Por Ivo Ferreira Brito (FIOTEC-Fiocruz)
Madel Therezinha Luz nasceu no ano de 1939, na cidade do Rio de Janeiro. Desde a infância se mostrou uma pessoa inquieta e curiosa. Herdou dos pais a paixão pela leitura, em particular pela poesia. Em entrevista ao portal do “Observatório de Práticas Integrativas em Saúde” (OBESERVAPICS/FIOCRUZ), espaço criado em sua homenagem, Madel deixou claro que seu interesse de pesquisa esteve pautado sempre pelo trabalho com a sociologia da “área da saúde da vida”, campo de conhecimento que se constituirá como referência para toda a nova geração de pesquisadores da saúde pública e da sociologia da saúde.
Graduou-se em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1958-1962). Entre 1965 e 1969, concluiu o mestrado na Université Cathólic de Louvain, na Bélgica, sob a orientação do sociólogo e professor Pierre de Bie (1917-1996). O contexto social e político no qual se deu sua passagem em Louvain foi marcado por dois movimentos marcantes que trouxeram à tona novas reflexões: a) a discussão da reforma do ensino da Sociologia na Bélgica, protagonizada por Pierre de Bie e George Balandier; e b) o levante estudantil de maio de 1968 em Paris e a conformação de uma nova agenda política, que viria a se constituir como uma “comunidade da diferença[1]. O primeiro movimento desencadeou uma completa revisão do ensino de Sociologia na Bélgica. O segundo, sob influência das pautas estudantis de contestação da ordem vigente, Guerra Fria, Guerra do Vietnã, crítica aos costumes e do surgimento do capitalismo de organização do II pós-guerra, trouxe à tona a necessidade de se fazer uma crítica ao método estrutural-funcional dominante na Sociologia.
É nesse contexto que Madel Luz dedicou-se a questionar, em sua dissertação de mestrado, as bases ideológicas do método estrutural-funcionalista da estratificação e das classes sociais e sua aplicação para a compreensão da realidade[2]. Sua estadia em Louvain e sua aproximação com as reflexões epistemológicas de Pierre Bie sobre o método sociológico, principalmente em relação aos limites das abordagens positivistas e objetivas dos fatos sociais, despertaram o seu interesse em desvendar os meandros das relações entre estratificação e classe social no campo da sociologia do conhecimento. O conhecimento dos fatos sociais não podia se restringir à sua exterioridade, à observação e à experiência, pois resultariam em um conhecimento parcial e restrito da realidade. Mais do que especular sobre as estruturas e suas funções, era necessário penetrar nos sentidos da ação, ou seja, uma guinada metodológica em direção ao sujeito. Daí a crítica à ideologia subjacente nas teorias da estratificação e das classes sociais sob a égide do método estrutural-funcionalista na Sociologia.
De retorno ao Brasil, no início da década de 1970, Madel irá confrontar, em plena repressão e controle político do regime militar, um ambiente universitário sob vigilância e interdição, onde a liberdade de opinião e o direito de manifestação são suprimidos, restando apenas as brechas sob as quais uma contracultura de enfrentamento ao regime vinha sendo gestada. Esse contexto foi explorado em um artigo de Luciano Martins, publicado em 1979 nos Cadernos de Opinião, sob o título de “Geração AI-5”[3]. As brechas contraculturais e suas expressões epistemológicas estarão presentes no ambiente acadêmico do Instituto de Medicina Social (IMS-UERJ), do qual Madel faria parte, ambiente no qual uma geração de pesquisadores de diferentes formações, desde o campo biomédico por excelência até as vertentes transversais da antropologia da saúde, sociologia das instituições médicas, epidemiologistas, se debruçaram a compreender as determinações do processo saúde-doença e seus modos de produção social no Brasil.
