democrático de Presença -, o treino historiográfico e o gosto por uma sociologia intelectual de longa duração que enquadrava seus objetos empíricos a partir do grande problema da modernização periférica.
Na tese “O Quinto Século: André Rebouças e a construção do Brasil”, publicada em livro pela REVAN no ano seguinte à defesa (Revan, 1998), Maria Alice combina uma sociologia política orientada para processos de state-building (não apenas Gramsci, mas também Norbert Elias) e a sensibilidade historiográfica de sua formação inicial para investigar a formação e o destino da agenda americanista no Segundo Reinado, por meio de um estudo de caso do engenheiro negro André Rebouças. Combinando pesquisa em fontes primárias (em especial cartas trocadas com Joaquim Nabuco e Taunay e os registros no diário de Rebouças) com análises mais abrangentes sobre a socialização intelectual e política de seu personagem principal, o livro demonstra como o americanismo de Rebouças, orientado para a defesa da pequena propriedade e da reforma da terra, acabou convergindo para a esperança (malograda) de um reformismo conduzido pela Coroa, forma possível de americanismo numa sociedade em que o Estado e suas elites burocráticas controlavam as vias da modernização.
Maria Alice permaneceu no IUPERJ de 1988 a 2008, e ao longo desses 20 anos consolidou sua conversão à teoria sociológica, que se tornou um modo de interlocução das questões de alcance historiográfico. Três questões fundamentais orientaram seu trabalho na instituição: a sociologia urbana, a sociologia política do Poder Judiciário e o pensamento social no Brasil. No primeiro caso, Maria Alice publicou em 1994 a coletânea “Quatro Vezes Cidade” (Sette Letras, 1994), com quatro estudos centrados nos atores e processos que forjaram a experiência urbana carioca. No segundo, realizou uma série de pesquisas sobre democracia, Judiciário e sociedade civil, juntamente com os colegas Luiz Werneck Vianna, Marcelo Burgos e Manoel Palácios. Em obras como “Corpo e Alma da Magistratura Brasileira” (Revan, 1997) e “A judicialização da política e das relações sociais no Brasil” (Revan, 1999), o quarteto abriu uma poderosa agenda de pesquisas sobre o papel do Judiciário na produção de novas formas da vida democrática no Brasil pós-1988. Finalmente, o livro sobre Rebouças é a grande contribuição que Maria Alice deu à área de pensamento social, mas o artigo “Temas sobre a organização dos intelectuais no Brasil” (RBCS, 2007) oferece excelente síntese sobre o estilo analítico da autora, marcado pelo gosto pela longa duração e pelo uso criativo de conceitos e categorias de inspiração gramsciana.
Em 2008, Maria Alice retornou à PUC-Rio, desta vez para o departamento de Sociologia e Política. Na PUC, Maria Alice retomou sua agenda sobre cidades, democracia e direitos, liderando o laboratório CENTRAL (Núcleo de Estudos e Projetos sobre Cidades) e mobilizando jovens alunos, pesquisadores, ativistas e coletivos urbanos em debates sobre o Rio de Janeiro. Foi nesse período que lançou um de seus livros mais instigantes, dedicado à trajetória profissional de Irineu Marinho (Globo, 2012), em que combina sociologias histórica e urbana para analisar o tipo de jornalismo que se plasmou na então capital da Primeira República. Também é dos tempos de PUC o artigo “Três Pretos Tristes: André Rebouças, Cruz e Souza e Lima Barreto” (Topoi, 2017), em que Maria Alice transforma sua pesquisa originária sobre Rebouças em uma inquirição mais ampla sobre a emergência de uma sensibilidade política crítica ao liberalismo entre intelectuais negros na passagem do Oitocentos para a Primeira República.
Maria Alice também teve intensa vida associativa, em especial pelo seu interesse no tema da organização dos intelectuais e da democracia. Foi Presidente da ANPOCS entre 2009 e 2010, e participou de diversos comitês voltados para o planejamento urbano do Rio de Janeiro, em especial no Instituto Pereira Passos.
Finalmente, Maria Alice é bastante reconhecida pelas suas qualidades como professora, atividade que não tem o devido reconhecimento no atual sistema de ciência e tecnologia brasileiro. Seus cursos no IUPERJ encantaram uma legião de alunos fascinados pela combinação entre erudição, fluência da exposição e criatividade no estabelecimento de nexos entre ideias e empiria. Agora, são os alunos da PUC que se beneficiam dessa virtuosa e difícil alquimia semanal. Não à toa, tornou-se também uma orientadora tarimbada, tendo formado até 2022, 27 doutores (dos quais quatro com teses premiadas) e 23 mestres.
Sugestões de obras da autora:
VIANNA, Luiz J. W; CARVALHO, Maria A.R; PALACIOS, Manuel; BURGOS, Marcelo. (1999). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: REVAN.
VIANNA, Luiz J. W; CARVALHO, Maria A.R; PALACIOS, Manuel; BURGOS, Marcelo. (1997) Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: REVAN.
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. (2017). “Três Pretos Tristes: André Rebouças, Cruz e Souza e Lima Barreto”. Topoi. Vol. 18, pp. 6-22.
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. (2013), Irineu Marinho: imprensa e cidade. Rio de Janeiro: Globo Livros.
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. (2007), “Temas sobre a organização dos intelectuais no Brasil”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. 22, pp. 17-31.
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. (1998). O Quinto Século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro: REVAN.
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. (1994). Quatro Vezes Cidade. Rio de Janeiro: Sette Letras.