Por Pedro P. Ferreira (Unicamp)
Certa vez o sociólogo brasileiro – Chico de Oliveira – disse, sobre Laymert Garcia dos Santos: “aquilo que ele produz é quase grego, é preciso ouvir com muita atenção para entender o que ele está dizendo”. (in Maciel e Freitas 2013:281) De fato, aqueles de nós que já presenciamos algumas aulas ou palestras suas devemos nos lembrar do típico momento em que ele pergunta a seu público, como que para testar o funcionamento do canal de comunicação, mas também para nos convidar a embarcar na viagem que ele está propondo: “dá pra entender o que eu estou falando?” Muitas vezes, Laymert é chamado de “pessimista”, por jogar sua forte luz sobre os problemas cruciais de nossa contemporaneidade (não apenas em textos acadêmicos, mas também nas suas dezenas de publicações em jornais, revistas e outros veículos de ampla circulação), ao que ele sempre responde: “não sou pessimista, sou realista”. E nada me parece mais realista do que suas perspectivas críticas com relação à “esquerda” – por raramente ter conseguido pensar de fato a tecnologia –, à modernidade – por sua surdez à humanidade fundamental dos povos tradicionais da Terra – e ao Brasil em particular – por ainda não encarar de frente seu double bind fundante, magistralmente expresso na sua versão para a torção antropofágica do dilema shakespeareano (Hamlet): “tupi and not tupi”.
Desde sua graduação em Comunicação Social (Jornalismo) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1969, Laymert já vinha investigando a problemática comunicacional da mediação tecnoestética na individuação coletiva, algo que se estendeu ao seu mestrado em Sociologie des Sociétés Industrielles na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em 1975 (sob orientação de Gérard Métayer e intitulado Les rapports entre télédistribution et téléinformatique: bilan de l’évotution du probleme dans le monde des idées et réalisations), e se aprofundou em seu doutorado em Sciences de l’Information na Université de Paris VII – Université Denis Diderot, em 1980 (sob orientação de Armand Mattelart e intitulado Les dérèglements de la rationalité; publicado no Brasil em 1981 como Desregulagens: educação, planejamento e tecnologia como ferramenta social). Durante esses 10 anos de estudo, pesquisa e trabalho na França, Laymert pôde acompanhar presencialmente cursos de Michel Foucault e de Gilles Deleuze, e estudou as obras desses e outros filósofos franceses (com destaque para Henri Bergson e Gilbert Simondon) que nunca mais deixaram de figurar em seus escritos.
Quando retornou ao Brasil em 1981, Laymert passou a lecionar na Faculdade de Educação (FE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), após curtas passagens como docente pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pela Pontífica Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Naquele momento, as publicações de Laymert desenvolviam principalmente (mas não apenas) uma perspectiva crítica, fortemente influenciada pelas ideias de Bergson, Simondon e Deleuze, sobre os usos educacionais e culturais de tecnologias da informação. Em 1982, Laymert publicou uma importante tradução bilíngue de Le discours de la servitude volontaire, de Etienne de La Boétie, com comentários de Pierre Clastres, Claude Lefort e Marilena Chauí. Nesse mesmo ano, se aproximou de Félix Guattari quando este visitou o país, acompanhando-o em diversas atividades e realizando uma entrevista com ele enquanto o levava, em seu automóvel, entre um compromisso e outro – naquilo que o sociólogo descreveu como um “dispositivo de humanos e máquinas que pudesse liberar os afetos e fazer da entrevista um verdadeiro agenciamento maquínico” (Garcia dos Santos 2016:14). Além disso, Laymert contribuiu decisivamente para a publicação imediata, ainda em 1982, de uma entrevista que Guattari realizou com Luiz Inácio “Lula” da Silva – que concorria pela primeira vez a um cargo público (o governo do Estado de São Paulo) pelo recém-criado Partido dos Trabalhadores (PT) –, intitulada Félix Guattari entrevista Lula. Naquele momento, importava para Laymert “pensar os deslocamentos e diferenças que a própria fidelidade aos conceitos dessa filosofia [de Deleuze e Guattari] exigiam, quando apropriados a partir do Brasil” (Garcia dos Santos 2016:14), algo que se refletiu em sua produção da época, em parte reunida em seu livro Tempo de ensaio, de 1989.
