Por Flávio Munhoz Sofiati (UFG)
Um sociólogo da religião uspiano
Lísias Nogueira Negrão (1945-2015) foi um sociólogo da religião formado pela USP. Fez na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas a graduação em ciências sociais (1967), especialização em ciências sociais (1969) e doutorado em sociologia (1973). Nasceu em Araraquara-SP, mas mudou-se ainda na infância para São Paulo onde passou a maior parte de sua vida.
Teve uma carreira de aproximadamente 40 anos na referida universidade, com breves passagens como professor visitante por instituições do Nordeste: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 1977, e Universidade Federal de Alagoas, em 1986-1987. Coordenou o Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro após a morte do amigo e colega. Fez parte dos conselhos (de redação e editorial) da revista Religião e Sociedade e participou de diversas atividades promovidas pelo ISER. Em 1993, obteve o título de livre-docente com a sua pesquisa sobre a umbanda e, em 2003, foi aprovado como professor titular no Departamento de Sociologia da USP.
Durante as décadas de 1980 e 1990, coordenou vários Grupos de Trabalho sobre religião nos encontros da ANPOCS – Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais. Sua última participação no evento ocorreu em uma mesa redonda que coordenou no 31o Encontro Anual, em 2007, intitulada “O fenômeno religioso: experiências internacionais comparadas”. Lísias Nogueira Negrão também fez parte da ACSRM – Associação de Cientistas Sociais da Religião do Mercosul de 1998 a 2003.
Influenciado por Duglas Teixeira Monteiro e orientado por Maria Isaura Pereira de Queiroz, desenvolveu pesquisas sobre o messianismo. Todavia, pensou prioritariamente o messianismo urbano presente nas modernas sociedades industriais – ou os novos movimentos messiânico-milenaristas brasileiros – tendo a sociologia compreensiva alemã, principalmente Max Weber, como referência teórica fundamental. Todavia, em todas as suas pesquisas soube aplicar criticamente as noções weberianas, complementadas com a literatura produzida no país e seus trabalhos de campo, percebendo que o campo religioso brasileiro não era nem um caso radical de encantamento, nem um exemplo de modelo totalmente secularizado. Negrão mostrou que, apesar da tendência a tornar-se cada vez mais escasso no ambiente das grandes cidades, o messianismo-milenarismo não era expressão exclusiva de sociedades tradicionais (ou rurais), havendo compatibilidade entre este fenômeno e o mundo moderno. Em um de seus últimos escritos sobre o tema, faz uma afirmação surpreendentemente atual:
“Como profecia final, devemos estar preparados para o surgimento de novos movimentos nos centros urbanos, orientados não mais por visões religiosas específicas, mas por perspectivas ecléticas e plurais, introduzindo elementos do imaginário da vida moderna de alguma forma ligados a antigas tradições ocultistas e esotéricas. O pluralismo religioso e a difusão pela mídia das mais variadas práticas religiosas e sistemas alternativos de conhecimento criam um caldo de cultura místico capaz de produzir os mais surpreendentes resultados” (NEGRÃO, 2001, p. 128).
Lísias Nogueira Negrão também produziu um amplo estudo acerca da umbanda. Ele utiliza o termo “afro-brasileiras” para se referir às religiões de matrizes-africanas e produz um inventário denso acerca do campo umbandista paulista. Seus estudos sobre o tema evidenciaram as contradições e rupturas da umbanda, expressas em suas complexas diversificações. O autor entendia que cada terreiro possui sua própria “idiossincrasia” em virtude da incorporação de um conjunto diferenciado de influências religiosas, principalmente de três polos formadores: o catolicismo, o kardecismo e o candomblé. Diante disso, seu exercício analítico culminou em uma caracterização da composição social dos terreiros que possibilitaram entender a formação e constituição do campo umbandista paulista. Lísias Nogueira Negrão compreendia que havia uma “ética pragmática” na umbanda que permitia sua permeabilidade na sociedade brasileira urbanizada.
Os últimos estudos de Negrão tiveram como foco de análise o tema das múltiplas filiações religiosas do Brasil contemporâneo. Ele estudou os mais variados percursos religiosos e hibridismos do cenário religioso, encontrando novas formas de duplicidade religiosa, entre elas, católica-protestante e católica-religiões orientais (como, por exemplo, as novas religiões japonesas), além das duplicidades clássicas: católica-afro-brasileiras e católica-espírita. Negrão inferiu acerca das mais variadas seleções, fusões e mutações das religiões na atualidade e constatou que as dinâmicas contemporâneas do campo religioso levam a uma aproximação com práticas religiosas individualizadas e solitárias, em detrimento das vivências religiosas sacramentais e eclesiais.
Além de contribuir para o desenvolvimento das temáticas tratadas, os três grandes estudos de Lísias Nogueira Negrão colaboram com a avaliação da validade do paradigma da secularização para o caso brasileiro, mostrando que não há um modelo único de modernidade. Seus estudos evidenciam as controvérsias desse fenômeno no país, permeando os caminhos que mais recentemente foram percorridos por Peter Berger que anunciou, em um de seus últimos livros, a necessidade de um novo paradigma para se pensar as religiões na contemporaneidade: o paradigma do pluralismo religioso.
Lísias Nogueira Negrão aposentou-se na USP em 2009 e passou os últimos anos de vida encruzilhando outros caminhos para além do acadêmico. Disse-me em uma ocasião que era tempo de experimentar outras possibilidades, enfrentar novas jornadas. Quem o conheceu pôde testemunhar sua cordialidade frente às relações estabelecidas na academia, sua capacidade de conviver com as diferenças e sua sofisticada performance nos debates acerca das interpretações que tratam da função social das religiões e das práticas religiosas no contexto presente.
Sugestões de obras do autor
Negrão, Lísias Nogueira (org.). (2009). Novas tramas do sagrado: trajetórias e multiplicidades. São Paulo: EDUSP.
Negrão, Lísias Nogueira. (2005). Nem “jardim encantado”, nem “clube dos intelectuais desencantados”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 20(59), 23-36. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-69092005000300002
Negrão, Lísias Nogueira. (2001). Revisitando o messianismo no Brasil e profetizando seu futuro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 16(46), 119-129. https://doi.org/10.1590/S0102-69092001000200006
Negrão, Lísias Nogueira. (1997). Refazendo antigas e urdindo novas tramas: trajetórias do sagrado. Religião e Sociedade, 18/2, p. 63-74.
Negrão, Lísias Nogueira. (1996). Entre a cruz e a encruzilhada: formação do campo umbandista em São Paulo. São Paulo: EDUSP.
Negrão, Lísias Nogueira & Consorte, Josildeth Gomes. (1984). O Messianismo no Brasil Contemporâneo. São Paulo: FFLCH/USP-CER.