Luciano Martins

Por Antonio Brasil Jr. (UFRJ)

Luciano Martins de Almeida (1934-2014) foi um sociólogo nascido e formado no Rio de Janeiro  que nos deixou um vasto legado de livros e artigos sobre diferentes temas, todos (ou quase todos) relacionados, porém, ao escrutínio dos nexos entre mudança social, desenvolvimento econômico e estruturas de poder no Brasil (e na América Latina). Embora tenha feito carreira científica internacionalizada – realizou doutorado na França e foi pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) – e mantido relações próximas com Fernando Henrique Cardoso e outros sociólogos de São Paulo – Luciano Martins não só era pessoalmente próximo de Cardoso e compartilhava com ele certos diagnósticos sobre o processo de desenvolvimento brasileiro, como também integrou o staff de seu governo –, não podemos dissociar a perspectiva sociológica desenvolvida em sua obra com as especificidades da formação em ciências sociais na antiga capital federal e da ambiência cultural mais geral oferecida naquela cidade (Almeida, 1987; Blois, 2021; Brasil Jr., 2017; Oliveira, 1995; Villas Bôas, 2006).

Ao mesmo tempo em que realiza sua graduação em ciências sociais (concluída em 1966) na Faculdade Nacional de Filosofia da antiga Universidade do Brasil (FNFi/UB), atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luciano Martins já tinha atuação destacada como jornalista e repórter, assinando longas e importantes matérias no Jornal do Brasil. Dentre os assuntos tratados em suas reportagens, chamam a atenção a reforma universitária, a crise no Ministério da Saúde, as dificuldades da nova capital (Brasília) e, em particular, o processo político tumultuado quando da renúncia de Jânio Quadros (Martins não só reconstitui a crônica dos eventos, mas igualmente analisa à quente o seu sentido, em interlocução com importantes vozes políticas da época). É digno de nota, ainda, que Martins, ao casar-se com Vera Pedrosa, teve acesso aos círculos intelectuais e de artistas que gravitavam em torno de Mario Pedrosa, figura central na renovação da crítica de arte brasileira e militante engajado na revisão das interpretações dominantes sobre a sociedade brasileira no campo das esquerdas, sobretudo as interpretações (àquela altura hegemônicas) oferecidas pelo Partido Comunista e pelos nacionalistas alinhados direta ou indiretamente ao varguismo (Martins, 2001). Ou seja: ao mesmo em que ia recebendo formação especializada nas modernas técnicas de pesquisa em ciências sociais, Martins igualmente tinha à sua disposição um ponto de observação privilegiado do mundo da política tal como ela é – o jornalismo político o forçava a taquigrafar as contingências do sistema político na crise que iria desembocar no golpe de 1964 – e uma posição política em tensão com os esquemas assentados quanto ao sentido da chamada “revolução brasileira”.

Em relação ao ambiente universitário propriamente dito, a despeito dos bloqueios à carreira na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, é preciso recuperar a importância do Instituto de Ciências Sociais (ICS), iniciativa interdisciplinar de organização e fomento à pesquisa, que contou com a contribuição de diferentes áreas (direito, sociologia, antropologia, economia etc.). Constituído em 1958, o ICS patrocinou diversas pesquisas pioneiras, além de manter uma atividade editorial relevante ao publicar manuais, monografias e uma revista acadêmica especializada. O ICS, portanto, somava-se a outras instituições de pesquisa em ciências sociais sediadas no Rio de Janeiro, como o CBPE (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais) e o Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais (CLAPCS), o último sob os auspícios da Unesco. Essa rede institucional possibilitava um intercâmbio de pesquisa e de ensino entre cientistas sociais de diferentes orientações disciplinares, metodológicas e oriundos de diversas regiões do país e mesmo de outros países, constituindo um processo de institucionalização cuja complexidade ainda está por se investigar (pelo menos em seu conjunto). Seja como for, Luciano Martins se beneficiou muitíssimo desse ambiente institucional diferenciado e, como já ressaltou Glaucia Villas Bôas (2019), foi fundamental para os seus interesses de pesquisa ao longo de sua trajetória sua vinculação ao projeto coletivo liderado no ICS por Maurício Vinhas de Queiroz sobre os grupos empresariais nacionais e estrangeiros que estavam conduzindo a industrialização no país. Como se sabe, os sociólogos de São Paulo – em especial, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, José de Souza Martins, dentre outros – acompanharam de perto os debates feitos no grupo do ICS e souberam incorporá-los em suas agendas de pesquisa sobre a industrialização do país (Lopes, 2020).

Em 1968, Luciano Martins publica Industrialização, burguesia nacional e desenvolvimento: introdução à crise brasileira, livro que teve repercussão no grande debate que agitava a discussão política a respeito do papel que teria a chamada “burguesia nacional” no processo de industrialização e de autonomização da sociedade brasileira. Parte da esquerda (tanto nacionalista quanto comunista) acreditava que a “burguesia nacional” poderia atuar como um ator político voltado à transformação social, aliando-se estrategicamente aos demais setores modernos (trabalhadores urbanos, classes médias etc.) com vistas à superação do atraso (latifúndio) e da dependência externa. Aproveitando os dados da pesquisa coletiva feita no ICS, Martins desconfiava dos diagnósticos mais otimistas, ressaltando tanto a notável dispersão, heterogeneidade e associação (às vezes estreita) com os grupos estrangeiros dos principais grupos econômicos nacionais, situação que tornava improvável uma ação coletiva organizada da “burguesa nacional” no sentido de liderar um projeto democrático de sociedade. Portanto, qualquer visão “dualista” a respeito das relações entre o “arcaico” e o “moderno” não poderia ser tomada por seu valor de face, até mesmo porque, ao nível das estruturas de poder, indústria e latifúndio não se antagonizaram, mas se associaram na exclusão da participação popular do processo político e dos benefícios do processo de modernização[1].

