Leôncio Martins Rodrigues

Por Iram Jácome Rodrigues (USP) e Marco Aurélio Santana (UFRJ)

Uma sociologia política das classes trabalhadoras e do sindicalismo

Leôncio Martins Rodrigues foi, juntamente com Azis Simão, Juarez Brandão Lopes, José Albertino Rodrigues e Evaristo de Moraes, um dos pais fundadores da sociologia do trabalho no Brasil, tendo transcendido no tempo essa primeira geração de pioneiros, com uma produção que se estendeu por várias décadas. Neste sentido, teve papel destacado na constituição e no desenvolvimento deste campo de pesquisa no país.

Nascido em 21 de janeiro de 1934, na cidade de São Paulo, faleceu nesta capital no dia 3 de maio de 2021, aos 87 anos. Concluiu o bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), em 1962. Também na USP, obteve os títulos de mestre (1964), doutor (1967) e Livre-Docência (1972). Ali integrou o Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT) e colaborou com a famosa “Cadeira de Sociologia I” regida por Florestan Fernandes, seu orientador e por quem guardou respeito e admiração por toda a vida. Em 1981, se tornou Professor Titular de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde se aposentou. Posteriormente, passou a trabalhar no departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
No que diz respeito à participação em centros de pesquisas e associações científicas, Leôncio foi também bastante ativo ao longo de sua trajetória. Além de sua participação no CESIT, esteve, em 1969, junto ao primeiro grupo de pesquisadores do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e, depois, do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC). Com um humor aguçado, sempre instigante e provocador de bons debates, Leôncio formou um conjunto importante de pesquisadores.

Em 2005, foi eleito para a Academia Brasileira de Ciências (ABC). Por sua contribuição à sociologia brasileira, em 2009, foi agraciado pela Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) com o prêmio Florestan Fernandes e, em 2015, com o prêmio de Excelência Acadêmica Antônio Flávio Pierucci, da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Ciência Sociais (ANPOCS). Teve forte engajamento também na Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e na Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais (ANPOCS).

Ainda que tenha se distanciado de seu engajamento político de militante trotskista em seu período de formação nos anos 1950, Leôncio sempre teve na política o eixo de suas preocupações, desde o primeiro momento, em seus estudos sobre o mundo do trabalho, os sindicatos, os partidos e os movimentos da classe trabalhadora. Assim, a trajetória das esquerdas propriamente ditas e suas vinculações com o mundo do trabalho estiveram de forma constante na mira de Leôncio, como em seu trabalho sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB), no qual se cruzam as perspectivas sociológica e histórica. Essa preocupação fica explícita mesmo em momento posterior de sua carreira, quando ele se dedicou aos estudos de partidos, eleições e formas de recrutamento partidário. Deve-se dizer, neste sentido, que ele foi responsável também pelo desenvolvimento dos estudos do trabalho na área de ciência política em nosso país.

Na sociologia do trabalho, no conjunto de investigações que remontam à primeira geração de estudos do trabalho no Brasil, deixou a sua marca produzindo obras que se tornaram clássicos, tais como Conflito industrial e sindicalismo no Brasil (1966); Industrialização e atitudes operárias (1970); e Trabalhadores, sindicatos e industrialização (1974), resultados, respectivamente, de sua dissertação de mestrado, tese de doutorado e Livre-Docência. Poderíamos destacar, ainda, Partidos e Sindicatos: escritos de sociologia e política (1990); CUT: os militantes e a ideologia (1990) e Destino do Sindicalismo (1999).

Na introdução de seu primeiro livro – Conflito industrial e sindicalismo no Brasil –, Leôncio observa que “o comportamento operário não se reduz aos conflitos fabris, mas se situa no plano da sociedade global. Implica aspirações, objetivos, formas organizatórias, concepções ideológicas e doutrinárias, lutas políticas e violência”. Neste estudo, já está presente grande parte das questões teórico-metodológicas que o acompanharão em toda a sua trajetória intelectual tendo um lugar especial no conjunto de sua obra: foi uma espécie de programa de pesquisa que o acompanhou em suas reflexões sobre classe trabalhadora e sindicalismo, além de explicitar também as suas influências políticas e teóricas, advindas da militância política. Isso fica claro nesta passagem: “amiúde falamos de ‘dois brasis’ como se tivéssemos sempre, em compartimentos estanques, uma estrutura social arcaica e outra moderna, como se essas estruturas não se interpenetrassem, não coexistissem lado a lado, no tempo e no espaço, sempre presentes, como se os fenômenos sociais típicos de uma organização social patrimonialista não se revelassem, constantemente, no chamado Brasil moderno. É esse processo de desenvolvimento combinado que se consubstancia na dualidade estrutural básica de nossa sociedade que torna mais complexa, contraditória e singular a conduta política e social do proletariado brasileiro” (1966:37).