Madel integrou o corpo docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e, nessa instituição, foi responsável por lecionar e conduzir pesquisas na área de saúde coletiva, na pós-graduação do então Instituto de Medicina Social (IMS). Nessa instituição realizou os primeiros estudos sobre o campo de prática da saúde coletiva, sobre as instituições médicas e sobre as políticas de saúde no Brasil, dedicando-se à formação de toda uma geração de profissionais de saúde.
Ingressou no doutorado em Ciências Políticas da Universidade de São Paulo (1974-1978), sob orientação do professor José Augusto Guilhon Albuquerque, tendo como objeto de estudo as instituições médicas e as estratégias de hegemonia. A tese de doutorado é publicada em 1979, “As Instituições Médicas no Brasil: Instituição e Estratégia de Hegemonia”[4], e toma como objeto central as estratégias de poder adotadas pelas instituições médicas e sua capacidade de produzir hegemonia a partir de um discurso técnico-científico, em dois momentos conjunturais constitutivos dos projetos de políticas de saúde no Brasil. O primeiro momento é demarcado pela unificação do sistema de caixas e pensões em um sistema unificado de assistência médica vinculado à previdência social. Esse sistema beneficia apenas a parcela de trabalhadores urbanos que contribuem para a previdência social. O segundo momento é caracterizado pela crescente expansão do complexo médico industrial, que adquire importância não apenas no modelo hospitalocêntrico, mas sobretudo na formação e capacitação dos profissionais de saúde, tendo como lugar de prática o Hospital Universitário. A análise institucional a partir do conceito de hegemonia promove um deslocamento crítico das abordagens da sociologia organizacional para o campo político de disputa de poder. Madel deixa clara sua posição analítica: “pretendo descobrir nas instituições sua densidade específica como modos de poder de um modo de produção social, evitando reduzi-las a reflexo da evolução das forças produtivas ou à função de reprodutoras das relações sociais de produção”. Esse pressuposto trata, portanto, o campo da ciência, no caso a ciência da clínica que dá suporte às instituições médicas, não como um campo neutro e autônomo do saber médico, cuja racionalidade se apresenta à sociedade como algo acima dos conflitos, sem nenhuma relação com os processos de reprodução do capital e suas contradições.
Atenta às contradições e ideologias subjacentes, à racionalidade que norteia o pensamento científico moderno, Madel dedicou parte expressiva de seu tempo a investigar e compreender os meandros das “racionalidades médicas” e suas relações sociais, como se constituem e como se afirmam enquanto saberes hegemônicos, muitos dos quais presentes no discurso e na prática da medicina flexneriana. Utilizo “racionalidades” no plural porque foi assim concebido o campo de estudo explorado por Madel Luz e toda a sua equipe. Pesquisadores que atualmente integram o grupo de pesquisa “Racionalidades em Saúde: Sistemas Médicos e Práticas Complementares e Integrativas”, no CNPQ. As “racionalidades” em saúde emergem como uma crítica às práticas médicas ocidentais e avançam no sentido de demonstrar outras “racionalidades” possíveis no cuidado à saúde das pessoas. A existência de saberes e práticas em saúde não hegemônicos não se contrapõe às práticas da medicina moderna, mas exige que sejam reconhecidos e que tenham um lugar de prática no sistema de saúde. Madel reconhece e torna transparente a existência de um outro tipo ideal de racionalidade biomédica, que vê a saúde e a vida de um outro ponto de vista, ou seja, mais humano, integral e em harmonia com o ambiente.
