Por Leticia Nedel(UFSC)
Fonte CPDOC-FGV-RJ
Lucia Lippi é Professora Emérita da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas e autora de uma obra cuja atualidade atravessa momentos definidores da sociologia e da pesquisa histórica produzidas no país ao longo dos últimos 50 anos. Como pesquisadora no CPDOC desde 1976, contribuiu para estabelecer e consolidar no Brasil áreas até então pouco frequentadas, como a sociologia das elites e a história contemporânea, as quais sofisticou com a argúcia auto-reflexiva característica de sua produção. Suas abordagens sobre os projetos estéticos, políticos e ideológicos das elites republicanas, sempre sensíveis às questões identitárias e marcadas por uma perspectiva processual e transdisciplinar de análise, são referência fundamental para o conhecimento do Pensamento Social Brasileiro, área que se confunde com a própria experiência de institucionalização da pesquisa social no Brasil.
Lucia Maria Lippi Oliveira nasceu em 27 de fevereiro de 1945, em Teresópolis, estado do Rio de Janeiro. Filha de uma professora primária descendente de imigrantes europeus com um funcionário dos correios procedente do interior de Minas Gerais, foi a primeira mulher da família a conquistar o diploma de curso superior. A morte prematura do pai antes que ela completasse dois anos distanciou-a do lado familiar paterno e a manteve, junto com a mãe, sob a órbita dos “Lippi”. Este era o sobrenome do avô materno, um patriarca italiano que impunha aos filhos e netos a rígida orientação católica ultramontana ditada à época pelo bispo de Petrópolis, Dom Manoel Cintra. Foi junto desse avô que Lucia reivindicou o direito de estudar no Rio de Janeiro. Queria ser engenheira. Com o patrocínio dele cursou o científico como interna do Colégio Imaculada Conceição, tradicional escola católica localizada no bairro de Botafogo. Lá viveu sua primeira aproximação com a política, ainda como um processo de conversão à esquerda cristã entre 1960 e 1962, quando passou a militar na Juventude Estudantil Católica (JEC) e desistiu de cursar engenharia. Ingressou no curso de Sociologia e Política da PUC-RJ em 1963. Uma universidade também católica, como convinha à família, com forte presença de mulheres e sobrenomes ilustres. Ali exerceu a militância na Ação Popular (AP), da qual acabou expulsa por insubordinação. Também na PUC conheceu Celina Vargas do Amaral Peixoto, futura criadora do CPDOC.
Dona de uma trajetória acadêmica singular, com ativa inserção nos debates, eventos e organizações profissionais que nas décadas de 1970 e 1980 acompanharam a expansão do ensino de pós-graduação no Brasil, Lucia não construiu carreira como professora universitária. No tempo de mestranda fez uma breve incursão como professora auxiliar de Sociologia na UFF, mas depois disso só voltou a lecionar nos anos 2000, nos cursos de graduação e pós-graduação da própria Fundação Getúlio Vargas. Nesse intervalo, trabalhou em tempo integral como pesquisadora e gestora de um centro de pesquisa – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) do qual é uma das fundadoras, junto com Celina do Amaral Peixoto, Aspásia Camargo e Alzira Abreu e que dirigiu entre 1995 e 1998. Com Ângela de Castro Gomes, Helena Bomeny, Dulce Pandolfi, Maria Celina D’Araújo e Marieta de Moraes Ferreira, ela integra o grupo de pesquisadoras que, em franco diálogo com brasilianistas estudiosos da história política brasileira recente, somaram esforços ao projeto institucional inaugurado em 1973 por Celina Vargas do Amaral Peixoto. Uma instituição sui generis, majoritariamente formada por mulheres, especializada em história contemporânea, destinada a recolher arquivos pessoais de personalidades públicas para, com base neles, realizar estudos sobre a atuação das elites políticas e intelectuais da chamada “era Vargas”. A doação do espólio documental de Getúlio Vargas pela mãe de Celina, Alzira Vargas do Amaral Peixoto, é o gesto de transmissão familiar que deu origem ao CPDOC, instituição de excelência em pesquisa, criada durante o mais violento dos governos ditatoriais instalados depois do golpe de 1964 no Brasil, que até 1985 permaneceu subordinada ao INDIPO, Instituto de Direito Público e Ciência Política. A ela cedo Lucia vinculou sua identidade acadêmica e profissional.