O estudo sobre os operários da indústria automobilística, publicado em 1970 – Industrialização e atitudes operárias –, fruto de investigação realizada em 1963, na maior empresa deste setor, à época, foi um marco no âmbito da sociologia do trabalho no Brasil e a primeira investigação sobre a classe trabalhadora em uma grande empresa multinacional em nosso país. Nesta obra, discorrendo sobre a expansão da atividade industrial a partir dos anos 1950, analisa a trajetória daqueles segmentos que vieram com o processo de industrialização, bem como sua importância política. A nova classe operária das grandes empresas, em particular, do setor automotivo, sublinhando a importância do “estudo das condutas desses grupos, que a industrialização trouxe para a arena da vida política e social se confundiria com a própria análise da formação da sociedade moderna no Brasil e suas possibilidades e formas futuras de expansão”. Ao mesmo tempo, Leôncio se propôs investigar as orientações políticas, os valores e expectativas “no âmbito mais restrito” – vale dizer, no espaço micro, no âmbito da empresa, que balizariam as reivindicações destes operários “ante a sociedade global e os poderes instituídos”, entre outros aspectos.

Esse estudo representa uma fotografia de um momento singular da construção do campo da sociologia do trabalho, de um lado e, de outro, das condições do processo de industrialização no país, da migração do campo para a cidade, do processo de urbanização e das novas condições postas pela sociedade urbano-industrial. Sobre esta obra, ele mesmo afirmava que as influências mais fortes vieram de Alain Touraine e Juarez Brandão Lopes.

Importante assinalar que a despeito do conhecimento enciclopédico da literatura nacional e internacional sobre os temas que estudava e pesquisava, Leôncio considerava também fundamental deixar que os “dados falassem”. Em outras palavras, havia uma preocupação com a realidade tal qual se apresentava e não como gostaríamos que fosse. Exemplos, nesse sentido, são a primeira pesquisa sobre a classe trabalhadora na indústria automobilística em nosso país, de 1963, e a investigação realizada no III Congresso da Central Única dos Trabalhadores (CONCUT), de 1988, em Belo Horizonte. Resultado desta última, CUT: os militantes e a ideologia, é possível assinalar um momento crucial vivido pelo país diante da forte participação dos trabalhadores e do sindicalismo após o maior período de greves visto até então (1978-1988), que impactou a reorganização do movimento sindical e sua influência na esfera política.

Ao analisar as resultantes da maior pesquisa já realizada no âmbito do mundo do trabalho – um survey com um universo de mais de 6 mil participantes no Congresso da CUT, que criaria uma tradição neste tipo de investigação –, Leôncio discorre sobre o militante sindical cutista, as diferentes posições das tendências políticas no interior desta central e as teses que foram debatidas no congresso. Examinou as diferenças entre a representatividade dos trabalhadores rurais com ampla participação na base, mas com pouca inserção na direção, em contraposição aos sindicalistas do setor urbano. Destacou, ainda, as tendências políticas no interior da CUT, suas divergências, suas visões sobre a ação sindical e, grosso modo, a divisão do conclave entre um grupo que defendia uma postura de tipo social-democrata, contratualista, e outro que advogava uma posição revolucionária, socialista.

O livro procurou dar conta da novidade que representava, mais uma vez, a entrada na cena pública da classe trabalhadora e da reorganização do sindicalismo no Brasil pós-1964. Diante do quadro político, econômico e social do final dos anos 1980, Leôncio observa que “a CUT, como todas as demais instituições da sociedade brasileira, sofrerá os impactos de uma próxima década carregada de incertezas. Para sobreviver numa situação de mudanças, as instituições necessitam aumentar sua capacidade de adaptação […]. Nas condições atuais, isso significa menos dogmatismo e mais pragmatismo” (1990:97). Leôncio replicaria ainda esse tipo de estudo com a Força Sindical, buscando o outro lado do espectro do sindicalismo que também se reorganizava.

