Luís da Câmara Cascudo

Por Vania de Vasconcelos Gico (UFRN)

Estudioso do patrimônio cultural brasileiro

Celebrando a memória e a trajetória de atores do processo de construção da sociologia no Brasil, debruçamo-nos sobre o intelectual Luís da Câmara Cascudo, guardião das nossas tradições, tanto pelo seu compromisso social com a cultura brasileira, como pelas suas relações com a realidade histórica global, especialmente no seu período mais produtivo (1918 a 1981), destacando-se os estudos da cultura popular (GICO, 2003)[1].  Como intelectual orgânico, conforme Gramsci, articulava o conhecimento e a produção intelectual religando a província à sociedade mais ampla, mantendo intercâmbio com outros estudiosos brasileiros e estrangeiros.  Era mesmo um intelectual tradicional, ainda na concepção gramsciana, sempre preocupado com as transformações, com o devir, comprometido com o saber cultural. (CRUZ, 1997)[2]

Um olhar no “universo” cascudiano (COSTA, 1969) nos possibilita reconhecer/apreciar uma produção multifacetada. Tinha um pensamento rico de ideias em várias áreas do conhecimento. Escreveu sobre os mais variados assuntos, como crítica literária, mitos, romance (Canto de muro), novelística (Cinco livros do povo), Civilização e cultura (pesquisa e notas de etnografia geral), literatura folclórica, contos, dicionário de folclore, etnografia brasileira, vários ângulos do folclore (cultura popular, festas tradicionais, folguedos e bailes, superstições, viagens e assombrações, mímicas, danças, bebidas e alimentos), personalidades, biografias, gestos, história e geografia, memórias, genealogias, literatura oral, locuções tradicionais do Brasil, catimbó, magia branca, a cachaça brasileira, rede de dormir, crenças e religião no povo, sociologia da produção canavieira, vaqueiros e cantadores (ciclo do gado), entre outros temas (GICO,1996).

Diante dessa vastidão, delimitamos para melhor apreensão desse universo três direções para suas ideias: folclore, história e memória. O estudo do folclore, que o consagrou, embora ele não aceitasse classificações, quando analisado do ponto de vista da antropologia cultural (usos e costumes, as tradições e a história social e cultural) manifestada em especial no Rio Grande do Norte, possui uma visão da cultura universal. As obras de história são fontes de referência documental de estudo, embora, de estilo narrativo e contornos conjunturais (GICO 1998).

Quanto aos estudos da memória, dedicou-se principalmente à “escrita de si”, parafraseando Foucault (2002). Seu universo foi   sendo revelado em seus livros, através de seu estilo peculiar de natureza aberta, franca, expansiva e direta (COSTA, 1969). À proporção que os anos foram se passando, a tendência denunciativa do seu perfil foi se direcionando para um livro único, a “reencontrar, a reconstruir e a reagrupar, numa tentativa sistemática, as figuras e as situações do passado perdido”, como confessa o próprio Cascudo no seu livro O tempo e eu: confidências e proposições, de 1968.

Nessa obra, autobiográfica, encontra-se o percurso dos seus setenta anos, baseado em material por ele mesmo recolhido no decorrer do tempo. É sua localização na “família, no tempo e na cidade, sua jornada de menino rico, estudante pobre, seu esforço intelectual para afirmar-se, que não lhe exclui o trânsito pela função pública e pela cátedra de professor secundário e universitário” (CASCUDO, 1968, p. 230). Pelos encontros sucessivos com pessoas e coisas, pensamentos e paisagens idos e vividos, torna-se a obra “a história de todas as culturas humanas”. Tempo-cronologia e Tempo-dimensão (MAMEDE, 1970, p. 805), revelando também o contexto em que sua produção se realiza.

