Por Conrado Pires de Castro (DCH/UFLA)
Há uma enganosa facilidade na caracterização da obra sociológica de José de Souza Martins. Pesquisador laborioso, híbrido de sociólogo, historiador e fotógrafo, seus trabalhos são dotados de uma dialética unidade na diversidade, síntese de múltiplas determinações – aberta, portanto, às contradições da vida social contemporânea.
Autor de obra polêmica e inovadora publicou mais de trinta livros, organizou dezenas de antologias, além de artigos em revistas especializadas, nacionais e internacionais. Escreve regularmente para grandes jornais. Uma produção ininterrupta, assentada em décadas de experiência de pesquisa empírica de campo e documental, lapidada por uma poderosa imaginação sociológica.
Nasceu em 1938, no atual município de São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo, em circunstâncias cronológicas e geográficas que o situam nos interstícios do mundo rural evanescente e do mundo fabril a despedaçar a mentalidade tradicional e a sociabilidade do “homem simples”. A origem no seio de família de trabalhadores imigrantes, a meio caminho da expropriação dos saberes comunitários da vida roceira, compelia à errância pelas franjas da sociedade em transformação. Do ponto de vista sociológico, trata-se de ambientes e situações propícios para a experiência existencial daquilo que cientistas sociais antigamente chamavam de a “crise do Brasil arcaico”.
Em quase todos seus escritos, bem como no conjunto de suas pesquisas, estão gravadas as marcas vivenciais das sucessivas socializações e ressocializações do menino de roça, metamorfoseado em moleque de subúrbio e garoto de fábrica; do normalista que abandona o futuro certo na indústria pelas incertezas da ambição do ingresso no magistério primário rural, desviando-se dessa meta após concluir a escola normal pública em 1960 e ingressar no curso de ciências sociais da USP.
Essa perspectiva caleidoscópica de observação da realidade social seria o passaporte para sua integração às atividades de auxiliar de ensino no âmbito da Cadeira de Sociologia I, sob a liderança de Florestan Fernandes, após sua formatura em 1964. Nesse círculo elaborou seus trabalhos de mestrado (1966) e doutorado (1970). Embora o nome de Martins esteja predominantemente associado às contribuições na área da sociologia rural, o início de sua carreira se deu no interior do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho. Ainda estudante de ciências sociais foi convidado para participar da realização de entrevistas com famílias operárias para uma das investigações integrantes do projeto Economia e Sociedade, eixo articulador das atividades realizadas pelo grupo reunido em torno da cátedra de Florestan Fernandes.
A ruptura do processo político advinda com o Golpe de 1964 comprometeria o impulso original dos estudos relacionados com as resistências à mudança e as distintas modalidades de consciência social indispensáveis à análise macrossociológica do subdesenvolvimento. As urgências colocadas pelo novo regime logo conduziriam a reorientações de rotas, acarretando em relativa dispersão de interesses e acomodações mais ou menos satisfatórias às exigências da situação. A violência do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, estilhaçara toda a institucionalidade política e cultural deixada intacta desde o golpe. Em 1969, as cassações das principais lideranças docentes aparentemente descaracterizariam a unidade teórico-metodológica forjada pelos projetos da Cadeira de Sociologia I, abandonando os remanescentes às imposições da conjuntura adversa.
Ao longo dos anos 1970, vendo nos dilemas da modernização agrária o avesso das promessas emancipatórias da modernidade capitalista, Martins irá acompanhar o avanço da fronteira agrícola para a Região Norte. Realiza uma verdadeira etnografia da ocupação de terras indígenas e da desintegração das relações comunitárias da economia de excedente tipicamente camponesa na Amazônia Legal. Testemunharia a emergência de novos movimentos sociais no campo, atuando junto à Comissão Pastoral da Terra; constata a “produção capitalista de relações não capitalistas de produção” como esteio da reprodução ampliada do grande capital e da expansão da lógica de acumulação primitiva nas frentes pioneiras. Paralelamente, animou um duradouro seminário sobre o método dialético, dedicado à exegese dos escritos de Marx e Henri Lefebvre.
Aos poucos foi amadurecendo os traços marcantes de seus trabalhos. Um sociólogo que mira e reflete sobre os fenômenos e sujeitos históricos situados no limite e no limiar do entrechoque de sociedades e civilizações. Neste ponto apanha e confere desdobramentos originais à rica e plural tradição do fazer sociológico ensinado e aprendido na “escola uspiana” de sociologia. Uma linhagem de pensamento que tem como nervo a capacidade de conjugar biografia e história, traduzir os fenômenos histórico-sociais em termos de problemas sociológicos.
Daí a fonte da unidade na diversidade de temas que abarcam da sociologia rural e dos movimentos sociais à sociologia da vida cotidiana e do imaginário social a ela correspondente, da sociologia da violência à sociologia da fotografia e da imagem.
Professor Emérito da USP, foi professor visitante nas Universidades da Flórida (1983), Cambridge (1993/4) e Lisboa (2000). Participou da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão (1998/2007). É Doutor Honoris Causa pelas Universidades Federais de Viçosa, da Paraíba (2013) e Universidade de São Caetano do Sul (2014).
Sugestão de obras do autor:
MARTINS, José de Souza. Conde Matarazzo: o empresário e a empresa. Estudo de sociologia do desenvolvimento. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1973. [Edição comercial da dissertação de mestrado, 1966]
MARTINS, José de Souza. A imigração e a crise do Brasil agrário. São Paulo: Pioneira, 1973. [Edição comercial da tese de doutorado, 1970]
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 9ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Contexto, 2010. [1979]
MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão política no campo. São Paulo: Hucitec, 1980.
MARTINS, José de Souza. A Sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2008. [2000]
Sobre o autor:
FREHSE, Fraya (org.) A Sociologia Enraizada de José de Souza Martins. São Paulo, Com-Arte, 2018.
MARTINS, José de Souza. Uma arqueologia da memória social: autobiografia de um moleque de fábrica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.
MARTINS, José de Souza. A sociologia como aventura: memórias. São Paulo: Contexto, 2013.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. Florestan: Sociologia e consciência social no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 15, n. 42, p. 155-158, Feb. 2000. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script= sci_arttext & pid=S0102-69092000000100012 & lng= en nrm=iso. (Acessado: 07.04.2021)
Revista de Ciências Sociais. Política & Trabalho, v. 2, n. 39, 22 dez. 2013. Dossiê Nos interstícios do (in)visível: Homenagem a José de Souza Martins. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/politicaetrabalho/article/view/17655. (Acessado: 7.04.2021)