Luiz Pereira

Por Conrado Pires de Castro (UFLA)

“Uso deste espaço para não deixar que tudo se perca, se evapore. E continuo dizendo dessa forma canhestra e imprecisa, infiel e abstrata. O fato é que tudo mudou, que era o mundo antes, o meu, bem diferente”. (Roberto Salinas Fortes, Retrato Calado)

Embora seja um autor praticamente desconhecido das novas gerações, as obras e a presença de Luiz Pereira eram quase que incontornáveis às gerações de cientistas sociais formadas ao longo dos anos 60 e 70 do século passado. A ideia de obra não se limita aos registros escritos, mas abrange também – e fundamentalmente – a atividade formativa que exerceu, para além da obra impressa, através do sentido que atribuía à sua atividade docente.

Nasceu em Piracicaba no ano de 1933, momento em que a cidade diversificava sua base material e se avultava como o “centro nervoso da educação” do interior paulista. Luiz Pereira ali se fez normalista, agraciado por seu desempenho escolar com a “cadeira prêmio”, equivalente à efetivação no magistério primário público estadual, o que iria custear sua mudança para São Paulo e seu curso de Pedagogia na USP. Suas primeiras incursões sociológicas, aliás, se dão pelo estudo do grupo escolar da grande São Paulo, onde lecionou após graduar-se em 1955.

Nesse período tem lugar sua ligação com as atividades desempenhadas como pesquisador assistente da Divisão de Estudos e Pesquisas Sociais do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, órgão vinculado ao Instituto Nacional de Estudos pedagógicos (INEP) dirigido à época por Anísio Teixeira, que funcionou na capital paulista por meio de um convênio firmado entre o INEP e a USP, particularmente através de sua Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Luiz Pereira manteve vínculos diretos com CRPE/SP entre 1957 e 1959, embora estendesse seus contatos mais ou menos assíduos com projetos ali desenvolvidos até o final de 1961, como diretor de pesquisa de subprojetos do “Programa de Pesquisa sobre a Urbanização e Industrialização no Brasil”, patrocinado pelo INEP, através de seu Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Devido aos fortes laços que uniam o Centro Regional paulista à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, Luiz Pereira acumulou suas funções de pesquisador e coordenador de pesquisas com a elaboração de seus estudos de pós-graduação em Sociologia, sob a orientação de Florestan Fernandes.

Foi pelas mãos de seu orientador que retorna ao interior de São Paulo, para reger a cadeira de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, cargo que exerce de 1959 a abril de 1963, ocasião em que é recrutado para coordenar a pesquisa sobre “A qualificação do operário na empresa industrial” no recém-criado Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT), anexo à cadeira de Sociologia I da FFCL/USP. Entre 1964 e 1967, substituiria Fernando Henrique Cardoso na direção desse centro, quando este, titular do cargo, embarca para o exílio logo após o golpe de 1964. Tem-se assim, a partir de 1963, o marco simbólico da passagem à segunda fase da carreira de Luiz Pereira, com sua nomeação como Assistente Doutor da cadeira de Sociologia I em 1964. Com a defesa da tese de livre-docência, é promovido à Assistente Docente (Livre-Docente), no ano seguinte. Paralelamente às atividades do CESIT e dos cursos de graduação, passa a desempenhar também funções no curso de Pós-Graduação de Sociologia.

Após desligamento do CESIT, em 1967, Luiz Pereira se dedicará exclusivamente às incumbências de docência e pesquisa na cadeira de Sociologia I, insinuando-se os primeiros sinais da terceira e, talvez, última transição em seu itinerário intelectual. Cumpre ressaltar que a maturação desta etapa seria perturbada pelas contingências da cassação das principais lideranças acadêmicas da USP, tanto quanto pelo desafio bifronte de reanimar o rigor das análises sociológicas uspianas e conferir estatuto científico ao materialismo histórico frente às tensões da difícil conjuntura dos anos 1970. Sem contar as complicações impostas por graves problemas de saúde que o abateram em pleno curso de lapidação teórica na segunda metade da mesma década, afastando-o das atividades públicas no início da seguinte, e o levariam precocemente a óbito em 06 de julho de 1985.

Como reconhecimento ao trabalho realizado na USP, Luiz Pereira foi eleito presidente da primeira diretoria da Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo, fundada em agosto de 1971. Não obstante, seja em virtude de possíveis “desajustes” atribuíveis ao seu temperamento tímido e reservado, seja pela concomitância daquilo que Florestan Fernandes chamava “de crise da USP e do poder burguês”, é fato que Luiz Pereira nunca chegou ao topo da carreira universitária – salvo “por designação e a título precário”, como descreve em seu Memorial para o concurso de Professor-Adjunto em julho de 1972, ter exercido as “funções de Professor Titular do Curso de Sociologia I da FFLCH da USP”, entre maio de 1969 a fevereiro de 1972. Comentando os deveres impossíveis que recaíram sobre Luiz Pereira na direção da preservação da unidade do pequeno grupo de professores a que pertencia, escreveu Florestan Fernandes:

Fincado no solo de uma instituição em crise prolongada, nela teve de travar os seus combates e sofrer amargos desenganos. Seu temperamento retraído e altruísta não se casava com os papéis que devia desempenhar. Se soube fazer e resguardar aliados preciosos, perdeu outros e perdeu-se ele próprio na terrível selva dourada da vida acadêmica. Alguns deles seriam seus aliados naturais e lhe dariam cobertura para projetos e realizações que tiveram de ser abandonados. (…) sua concepção da dignidade da Ciência e do professor comprometiam-no com uma posição ética castradora nas suas relações com a transformação da USP, da sociedade e do sistema das ciências. Isso não induziu mas simplificou os vários esbulhos que o atingiram, pelos quais lhe foi tirado o que lhe era devido, o que ele recebia com uma resignação que acentuava sua grandeza. (FERNANDES, 1986: 239)

Neste sentido, a trajetória de Luiz Pereira é emblemática dos descaminhos e desencontros institucionais e geracionais da sociologia paulista – e, talvez, por extensão, brasileira – no período que se abre imediatamente após o golpe civil-militar de 1964. Em seu itinerário pessoal parecem convergir os dramas vividos por boa parte da comunidade sociológica naquela quadra histórica: diante da derrota política que interrompera um rápido processo de radicalização democrática em curso, como lidar com as novas circunstâncias sem abdicar das realizações às duras penas conquistadas pelas gerações de cientistas sociais que alcançavam a plena maturidade intelectual nesse momento?