Luís da Câmara Cascudo, filho de tradicional família potiguar  nasceu em Natal, a 30 de dezembro de 1898, onde viveu, falecendo em  30 de julho de 1986. Estudou Humanidades no Colégio Atheneu Norte-Rio-Grandense, cursando posteriormente medicina na Bahia e Rio de Janeiro até o 4º ano, quando desistiu da carreira e ingressou na Faculdade de Direito do Recife, na qual formou-se em 1928 (COSTA, 1969).

Dedicou-se primeiramente ao jornalismo, sendo seu primeiro trabalho um artigo de jornal publicado em 18 de outubro de 1918, no jornal “A IMPRENSA” (1914-1927), diário de propriedade de seu pai. Colaborou nos jornais de Natal, mantendo secções diárias como “Bric-à-Brac”, no jornal “A IMPRENSA”, e “Acta Diurna”, nos jornais “A República” e “Diário de Natal”. Estas secções foram os germes de quase todos os seus livros, de sua obra de historiador/folclorista/antropólogo/sociológo.

Era filho do Coronel Francisco Justino de Oliveira Cascudo e Dona Ana da Câmara Cascudo. Conforme contava, dado o prestígio do casal, a seção do cinema da cidade, só começava quando seus pais chegavam, transportados por um dos três automóveis da família, numa cidade que só possuía dez deles.

Ocupou cargos de secretário do Tribunal de Justiça e consultor jurídico do estado; recebeu do governo do estado, assembléia legislativa e prefeituras municipais, encomendas para escrever obras sobre História, disciplina que foi professor desde 1923, no Atheneu Norte-rio-Grandense, na Escola Normal e no Instituto de Música. Também foi professor de Direito e Filosofia, na então Universidade do Rio Grande do Norte, na qual aposentou-se, em 1966, e recebeu, em 1967, o título de “Professor Emérito e, em 1978, o de “Doutor Honoris Causa”.

Como a maioria dos brasileiros da época, Cascudo teve uma formação desordenada, assistemática, e as suas leituras foram indicadas pelos amigos letrados e mentores como Henrique Castriciano, possivelmente de quem recebeu maior influência intelectual (GICO, 1998). Lia tudo, compulsivamente, com a facilidade que tinha seu pai de mandar buscar livros na Europa, em formato de microfilmes, o que o colocava junto aos intelectuais informados com a produção internacional, pois lia francês, inglês, italiano, alemão, espanhol, grego e latim, esta última aprendida com um professor particular na sua juventude. Essa fluência linguística facilitou,  posteriormente, suas viagens à Europa para proferir palestras e consolidar intercâmbio; na viagem à África, pesquisou, coletou e embrenhou-se na coleta de dados para seus estudos de história da alimentação, além de  várias outras viagens à América Latina, para realizar conferências, ver, observar, anotar e coligir material para seus estudos.

Esteve sempre presente em várias frentes de atividade cultural em sua cidade, sendo um eminente orador em quase todas as inaugurações, solenidades  e acontecimentos de destaque da cidade. Foi um dos fundadores da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras; pertenceu a todos os Institutos Históricos do Brasil e de Portugal; ligou-se a sociedades de estudos e pesquisas folclóricas e etnográficas no Brasil e em Portugal. Fundou em Natal, em 1941, a Sociedade Brasileira do Folclore, da qual foi o primeiro presidente. Criou esta sociedade dedicada ao estudo das “coisas populares” por vir pesquisando sistematicamente a poesia, o conto e os costumes do Nordeste (MAMEDE, 1970), além de viva participação na vida intelectual brasileira, principalmente através das suas atividades jornalísticas, sendo conhecido e debatido fora dos espaços acadêmicos e fonte de consulta na vida cotidiana, principalmente pelo seu Dicionário do Folclore Brasileiro (2012).