O estágio pós-doutoral de Laymert na Universidade de Oxford em 1992-3 (como “Sérgio Buarque de Holanda Visiting Fellow” no St. Antony’s College) marcou, a meu ver, sua transição, do campo das telecomunicações num sentido mais amplo, para o da Sociologia da Tecnologia num sentido mais específico – uma diferença na verdade sutil, mas institucionalmente importante, e sobre a qual ele uma vez comentou:
“Sempre tive grande dificuldade para dizer o que fazia […]. Um belo dia, quando cheguei na Inglaterra como professor visitante em 1992, [o sociólogo português] Hermínio Martins falou: ‘o que você faz é Sociologia da Tecnologia’. A partir daí, adotei este rótulo.” (Laymert Garcia dos Santos in CTeMe 2005:162)
Essa redefinição de Laymert no campo da sociologia da tecnologia, confirmada pela sua transferência para o Departamento de Sociologia (DS) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp em 1994, foi marcada pela problemática socioambiental, trabalhada por ele em um contexto de “predação hi-tech” e racionalidade neoliberal. Um bom exemplo deste novo momento da trajetória de Laymert foi sua aproximação do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC). Em seus primeiros anos no DS/IFCH, Laymert desenvolveu uma abordagem própria para a problemática socioambiental, articulando de maneira original: um acompanhamento atento e criterioso dos avanços tecnocientíficos nos campos da informática e da genética (biotecnologia); uma sensibilidade e aptidão notáveis para traduzir sociologicamente debates e proposições oriundas da filosofia e do mundo das artes; e um engajamento direto e consistente com a tecnoestética e a cosmopolítica do povo indígena Yanomami. Com relação a este último ponto, cabe mencionar aqui o seu intenso engajamento, durante os anos 1990, na Comissão Índios no Brasil, na Comissão Pró-Yanomami (CCPY) – em especial na pessoa de Davi Kopenawa – e no Instituto Socioambiental (ISA). Recusando simultaneamente três grandes divisores que tipicamente marcam o pensamento ocidental (entre teoria e prática, primitivos e modernos e arte e ciência), neste período Laymert produziu conhecimento sociológico que não opõe, antes articula teórica e praticamente: arte, tecnologia, ciência e xamanismo. Uma boa amostra de sua produção durante esse período foi reunida em Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética, de 2003.
Em 2003 Laymert me acompanhou na criação do Grupo de Pesquisa Conhecimento, Tecnologia e Mercado (CTeMe). Durante pouco mais de dez anos, o grupo ofereceu um contexto para que uma dezena de pós-graduandos do IFCH pudesse se reunir para debater, com o professor, textos e outros materiais ligados às suas pesquisas, além de realizar coautorias, publicações, eventos e encontros acadêmicos. Nessa altura, porém, Laymert parecia estar já passando por uma nova inflexão em sua trajetória. Apesar de extremamente ativo no mundo acadêmico como pesquisador produtivo, orientador de dezenas de mestrados e doutorados e professor na graduação e na pós (e até chefe de departamento!), Laymert foi, ao longo dos anos 2000, se voltando cada vez mais para além das Ciências Sociais, e envolvendo-se com os aspectos tecnoestéticos e cosmopolíticos da crise socioambiental global. Foi nesse novo contexto que ele dividiu com Cynthia Morrison-Bell a curadoria da exposição coletiva Citizens no Pitzhanger Manor Museum (Londres, UK) em 2005; foi convidado pelo então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, para integrar o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC/MinC), em 2007; participou da exposição Futuro do Pretérito de Rubens Mano no Museu Nacional da República (Brasília, DF), em 2010; e foi Diretor da Fundação Bienal de São Paulo entre 2009 e 2010.
