Por Enrico Bueno (IFG)
Se fosse necessário definir a sociologia de Josué Pereira da Silva em poucas palavras, o aspecto mais proeminente a ser retratado seria seu antidogmatismo. Por um lado, sua produção destaca a rejeição a qualquer ortodoxia teórica: dentre suas influências e referências, nada é tomado sem ponderações críticas, nem rejeitado sem estudo criterioso. Por outro lado, tal antidogmatismo se revela também na postura autocrítica em relação às formulações alcançadas: sempre incomodado com os limites encontrados nas posições a que aderiu, não se furta a ampliar seu leque de interlocuções para superá-los. Do que resulta não um ecletismo frouxo, mas uma verdadeira trajetória de pensamento na qual se verifica grande solidez na construção teórica de cada etapa particular, bem como um fio condutor mais ou menos claro em sua totalidade.
A heterogeneidade teórica de Josué Pereira da Silva pode ser melhor entendida à luz da heterogeneidade das experiências, existenciais e intelectuais, que concorreram para a conformação de seu pensamento. Nascido (1951) e crescido no interior da Bahia, trabalhou desde muito cedo e foi alfabetizado tardiamente. Graduou-se como Bacharel em Economia na USP em 1980, defendeu seu Mestrado em História na Unicamp em 1988 e obteve o título de Doutor em Sociologia pela New School for Social Research, em 1993. Em 1994 começou a lecionar na Unicamp como bolsista, e em 1998 passou a integrar a instituição de forma permanente, como professor de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Nos escritos em que se permite colocações autobiográficas (SILVA, 2005, 2019, 2020, 2021), não converte sua trajetória em algum tipo de narrativa ideológica meritocrática no que tange à mobilidade social; do mesmo modo, sua obra sociológica rejeita constante e deliberadamente tal tendência. Pelo contrário: conhecendo a exaustão de longas jornadas de trabalho braçal, estudou as lutas dos trabalhadores pela redução da jornada (SILVA, 1996); familiarizado com as consequências da privação material, propôs-se a entender e defender a Renda Básica Universal (SILVA, 2014); ciente dos efeitos desumanizantes da subcidadania brasileira, fez da cidadania um dos seus objetos de investigação (SILVA, 2008).
Entre publicações monográficas e edições, sua obra contabiliza quase vinte livros, além de dezenas de outras intervenções como artigos, comunicações e capítulos. Em meio a esse rico arcabouço, alguns trabalhos ganham destaque: a) Três Discursos, Uma Sentença, resultante de sua dissertação de mestrado, na qual trata das disputas em São Paulo pela redução da jornada de trabalho para oito horas diárias no contexto da República Velha; b) André Gorz: trabalho e política, sua tese de doutorado, que a um só tempo discute a chamada “crise do trabalho” nas sociedades industriais contemporâneas e nos apresenta a trajetória sócio filosófica de André Gorz, constituindo um dos mais importantes trabalhos para a recepção do filósofo francês no Brasil; c) Trabalho, Cidadania e Reconhecimento, obra de grande densidade teórica, em que Josué trata das questões mais sobressalientes na teoria crítica contemporânea a partir dos três eixos conceituais anunciados no título; d) Por que Renda Básica?, uma coletânea de doze textos (entre artigos e entrevistas do autor) na qual não apenas se introduz o programa sociopolítico que o intitula, como também o relaciona com proeminentes debates da teoria social contemporânea (cidadania, desigualdade, redistribuição, reconhecimento, justiça social) e com a polêmica teórica sobre o estatuto do trabalho na atualidade; e) Sociologia Crítica e Crise da Esquerda, na qual são reunidos nove artigos, em que encontramos as posições mais acabadas do autor sobre os principais temas de sua trajetória: tempo de trabalho, reconhecimento, desigualdade, renda básica e o significado de uma teoria social crítica em face dos desafios contemporâneos.
Além da rica fortuna crítica que pode ser explorada nos trabalhos sociológicos, há também uma vertente mais literária e intimista na produção de Josué Pereira da Silva. Pode-se dizer que sua primeira manifestação se encontra em Os Filhos de Dona Silva, de 2005, um conjunto de depoimentos autobiográficos (dele e de cinco de seus irmãos) que narram suas trajetórias desde os tempos árduos em Jequié, sertão baiano, até a migração para São Paulo, bem como as lutas, desventuras, frustrações e conquistas experienciadas por cada um. Seja pela caracterização de sua personagem central, Silvana Pereira da Silva (mãe de Josué), seja pela descrição das condições de vida e do aspecto migratório, é inevitável que o livro também seja lido com olhar sociológico.