A partir das reflexões sobre as racionalidades no campo da medicina e da saúde coletiva, de suas pesquisas de campo e de sua dedicação à formação de toda uma geração de pesquisadores e profissionais de saúde dedicados a pensar novas práticas de cuidado, tornou-se realidade concreta a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), oficializada em 2006. Essas práticas constituem-se como um conjunto de recursos terapêuticos complementares na promoção, prevenção e recuperação da saúde, que passaram a ser ofertados em toda a extensão das redes de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, a rede de atenção passou a ofertar homeopatia, medicina tradicional chinesa, plantas medicinais e fitoterapia, entre muitos outros campos de conhecimento e de práticas alternativas em saúde. O protagonismo de Madel Luz na defesa dessas modalidades de conhecimento, de práticas integrativas e complementares foi vital na discussão da humanização, do acolhimento e da promoção integral do cuidado humano. A síntese das reflexões sobre as “racionalidades médicas” é encontrada em sua obra, “Natural, Racional, Social. Razão Médica e Racionalidade Científica Moderna”, dedicada a esmiuçar as relações sociais da ciência moderna do século XVI ao século XIX, sob a perspectiva do método sociológico.
Madel cita como principais referências na sua formação intelectual, as contribuições de Robert Castel, Michel Foucault, François Jullien e Isabele Stenguers, referências que abordaram o tema da racionalidade científica e que deram contribuições importantes para a compreensão do campo de prática da saúde e Jean Ladriere, com quem compartilhou suas reflexões críticas ao positivismo durante a estadia em Louvain. A essas referências, Madel agrega a contribuição de Roberto Machado, sobretudo as reflexões sobre o campo de prática da saúde coletiva. Perguntei à Madel, dentre os clássicos da sociologia quem ela nomearia como a principal referência em sua formação? A resposta veio de imediato: Max Weber
Mas se não bastasse toda essa dedicação ao ensino e à pesquisa em saúde coletiva, Madel, também, dedicou-se a discutir, nos idos dos anos 80, em plena retomada das lutas pela democratização e do ascenso dos movimentos sociais, a condição da mulher, tendo como resultado a organização do livro “O Lugar da Mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual”, publicado em 1982. Outro aspecto importante é que sua produção não se resume exclusivamente ao campo da sociologia. Àqueles que desejarem se aproximar do mundo íntimo e cativante de Madel, recomendo seus livros de passagem pela literatura. O romance “Novelo: narrativa ao fio da memória” nos leva a uma narrativa biográfica que descreve a busca de encontro da personagem com sua história pessoal, com a história de sua geração e a história de seu país. Dois outros títulos foram publicados: o livro de contos “Caminhos, contos e quadros parisienses” e o livro de poesia “Azul de vidro”. Madel surpreende pelo humor, pela dedicação ao ensino e sobretudo por sua especial contribuição na luta pela Reforma Sanitária do País.
Sugestões de obras da autora:
LUZ, Madel T, Natural, Racional, Social: Razão Médica e Racionalidade Científica Moderna. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1988.
LUZ, Madel T. As Instituições Médicas no Brasil. Instituição e Estratégia de Hegemonia. Rio de Janeiro, Editora Graal, 1986.
LUZ, Madel T. Medicina e Ordem Política Brasileira. Política e Instituições de Saúde no Brasil (1850 – 1930). Rio de Janeiro, Editora Graal, 1982.
Luz, Madel T. A Arte de Curar Versus a Ciência das Doenças História Social da Homeopatia. São Paulo, Dynamis Editorial, 1996.
[1] Comunidade da diferença é um conceito utilizado por Miroslav Milovic,, como alternativa a reificação moderna da identidade, uma nova condição onde se encontram a luta de classes e as distinções expressas pelas diferenças de gênero, raça e de orientação sexual. O conceito foi desenvolvido no livro “Comunidade da Diferença”, publicado pela Editora Relume Dumará/UNIJUI, 2004
[2] Luz, Madel T. “Fondements idéologiques de la méthode structurelle – fonctionnelle: vision fontionnaliste de la stratification et des classes sociales dans une perspective de sociologie de la connaissance”. Universite Catholique de Louvain, Belgica, 1969.
[3] Martins, Luciano “Geração AI-5”. Cardemos de Opinião; volume 11, 1979.
[4] Luz, Madel T. “As Instituições Médicas no Brasil: Instituição e Estratégia de Hegemonia”. Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1979.