Cascudo foi um dos formadores e principal estudioso do patrimônio cultural brasileiro, e faz parte da tradição de estudos sobre cultura e nossa história social. Seu processo criativo não está aprisionado ao teórico e ao metodológico, embora haja uma metodologia e uma teoria subjacentes (GICO,1996). A pesquisa bibliográfica foi sua grande aliada de pesquisa e já nos primórdios da obra usava fichas de pesquisa e de aulas, recurso raro entre os intelectuais de  então. Para viabilizar as informações necessárias à elaboração dos temas fazia “inquéritos diretos” e enviava cartas aos amigos,  sua  “correspondência perguntadeira”, além da pesquisa em arquivos no Brasil e além mar, os depoimentos da “história oral”, jornais antigos e pesquisa direta nos livros. Seu recolhimento, exigia, sempre, o silêncio da noite. Passava o dia coletando dados, recebendo visitas, fazendo “pesquisa de campo”[3], enquanto mais jovem, ou dormindo e a noite escrevendo. Escrevia de uma única vez. Não fazia borrões nem remontava textos. Criava, embalando-se numa rede. Quando levantava-se, estava com o texto pronto e passava-o direto para a máquina de escrever. Dali direto para os editores, sem guardar originais, pois não existiam.  Sua produção intelectual foi sempre a essência da sua vida, o que desenvolvia prazeirosamente, sem auxilio de um staff, consultando acervos dispersos, sem internet e sem o auxilio dos nossos modernos computadores[4].  Na sua longa velhice ainda afirmava:   “Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivências dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço. Percepção medular da contemporaneidade.” (Luís da Câmara Cascudo. Acervo Ludovicus- Instituto Câmara Cascudo, 2022).

Sugestões de obras do autor:

CASCUDO, Luís da Câmara. O tempo e eu: confidências e proposições. Natal: IMP. Universitária, 1968. Edição comemorativa dos 100 anos ( 1898 – 1998) de Luís da Câmara Cascudo. Natal : EDUFRN, 1998.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1954. 660 p. 12. ed. São Paulo: Ed. Global, 2012. 756 p.

CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e Cultura; pesquisas e notas de etnografia geral. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1973. 741 p.

CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil; confronto e notas. Rio de Janeiro: Americ-Ed., 1946. Col. Joaquim Nabuco, 8. 405 p.

CASCUDO, Luís da Câmara. História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1 o  volume, 1967. 396 p.

CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Natal: Edição da Prefeitura Municipal, 1947. 411 p.

Sobre o autor:

COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara Cascudo: tentativa de ensaio bibliográfico. Natal: Fundação José Augusto, 1969.

MAMEDE, Zila. Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual, 1918-1968: Bibliografia anotada. Natal: Fundação José Augusto, 1970. 2 v. em 3.

GICO, Vania. Civilização e Cultura. In: SILVA, Marcos (Org.). Dicionário crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, Fapesp; Natal: EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003. 

GICO, Vânia. Luís da Câmara Cascudo: bibliografia comentada 1968/1995. Natal: EDUFRN – Editora da UFRN, 1996. 

GICO, Vânia. Luís da Câmara Cascudo: itinerário de um pensador. São Paulo, 1998. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Programa de estudos pós-graduados em Ciências Sociais, PUC – São Paulo. 

[1] Suas reflexões sobre cultura permeiam o conjunto da obra. Não separava a cultura erudita da cultura popular, afirmando que eram complementares.

[2] Intelectual orgânico é um tipo de intelectual que se mantém ligado à sua classe social originária, atuando como seu porta-voz.

[3] Segundo D. Dahlia Freire Cascudo, em entrevista em maio de 1996, após exaltar as inúmeras qualidades do marido e do amor que os unia, afirmou que o marido gostava muito de “escapulir” e quando ela perguntava, ele dizia:” pesquisando Dahlia, pesquisando….

[4] O acervo de Luís da Câmara Cascudo está sob a guarda dos seus herdeiros, no Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, sob a direção da neta Daliana Cascudo Roberti Leite (Presidenta).  Preservado, cuidado, organizado e a disposição do público para pesquisa, visita e consulta, in loco e/ou pelas redes sociais.