O convite para integrar a equipe do CPDOC foi feito em 1976, três anos após concluir o Mestrado em Ciência Política no IUPERJ, onde foi orientada por Wanderley Guilherme dos Santos na elaboração de uma dissertação sobre o PSD. Foi convidada por Celina, colega de graduação na PUC e também no curso de mestrado, para coordenar no CPDOC um projeto intitulado “Brasiliana”. Ambas haviam se aproximado por ocasião de um artigo escrito a seis mãos, com participação de Maria Aparecida Hime, para uma disciplina oferecida por Simon Schwartzman no IUPERJ. O trabalho, que versava sobre o contexto da Revolução de 1930, foi publicado na revista Dados em 1970. O projeto Brasiliana, por sua vez, tal como o Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro e o Boletim Informativo e Bibliográfico (BIB), criados respectivamente em 1974 e 1977 (este último por sugestão de Richard Morse, presidente da Fundação Ford, e do brasilianista Thomas Skidmore), expressa o forte investimento da comunidade acadêmica, das agências internacionais de fomento e do CPDOC em particular, na produção de informação bibliográfica e documental que amparasse as investigações, então em curso, sobre temas como modernização do Estado, partidos políticos e autoritarismo.
Àquela altura o CPDOC já vinha desenvolvendo seus primeiros projetos financiados pela FINEP, e com o apoio da Fundação Ford estruturava o setor de História Oral, recebia pesquisadores norte-americanos que recorriam aos arquivos e depoimentos produzidos para suas pesquisas e se beneficiava dos contatos familiares da diretora para alimentar o acervo com novos fundos de políticos com participação no movimento revolucionário de 1930 (Oswaldo Aranha, Antunes Maciel, Waldomiro Lima). Nesse contexto, o projeto Brasiliana conectava-se a outro projeto em andamento, sob coordenação de Aspásia Camargo e Ângela de Castro Gomes, que investigava regionalismo, centralização e partidos políticos na década de 1930. Este projeto, iniciado também em 1976, trilhava, como frisou Lucia, um percurso investigativo similar àquele traçado pelos brasilianistas Joseph Love, John Wirth e Robert Levine sobre São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco, quando retomaram a política desses estados durante a Primeira República. Já a ideia do Brasiliana era inventariar as interpretações da Revolução nas fontes bibliográficas da década de 1930. Em especial nas coleções, como a própria Brasiliana e a Documentos Brasileiros, que reuniram autores celebrizados como “Intérpretes do Brasil”. O projeto, cuja equipe de pesquisadores incluía autores de relevo como Mônica Pimenta Velloso e Ricardo Benzaquen de Araújo, resultou no livro Elite intelectual e debate político nos anos 30: uma bibliografia comentada, coordenado por Lucia e publicado em 1980.
Para além da sua finalidade imediata, o levantamento realizado foi importante também para identificar vazios historiográficos e definir os temas e problemas sobre os quais a sociologia histórica produzida por Lucia passaria a intervir nos anos seguintes: o estudo da igreja e dos intelectuais católicos nos anos 1920, o pensamento autoritário e o nacionalismo, as elites culturais do Estado Novo, Almir de Andrade, Guerreiro Ramos, Gilberto Freyre, a história das Ciências Sociais no Rio de Janeiro. A começar pela do Centro Latino-Americano de Pesquisa em Ciências Sociais – o CLAPCS, onde ainda em 1966 Lucia exercera pela primeira vez a profissão de socióloga. Foi também no decurso dessas pesquisas, já estando claro para a socióloga o quanto a história tinha a ganhar e oferecer à sociologia, que se consolida com a leitura de Karl Mannheim a convicção sobre a necessidade de tomar em conta o contexto e a cosmovisão dos atores históricos para se compreender a natureza “conservadora” ou “emancipatória” de seus projetos.