Leôncio Martins Rodrigues foi um dos mais profícuos pesquisadores da área da Sociologia do Trabalho no Brasil, tendo publicado alguns dos mais importantes estudos sobre sindicalismo; greves; classe operária e industrialização; classes trabalhadoras; centrais sindicais, entre outros. Um dos precursores neste campo, sua contribuição foi fundamental para a Sociologia do Trabalho, bem como para a compreensão das classes trabalhadores e suas relações com a empresa, o sindicato, as instituições políticas, a sociedade e o Estado.

Rodrigues foi um estudioso que acompanhou de forma ativa, em sua obra, as grandes mudanças em nosso país: os anos 1950 e 1960 e o processo de industrialização; o período da ditadura militar e a redemocratização; o processo de emergência do movimento operário e do sindicalismo no período dos anos 1970-1980; a Constituinte de 1988; o surgimento das novas elites “plebeias”, seja através das lutas operárias e sindicais, seja pela via da ascensão das confissões religiosas neopentecostais. E, de certa forma, seus estudos tanto no âmbito da sociologia do trabalho quanto da ciência política e, neste caso, especialmente, os estudos sobre partidos políticos, refletem e procuram explicar a participação de amplos contingentes das classes populares em nosso país e sua relação com o processo de redemocratização da sociedade brasileira que se abre com a Constituição de 1988.

Em um primeiro momento, o processo de industrialização; a migração do campo para a cidade, tema recorrente na nascente sociologia do trabalho no Brasil; o protagonismo do sindicalismo e seus atores com os estudos sobre a Central Única dos Trabalhadores e a Força Sindical e, por fim, a crise vivida pela instituição sindical no âmbito internacional – quando este processo ainda não era visível no Brasil. Com a sua obra mais madura, Destino do Sindicalismo (1999), considerada por ele seu trabalho mais completo, traz uma aguda reflexão sobre o sindicalismo nas sociedades capitalistas mais industrializadas, em um momento em que a ação sindical já não mostrava a pujança do período anterior e, nesse sentido, na contramão de grande parte da bibliografia sobre sindicalismo, à época. Analisando as taxas de sindicalização nos países da Europa, Estados Unidos e Canadá, número de greves e outros indicadores, Leôncio realiza, com a leitura aprofundada de vasta bibliografia, um amplo estudo sobre o sindicalismo no final do século XX. Este estudo, a despeito de analisar os principais aspectos relacionados ao mundo do trabalho e à ação sindical é, fundamentalmente, uma análise arguta da sociedade, da política e das relações entre sindicalismo e Estado na segunda metade do século XX, representando o fechamento do ciclo iniciado em 1963 com Conflito Industrial e Sindicalismo no Brasil.

Leôncio Martins Rodrigues foi um intelectual que colocou questões centrais e provocativas, que nem sempre eram consensuais no campo ao tempo de suas formulações, alimentando debates e abrindo sendas de possibilidades analíticas até então ausentes do horizonte. Um intelectual que percebia, para além dos epifenômenos, a tessitura das transformações no mundo do trabalho, na sociedade e na política, como expressões de embates, contradições, tensões e ambiguidades onde a ideologia e, por essa razão, os valores, também desempenham papel importante na vida das pessoas, dos grupos e classes sociais enfim, na conduta humana e que, ao mesmo tempo, esses processos estão ancorados nos interesses materiais.

Sugestões de obras do autor:

Destino do Sindicalismo, São Paulo: Edusp, 1999, 335 p.

Força Sindical – uma análise sócio-política. Com Adalberto Cardoso. São Paulo: Paz e Terra, 1993, 172 p.

CUT: os militantes e a ideologia. São Paulo: Paz e Terra, 1990, 143 p.

Partidos e Sindicatos: escritos de sociologia e política. São Paulo: Editora Ática, 1990, 151 p.

“O PCB: os dirigentes e a organização”. In: Boris Fausto (Org.). História Geral da Civilização Brasileira – III – O Brasil Republicano: sociedade e política (1930-1964). São Paulo: Difel, 2ª edição, 1983, p. 361-443.

Trabalhadores, sindicatos e industrialização. São Paulo: Brasiliense, 1974, 159 p.

Industrialização e atitudes operárias. São Paulo: Brasiliense, 1970, 217 p.

Sindicalismo e Sociedade (Org.). São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968, 360 p.

Conflito industrial e sindicalismo no Brasil. São Paulo, 1966, 222 p.

Sobre o autor:

Rodrigues, Leôncio Martins. Entrevista. Memórias das Ciências Sociais no Brasil. CPDOC-FGV – https://cpdoc.fgv.br/entrevistados/leoncio-martins-rodrigues?pesquisa-conhecimento=266