Por Renato Sérgio de Lima (FBSP; FGV-EAESP)
Julita Lemgruber é uma socióloga de combate. Nascida na véspera da queda da Berlim nazista, em abril de 1945, no Rio de Janeiro, ela é uma das mais completas traduções de intelectual que coloca suas energias não só na compreensão refinada e embasada dos fenômenos sociais, mas sobretudo as transforma em indignação contra a múltiplas faces da indiferença provocadas pela ação desumanizadora, violenta e racista do Estado brasileiro. Sua trajetória é, ao mesmo tempo, sólida em termos de formação teórica, coerente nas opções de pesquisa e marcada pela inquietude que nunca a deixou acomodada com os percursos acadêmicos clássicos da profissão no país. Julita graduou-se m Ciências Sociais em 1972 pela UFRJ, fez seu mestrado em 1976 pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), onde estabeleceu diálogo com Gilberto Velho, que teve forte influência em sua formação com os estudos sobre comportamento desviante, e Carlos Hasenbalg, que a fez pensar em focar a questão racial em sua dissertação. Mas, para além dos diálogos temáticos, outro fato que merece destaque é que Julita terminou os créditos do mestrado em Columbia, em Nova Iorque. E por que faço esse destaque?
Porque, se olharmos com as lentes do presente para a agenda de pesquisa que Julita tem se dedicado nestes mais de 45 anos de profissão, veremos que existe um poderoso amálgama que a une e que nasceu no período do seu mestrado. Ele é formado pela síntese da sua formação acadêmica sólida e dos debates temáticos que ela teve no IUPERJ da década de 1970 com a oportunidade de, desde cedo, ter um olhar sociológico internacionalizado; com a possibilidade de compreender padrões globais e especificidades nacionais acerca dos problemas suscitados por sua agenda de pesquisa. Se é verdade que, no início das nossas carreiras, as coincidências e redes de relacionamento são fundamentais para rumos que tomamos, também é verdade que é preciso coragem para lidar com temas de fronteira que sempre a seduziram e a atraíram intelectual e politicamente.
Julita soube agarrar as oportunidades que foram se apresentando, como aquela em que Augusto Thompson, amigo de um tio e que havia dirigido o sistema penitenciário fluminense em dois períodos (de 1965 a 1967 e de 1975 a 1978), sugeriu que ela fosse conhecer ou as cadeias da Frei Caneca, que incluíam o primeiro presídio do país, fundado em 1850 e demolido em 2010, ou o Instituto Penal Talavera Bruce, presídio feminino inaugurado em 1942 no bairro Gericinó, em Bangu, com o argumento de que à época havia pouca produção acadêmica sobre prisões no Brasil e que precisava ser estudado. Ela, que havia procurado Thompson para tentar abrir fonte para sua pesquisa sobre delinquência juvenil, animou-se e deu a partida para que as prisões fossem o tema a que dedicaria boa parte de seus esforços profissionais e que é, até hoje, o que ela é mais reconhecida.
Foi em torno da agenda de pesquisa sobre prisões que Julita Lemgruber estabeleceu uma importante rede de pesquisa e ação política, de modo a produzir evidências sobre as condições dos cárceres no Brasil e os mecanismos de sobrevivência que os presos precisam construir para fazer frente à violência. Ela integrou e integra diversas associações, consórcios e entidades dedicadas a explicitar as condições das prisões e lutar pela garantia de direitos de milhares de pessoas privadas de liberdade e submetidas a toda sorte de humilhações, violências e riscos. Neste espírito, Julita trabalhou, em períodos intercalados, no sistema prisional fluminense (DESIPE) entre 1983 e 1994, tendo sido a primeira mulher a assumir a direção do DESIPE, em 1991, no início da gestão do ex-governador Leonel Brizola (1991-1994). E, ao estudar a reincidência criminal, explicitou a importância de censos penitenciários e de pesquisas sobre o tema. Mais do que isso, percebeu a importância de uma perspectiva mais global, ao sentir os efeitos que a declaração de Guerra às Drogas do Presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, de 1971, gerou nos sistemas prisionais da América Latina como um todo e do Brasil em particular, bem como no reforço da repressão e do proibicionismo com eixos de redefinição das políticas criminais e penitenciárias globais.