Este cenário posicionava Luiz Pereira numa situação geracional intermediária – ou mesmo explicitava o fato dele pertencer a uma unidade de geração distinta da de seus contemporâneos atingidos pela aposentadoria compulsória. Ademais, as escolhas então efetuadas para enfrentar esta situação culminaram por empurrar Luiz Pereira ainda mais à margem dos debates públicos, pois ele conservava algo do estilo de liderança intelectual que naquela conjuntura passava a ser alvo de contestação da parte de antigas e novas gerações de cientistas sociais.

Se é possível atribuir à linguagem pela qual se reveste essa obra um relativo envelhecimento de seu estilo de pensamento, os eixos que a norteiam continuam a desafiar o imaginário sociológico presente. Em linhas gerais, a produção científica e política de Luiz Pereira corresponde a um trabalho com preocupações de natureza eminentemente didáticas, seja pela informação reunida em antologias temáticas de estudos tanto quanto por meio das reflexões críticas provocadas pelas suas interpretações mais autorais. Trabalho que avança por sucessivos prolongamentos, reiterações e integrações de temáticas conexas e de aspectos multifacetados do que ele chamava de “etapa contemporânea da sociedade brasileira”.

Dentre as contribuições mais significativas de Luiz Pereira destacam-se as investigações sistemáticas das “relações dinâmicas entre instituições escolares e estruturas sociais inclusivas”, desdobrando-se à constituição do “sistema de classes sociais no Brasil”, da condição da mulher no mundo do trabalho – intuindo as opressivas acomodações do padrão de cuidado “doméstico” e do padrão “profissional” no trabalho feminino -, e ao papel das classes subalternas no processo de rearticulação das transformações profundas observadas no entrelaçamento do sistema capitalista internacional e sua repercussão no interior da sociedade brasileira. Uma constelação de problemas equacionada a partir de um “estilo histórico de fazer sociologia”, em sintonia com as necessidades de enfrentamento dos dilemas colocados pelos possíveis horizontes abertos ao presente como história, refletindo os estilhaços do mundo contemporâneo tenuemente amarrado pelos fios da lógica da acumulação e do domínio do capital – e, no vocabulário de hoje, também do patriarcado.

A importância do papel de Luiz Pereira na vida universitária uspiana durante os anos 1960/70, bem como o lugar a ele reservado na sociologia nacional, em geral, e na sociologia paulista, em particular, podem ser aferidos em sua firme, embora discreta, contribuição para avalizar a continuação de um padrão de trabalho científico plural e a manutenção do nível dos cursos do departamento de ciências sociais da Faculdade de Filosofia, acolhendo múltiplas ramificações teóricas e metodológicas, sob a capa da unidade da diversidade existente no seio da “escola paulista de sociologia”. Não bastasse isso, exerceu, após a instauração das sanções do regime militar às Universidades, influência difusa, porém, decisiva, por meio da orientação e acolhimento a pesquisadoras e pesquisadores de várias filiações que logo assumiriam postos universitários em instituições de ensino superior espalhadas por todo o país.

Em tempos recentes, afora a reavaliação dos aportes feitos à sociologia da educação, sua incipiente “sociologia da inquietação operária” tem sido recuperada e aprofundada pela sociologia do trabalho que se orienta criticamente rumo a uma sociologia pública.

Sugestão de obras do autor:

PEREIRA, Luiz. A escola numa área metropolitana: monografia sociológica sobre o funcionamento interno e as relações da escola primária com o meio social local. 1ª Ed. Boletim nº 253 FFCL da USP, São Paulo, 1960. [Dissertação de Mestrado, 2ª edição comercial, revista e ampliada, pela Editora Pioneira/EDUSP, em 1967]

PEREIRA, Luiz. O magistério primário numa sociedade de classes: contribuição ao estudo sociológico de uma ocupação na cidade de São Paulo. 1ª Ed. Boletim nº 277 FFCL da USP, São Paulo, 1963. [Tese de Doutorado, 2ª edição comercial, parcialmente refundida, pela Editora Pioneira, em 1969]

PEREIRA, Luiz. Trabalho e desenvolvimento no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1965. [Edição comercial de Tese de Livre-docência, no mesmo ano de defesa]

PEREIRA, Luiz. Estudos sobre o Brasil contemporâneo. São Paulo: Pioneira, 1971

PEREIRA, Luiz. Capitalismo: notas teóricas. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

Sobre o autor:

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.

FERNANDES, Florestan. “Luta em Surdina”, in: Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 238-42. (Originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo, em 24 de julho de 1985).

MARTINS, José de Souza. A sociologia como aventura: memória. São Paulo: Contexto, 2013.
Há alguns anos o sítio Marxismo 21 organizou um dossiê sobre Luiz Pereira, reunindo e disponibilizando na rede farto material a respeito deste autor. Dossiê I: Autores Marxistas: https://marxismo21.org/luiz-pereira/ Acesso em 22/06/2022.