Olhando o conjunto da obra de Luciano Martins, faremos agora uma rápida menção a alguns de seus trabalhos mais citados, de acordo com os dados reunidos por meio do Google Scholar, atualmente o principal agregador de dados bibliométricos disponível (Martín-Martín et al., 2020). Ao todo, essa plataforma atribui à autoria de Luciano Martins aproximadamente 2.400 citações, o que reforça sua importância no debate intelectual das ciências sociais brasileiras.

O livro de maior impacto de Luciano Martins, Estado capitalista e burocracia no Brasil pós-64, lançado em 1985, enfrenta outro assunto polêmico no debate intelectual e político desde fins da década de 1970: a natureza e os sentidos da expansão da chamada “tecnocracia” no regime militar. Por meio de uma análise rigorosa da conformação dos portadores sociais dessa camada profissional, vista como um tipo sociologicamente novo, a meio caminho do administrador público e do executivo de empresas, Martins traça o surgimento desse grupo, a base material de seu poder e o significado político de suas ações e decisões, que quase sempre escapavam dos mecanismos de deliberação coletiva – num processo de “privatização do Estado” desde dentro de sua própria lógica de funcionamento. Em chave análoga, seu segundo trabalho mais citado, Pouvoir et développement économique: formation et évolution des structures politiques au Brésil, tese de doutoramento (doctorat d’État) de 1973 (e publicada em livro em 1976), dirigida por François Bourricaud, é um marco incontornável dessa agenda de pesquisa que conecta as dimensões política e econômica, em chave diacrônica, como decisivas para a análise dos processos de desenvolvimento.

Cumpre notar que obra de Luciano Martins jamais ignorou o papel e o lugar das dimensões simbólicas ao investigar as interações entre política e sociedade. Entre os seus trabalhos de maior impacto constam dois que são tomados como referência para os debates sobre cultura e política no Brasil. De um lado, “A ‘Geração AI-5’”, publicado originalmente em 1979 na revista Ensaios de Opinião (e depois republicado em 2004), discute como a ditadura militar, para além do autoritarismo político propriamente dito, também assentou as bases da naturalização de uma “cultura autoritária”, que teria selecionado formas reativas (e individualizantes) de negação do existente – e logo, politicamente pouco eficazes – por parte da juventude em formação naquele contexto, em particular nas camadas médias urbanas. De outro, o artigo “A gênese de uma intelligentsia: os intelectuais e a política no Brasil (1920 a 1940)”, saído em 1987 na Revista Brasileira de Ciências Sociais, após longa discussão crítica sobre a pertinência analítica do próprio conceito de “intelligentsia”, traz uma posição própria no debate sobre a “cooptação” dos intelectuais por parte do Estado, chamando a atenção para o momento da (difícil) constituição de um campo cultural, e das ambivalências daí decorrentes tanto em suas relações com o aparelho estatal quanto em sua (auto-)atribuída missão de reforma da sociedade.

Luciano Martins, além de ter atuado no âmbito do antigo Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Brasil (atual UFRJ), foi igualmente professor nas Universidades de Paris, de Columbia, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Sugestão de obras do autor:

Martins, L. (1986). Estado capitalista e burocracia no Brasil pós-64. RAE-Revista de Administração de Empresas, 26(2), 74-75.

Martins, L. (1976). Pouvoir et développement économique: formation et évolution des structures politiques au Brésil. Paris: Anthropos.

Martins, L. (1968). Industrialização, burguesia nacional e desenvolvimento: introdução à crise brasileira). Rio de Janeiro: Ed. Saga.

Martins, L. (1987). A gênese de uma intelligentsia: os intelectuais e a política no Brasil, 1920 a 1940. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2(4), 65-87.

Martins, L. (2004). A” Geração AI-5″: e, Maio de 68: duas manifestações intransitivas. Rio de Janeiro: Argumento Editora. 

Sobre o autor:

Bôas, G. V. (2019). 80 anos de ciências sociais na UFRJ: relembrando o pioneirismo dos projetos Grupos econômicos (1962) e Trabalhadores cariocas (1987). Sociologia & Antropologia, 9(1), 297–312. https://doi.org/10.1590/2238-38752019v9115

Faletto, E. (1969). Review of Industrializaçao, burguesia nacional e desenvolvimento [Review of Review of Industrializaçao, burguesia nacional e desenvolvimento, por L. Martins]. Estudios Internacionales, 3(1 (9)), 94–97.

Lopes, T. da C. (2020). O Instituto de Ciências Sociais e a sociologia no Rio de Janeiro: Entrevista com Alzira Alves de Abreu. Sociologia & Antropologia, 10, 299–324. https://doi.org/10.1590/2238-38752019v10112

[1] Abrindo um parêntese, cumpre dizer que essa visão mais cética a respeito do desenvolvimento e seu sentido democratizante já estava sendo articulada na agenda de pesquisa liderada por Luiz de Aguiar Costa Pinto – assistente da cadeira de Sociologia na FNFi e, em fins da década de 1950, catedrático de Sociologia na Faculdade Nacional de Ciências Econômicas da Universidade do Brasil; além de primeiro diretor do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais (CLAPCS). Parece-nos fora de dúvida que Luciano Martins também se beneficiou deste acúmulo intelectual realizado nas ciências sociais do Rio de Janeiro, rejeitando o etapismo algo otimista que informava os principais diagnósticos sobre a modernização brasileira. Para uma boa leitura deste livro de 1968, cf. a resenha de Enzo Faletto (1969).