E, nesse processo, Julita foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária entre 1994 e 1998 e teve papel ativo na construção da nova legislação sobre alternativas à pena de prisão, de 1998. A partir de então, ela faz a passagem de um olhar clássico da criminologia brasileira, muito focado nos direitos penal e processual penal, para uma perspectiva mais ampla que contempla os aparatos de Estado responsáveis pela implementação da política criminal, com ênfase nas polícias e nas suas formas de controle territorial e imposição da ordem pública. Ela hipotecará seu prestígio acumulado para, em 1999, aceitar o convite de Luiz Eduardo Soares para ser Ouvidora das Polícias do Rio de Janeiro e parceira no projeto de reforma do sistema de segurança pública do estado. Um traço aqui presente e que a marcará é a disposição de produzir conhecimento para dialogar com as instituições para transformar práticas e não apenas para as imprescindíveis denúncias sobre violações de direitos humanos. Infelizmente a experiência dura pouco tempo, em especial diante das reiteradas crises e boicotes que a equipe de Luiz Eduardo teve que conviver. E, em março de 2000, Julita é convidada por Cândido Mendes, para, juntamente com Silvia Ramos e Leonarda Musumeci, criar na UCAM o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESeC.
Durante mais de 21 anos, o CESeC foi se transformando em um dos principais centros acadêmicos de pesquisa e estudos sobre segurança pública e criminalidade do país, tendo realizado dezenas de encontros, seminários e conferências internacionais. Boa parte do que é debatido nacionalmente sobre segurança e política sobre drogas ou foi fruto das pesquisas do CESeC ou da presença constante de suas pesquisadoras na mídia, com Julita liderando iniciativas, minando certezas e abrindo novas fronteiras para a pesquisa aplicada. Nos últimos anos, o projeto que mais a tem mobilizado é aquele que busca mensurar os impactos e custos sociais e econômicos do proibicionismo em relação às drogas. Não à toa, lembrando da inquietude que move Julita, em setembro de 2021, ela e as demais coordenadoras optaram por emancipar o CESeC da Universidade Cândido Mendes, na ideia de radicalizar um processo institucional em curso na última década e que tem priorizado racializar o debate sobre segurança pública no Brasil. A proposta visa abrir espaços e envolver nos projetos e estudos produzidos pelo centro jovens negros de favelas, que, ao fim e cabo, são os protagonistas principais na relação entre Estado e sociedade no campo da segurança pública e guerra às drogas.
Em conclusão, ouso dizer que o interesse pela questão racial manifestada ainda quando Julita cursava a disciplina de Carlos Hasenbalg, no IUPERJ; a influência que Gilberto Velho teve em sua formação; o olhar internacionalizado; a forte capacidade de adaptação, inovação e resiliência derivada de sua indignação ante a violência e as desigualdades são observações possíveis de uma variável latente maior que marca a personalidade de Julita Lemgruber, ou melhor, são evidências de que a liderança e o pioneirismo que ela conquistou ao longo dos anos é fruto, exatamente, da ideia de que as necessárias exigências da profissão de sociólogo não são excludentes ou conflitantes com a tomada de lado na história. Julita tem demonstrado um gigantesco compromisso ético e político tanto com a produção sociológica quanto com a construção de relações Estado e sociedade menos pautadas pela violência e pelas fraturas e vulnerabilidades sociais, raciais, de gênero, geracionais…
Sugestões de obras da autora:
LEMGRUBER, J.; PAIVA, A. A dona das chaves: Uma mulher no comando das prisões do Rio de Janeiro: Uma mulher no comando das prisões do Rio de Janeiro. Editora Record. Rio de Janeiro, 2010. 266 páginas
Sobre a autora:
LIMA, R. S.; RATTON JUNIOR, J. L. A. (Org.). As Ciências Sociais e os pioneiros nos estudos sobre crime, violência e direitos humanos no Brasil. 1. ed. São Paulo: FBSP/ANPOCS/Urbania, 2011. 304p.