Mais tarde, em dois livros de contos que mesclam reminiscências e ficções, o universo das experiências pessoais de Josué foi expandido a seus leitores: trata-se de Quase Contos, Quase Casos, de 2020, e Contos de Outono, de 2021. Desde sua aposentadoria, em 2020, a aguçada percepção de Josué a respeito da vida social tem se deslocado para uma expressão literária em geral leve e bem-humorada, mas que não deixa de refletir, indireta e sutilmente, a significação sociológica que atribui à própria trajetória e suas experiências mais marcantes.
No que tange à obra sociológica propriamente dita, é inquestionável que sua contribuição fundamental se encontra no campo da teoria social – ou ainda, como prefere Fréderic Vandenberghe, da metateoria. No GT de Teoria Social da ANPOCS (do qual se constituiu como importante personagem), nas disciplinas ofertadas na Unicamp, nos livros e nas demais intervenções escritas, Josué buscou contribuir para a discussão dos fundamentos conceituais e a problematização de modelos macrossociológicos que servem como quadro referencial à explicação dos problemas sociais contemporâneos. Ainda que alguns escritos tenham se dedicado a questões empíricas particulares (como em sua dissertação de mestrado ou nas análises sobre a Lei da Renda Básica e o Programa Bolsa Família), seu grande legado se encontra nos estudos acerca de importantes modelos teóricos que dominaram a cena sociológica na segunda metade do século XX.
Particularmente, trata-se de uma contribuição no campo da teoria social crítica. E ainda que por vezes esse termo possa por vezes remeter, de forma específica, à orientação teórica herdeira da Escola de Frankfurt – como indicam seus trabalhos a respeito de Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, Axel Honneth e Nancy Fraser –, a compreensão de Josué acerca do campo excede essa tradição. Assim, nota-se em seus estudos a presença de Michel Foucault, Alain Caillé e Boaventura de Sousa Santos; além do já mencionado André Gorz, central em sua trajetória e de quem foi amigo pessoal.
Destarte, mesmo carregando uma conceituação para a Teoria Crítica que remonta ao programa de Max Horkheimer – uma crítica imanente da sociedade voltada à sua emancipação, sob a qual se constitui um diagnóstico de época (cf. Silva, 2018) –, possui uma visão flexível o suficiente desses termos para não restringir o campo por demasiado. Além disso, sua supramencionada postura antidogmática não lhe permite abdicar de eventuais interlocuções (mesmo que, por vezes, bastante crítica) com autores que dificilmente se encaixariam no escopo: é o caso, por exemplo, de Anthony Giddens, Daniel Bell, Ralf Dahrendorf, David Lockwood e T.H. Marshall. Uma posição que deveria caracterizar o campo, mas que infelizmente é menos comum do que se supõe.
Assim, é a orientação à emancipação que deve ser vista como o fio condutor de seu trabalho; e isso é válido mesmo para sua obra anterior à sua aproximação com a tradição de Frankfurt. É sob este referencial que pode ser lida sua aproximação com o marxismo na juventude, sua discussão sobre a centralidade categórica do trabalho, seus estudos sobre as lutas por trabalho digno, seu engajamento nas discussões contemporâneas sobre cidadania e Renda Básica, bem como sua importante participação na recepção brasileira da polêmica entre Axel Honneth e Nancy Fraser. Em geral, é a busca de um refinado entendimento macrossociológico das formas contemporâneas de dominação e opressão, bem como as abordagens teóricas que tratam de pensar sua superação, que constitui sua obra. E é exatamente por isso que Josué Pereira da Silva se destaca como um dos mais proeminentes teóricos críticos da sociologia brasileira.
Sugestões de obras do autor:
SILVA, Josué Pereira da. Três Discursos, Uma Sentença: Tempo e Trabalho em São Paulo (1906-1932). São Paulo: Annablume/FAPESP, 1996.
______. André Gorz: trabalho e política. São Paulo: Annablume, 2002.
______. (org.) Os Filhos de Dona Silva. São Paulo: Annablume, 2005.
______. Trabalho, Cidadania e Reconhecimento. São Paulo: Annablume, 2008.
______. SILVA, Por que renda básica? São Paulo: Annablume, 2014.
______. “Epistemologia do Sul como Teoria Crítica? Nota crítica sobre a teoria da emancipação de Boaventura de Sousa Santos”. In: Mariana Chaguri e Mário Medeiros. (Org.). Rumos do Sul: Periferia e pensamento social. São Paulo: Alameda, 2018.
______. Sociologia crítica e a crise da esquerda. São Paulo: Intermeios, 2019.
______. Quase Contos, Quase Casos. São Paulo: Edição do autor, 2020.
______. Contos de Outono. São Paulo: Edição do autor, 2021.