Os anos de 1980 seriam decisivos para consolidar a posição de Lúcia como referência bibliográfica obrigatória dos estudos sobre Revolução de 1930. Com ela, o trabalho de sociólogos, cientistas políticos, antropólogos, documentalistas e historiadores do CPDOC. A realização do seminário internacional alusivo aos 50 anos da Revolução, no qual se fizeram presentes as maiores autoridades nacionais e internacionais do assunto, foi um passo decisivo nessa direção. Como disse Lucia ao rever alguns marcos dessa trajetória, o livro de Boris Fausto abriu um caminho trilhado pelo CPDOC ao longo da década de 1980: as relações entre os entes federativos do país como chave de análise dos movimentos revolucionários daquela década. O seminário mostrou a pujança dos resultados, mais tarde publicados no livro A Revolução de 30. Seminário Internacional (UnB, 1993).
Ao apresentar à comunidade intelectual da época os rendosos frutos da pesquisa associada à documentação, o seminário estendeu as redes de inserção dos pesquisadores do CPDOC e impulsionou suas trocas acadêmicas, especialmente com a comunidade de historiadores, que até ali nutria reservas em relação aos recortes temporal, temático, teórico e documental das investigações. As desconfianças voltavam-se à história política, rechaçada no passado recente da disciplina; à sua interpretação do ângulo da sociologia das elites, acusada de compactuar com a ideologia dos vencedores, à base documental das análises, fontes tidas por subjetivas e, para completar, a quem apoiara os trabalhos do CPDOC, brasilianistas que no contexto repressivo da ditadura foram muitas vezes reputados empiristas e imperialistas. Aos poucos essas reservas cederam passo à contribuição substantiva daqueles estudos. Segundo Lucia, a maior delas foi retomar a questão regional para reinterpretá-la à luz de novos referenciais, formulados no interior de um debate francamente interdisciplinar. Não terá sido casual, sob esse aspecto, que a revista Estudos Históricos, lançada em 1987 com editoria de Lucia Lippi, Ângela de Castro Gomes e Gerson Moura, tenha se consolidado como uma das mais importantes referências na área de História.
Os anos imediatamente anteriores à criação da revista Lucia passara dividindo seu tempo entre o CPDOC e o doutorado em Sociologia da USP. Ali defendeu em 1986 a tese intitulada “Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Brasil: um estudo sobre o nacionalismo”, orientada por Gabriel Cohn. A tese, publicada pela editora Brasiliense em 1990 com o título “A Questão Nacional na Primeira República”, opera uma escansão da cronologia fixada como referência no Brasiliana. Os fundamentos socioculturais, políticos e ideológicos do nacionalismo brasileiro, processo ao qual se articulam as tensões entre modernidade e tradição subjacentes aos projetos civilizadores das elites letradas são esmiuçados desde o início do regime republicano. Ao mesmo tempo, e na medida em que a constituição imaginária da nação compreende processos multiescalares, multifacetados e não lineares, Lucia vai perseguir nas décadas seguintes os desdobramentos heurísticos do fenômeno identitário. Sintonizada com a nova ordem jurídica, política e societária instaurada pela constituição de 1988, sua sensibilidade de pesquisadora dirige-se mais uma vez a questões clássicas, observadas sob novos prismas: a relação especular Brasil-Estados Unidos, as identidades imigrantes, os agentes, instituições e políticas de salvaguarda do patrimônio, a memória das cidades e do urbanismo no Rio de Janeiro.
As décadas de 1990 e 2000, pródigas em publicações, também o são em intercâmbios. Especialmente com a Unicamp, onde Lucia passa a compor assiduamente bancas e seminários; com os Estados Unidos, onde realiza pós-doutoramento entre 1992 e 1993, com acadêmicos de diferentes estados e universidades, orientados por sua produção escrita. Sem mencionar os contatos e conexões institucionais abertos pela editoria da Estudos Históricos e a participação como autora, avaliadora, debatedora e palestrante em congressos e organizações, a exemplo da SBS e ANPOCS, onde ajudou a fundar o celebrizado GT de Pensamento Social no Brasil.