Em especial na segunda metade da década de 2000, Laymert se envolveu intensamente em uma colaboração cruzada com xamãs yanomami, pesquisadores das mais diversas áreas e artistas brasileiros e europeus na realização de encontros e viagens ligadas à composição da Ópera Multimídia Amazonas – apresentada em 2010 na Alemanha e no Brasil, e cuja concepção artística o sociólogo dividiu com os artistas Peter Ruzicka e Peter Weibel. Essa colaboração culminou, em 2011, num importante encontro de 40 xamãs yanomami na comunidade Watoriki (Demini, localizada no Estado brasileiro de Roraima), matéria prima do filme Xapiri – lançado em 2012, e cuja direção Laymert dividiu com Bruce Albert, Stella Senra, Leandro Lima e Gisela Motta. Foi ainda em 2011 que Laymert ministrou sua última disciplina IFCH/Unicamp, dedicada totalmente às obras de Gilbert Simondon (cf. Garcia dos Santos 2022), retirando-se depois disso para licenças e aposentadoria em 2012.
Desde sua aposentadoria, Laymert tem se dedicado sobretudo ao mundo das artes: realizou, em 2014, a curadoria da exposição Lorenzato, a grandeza da modéstia (Galeria Estação, São Paulo) e lançou, em 2019, o livro Às voltas com Lautréamont. Também tem sido notável sua voz ativa nas discussões políticas sobre cultura e tecnologia, em particular na resistência à revoltante escalada do fascismo no Brasil desde o golpe de 2016. Recentemente entrevistado para a terceira temporada da série Amigos, Sons e Palavras de Gilberto Gil (2023), Laymert continua causando forte impressão em seguidas gerações de pesquisadores, para muito além das Ciências Sociais.
Sugestões de obras do autor:
GARCIA DOS SANTOS, Laymert. 2023. L (site do Laymert). Acessível https://www.laymert.com.br/
__________. 2013. Amazônia transcultural: xamanismo e tecnociência na ópera/Transcultural Amazonas: shamanism and technoscience in the opera. São Paulo: N-1.
__________. 2003. Politizar as novas tecnologias: impacto sócio-técnico da informação digital e genética. São Paulo: Ed.34.
__________. 2003. A informação após a virada cibernética. In: Laymert Garcia dos Santos; Maria R. Kehl; Bernardo Kucinski; Walter Pinheiro. Revolução tecnológica, internet e socialismo. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, pp.9-33.
__________. 2001. Drucksache N.F.6. International Heiner Muller Gesellschaft. Dusseldorf: Richert Verlag.
__________. 1989. Tempo de ensaio. São Paulo: Companhia das Letras.
__________. 1982. Alienação e capitalismo. São Paulo, Brasiliense.
__________. 1981. Desregulagens: educação, planejamento e tecnologia como ferramenta social. São Paulo, Brasiliense.
Sobre o autor:
AMADEU, Sergio. 2021. Novos cercamentos digitais. Tecnopolítica 101, 27/07/2021. Acessível em: https://www.youtube.com/watch?v=DUv5qtsIm-M
CTeMe. 2005. Demasiadamente pós-humano: entrevista com Laymert Garcia dos Santos. Novos Estudos CEBRAP 72:161-75.
FARIA, Glauco; CARVALHO, Igor. 2013. É preciso entender as redes e as ruas. Fórum 127. Acessível em: https://revistaforum.com.br/midia/2013/10/20/preciso-entender-as-redes-as-ruas-7786.html
FERREIRA, Pedro P. 2019. O xamanismo na era de sua reprodutibilidade técnica. doispontos: 16(3):81-98.
FACTA. 2017. Tupi and not tupi: entrevista com Laymert Garcia dos Santos. Facta 4:82-87. Acessível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLsw_xJJWUU1SmcjEIT9YbNUJCI4E6IP2l
GIL, Gilberto. 2023. Amigos, Sons e Palavras. 3a Temporada. Canal Brasil.
KASSAB, Álvaro. 2008. O futuro humano. Jornal da Unicamp 402. 14 de julho a 2 de agosto, pp.12-3.
__________. 2003. A tecnociência no centro da discussão (embora ela não goste). Jornal da Unicamp 240. 8 a 23 de dezembro, pp.6-7.
ORSI, Carlos. 2016. Para Laymert, país já vive Estado de Exceção. Jornal da Unicamp 654. 2 a 8 de maio, pp.5-7.