A série de livros e artigos publicados nesse período testemunha um capítulo pujante da história da pesquisa produzida no Brasil. Eram tempos de abertura historiográfica, em que a diversificação das linhas de investigação e a mudança dos pressupostos de análise desafiavam a legitimidade heurística das metanarrativas. A produção de Lucia, para quem a política já se revelava desde antes articulada, mas nunca determinada pela ação estrutural das forças econômicas, manteve-se na vanguarda desse movimento. Quando se buscam retrospectivamente os enlaces de sua trajetória de vida com o vasto repertório das pesquisas realizadas sobressai como primeira evidência a abertura desde cedo manifesta ao simbolismo enquanto dimensão instituidora da vida social, a ênfase desviada das estruturas em direção às redes, das determinações sistêmicas às experiências singulares dos atores. Para ela, talvez a maior novidade tenha sido menos as inovações de método que a retomada da atividade docente. Como professora da Escola de Ciências Sociais da FGV e do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do CPDOC desde 2003, Lucia renova cotidianamente o seu convite à reflexão, oferecendo aos jovens instrumentos refinados para compreensão de um mundo de inesgotável complexidade.
Sugestões de obras da autora:
FRANCO, Celina do Amaral Moreira; OLIVEIRA, Lúcia Lippi; HIME, Maria Aparecida Alves. (1970), “O Contexto Político da Revolução de Trinta”. DADOS, no 7, pp. 118-136.
CPDOC 30 anos / Textos de Célia Camargo… [et al]. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 2003. 192 p.
GOMES, Ângela, PANDOLFI, D. BOMENY, H (orgs). Regionalismo e Centralização Política: Partido e Constituinte nos Anos 30. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
OLIVEIRA, Lucia Lippi; GOMES, Angela Maria de Castro e VELOSO, Mônica Pimenta. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, pp. 31-47.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPq, 1990.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. A Sociologia do Guerreiro. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. (1995), “As ciências no Rio de Janeiro”. In: MICELI, S. (org.), História das ciências sociais no Brasil, vol. 2, São Paulo, 1995.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. Americanos: representações da identidade nacional no Brasil e nos EUA. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. O Brasil dos Imigrantes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. Americanos: representação da identidade nacional no Brasil e nos EUA. Belo Horizonte: UFMG, 2000, pp.47-67.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. Nós e Eles: relações culturais entre Brasileiros e Imigrantes. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. Cultura é Patrimônio: um guia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. “Gilberto Freyre e a valorização da província”. Sociedade & Estado. Vol. 26, nº 1, jan/abril, 2011, pp. 117-149.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. “Lembranças e Histórias: como é possível homenagear Elide Rugai Bastos? Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social. https://blogbvps.wordpress.com/2018/03/21/lembrancas-e-historias-como-e-possivel-homenagear-elide-rugai-bastos-por-lucia-lippi-oliveira-cpdoc-fgv/
Sobre a autora:
BUARQUE, Bernardo. “Socióloga com Olhar Histórico ou Historiadora com Perspectiva Sociológica? Uma Leitura Prospectiva da Obra de Lucia Lippi”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 29, no 58, p. 551-564, maio-agosto 2016.
BRAGA, Vanuza Moreira. “Entrevista de Lucia Lippi”. Revista Mosaico, Rio de Janeiro, vol. 4, no. 7, 2013.
HEYMANN, Luciana. “Pioneiras e construtoras: breve nota sobre a contribuição de Angela de Castro Gomes e Lucia Lippi Oliveira à trajetória do CPDOC.” Estudos Históricos Rio de Janeiro, vol. 29, no 58, p. 541-550, maio-agosto 2016.
OLIVEIRA, Lúcia Maria Lippi. Lúcia Maria Lippi Oliveira II (depoimento, 2009 / 2010). Rio de Janeiro, CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), (8h 20min).