Por Lorena Holzmann (UFRGS)
Nasceu em 11 de março de 1930, em Quaraí, pequena cidade da Campanha gaúcha, na fronteira com o Uruguai. Foi estudar em Uruguaiana, depois de terminar o curso primário em sua cidade natal, onde não havia curso ginasial. Concluiu o colegial no Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. O Julinho, como era conhecido, era a escola pública de maior prestígio no estado, considerado colégio-padrão. Nele se formaram as mais destacadas personalidades do mundo político e cultural do estado do Rio Grande do Sul. Foi, sem dúvida, oficina forjadora de gerações de lideranças. Ao chegar no Julinho, João Guilherme já tinha considerável bagagem cultural, acumulada durante um longo período em que, devido a grave enfermidade, manteve-se acamado. Dedicou-se a leituras que vieram a constituir a base de sua formação cultural, sempre acrescida de novas abordagens. Sua inquietação cultural o animava a novos desafios intelectuais.
Cursou Direito e Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Como estudante secundarista e universitário participou do movimento estudantil, como articulador e negociador, sem assumir cargos nas organizações dos estudantes. Sua vocação de articulador político marcou sua trajetória na UFRGS, onde se movimentava em torno de ideias e da defesa de posições avançadas num meio conservador, sem nunca reivindicar cargos. Agia nos bastidores.
Estudou Sociologia no curso de Filosofia, e em 1959 começou a dar aulas no curso de Ciências Sociais, na UFRGS, instalado naquele ano, a convite do professor catedrático da disciplina no curso de Economia. Na época, não havia concurso para o preenchimento de cargos de professores, sendo a proximidade com professores efetivos ou catedráticos, a via de ingresso no corpo docente. Foi assim o início da carreira docente do professor João Guilherme. Na época, grupos católicos dominavam as estruturas da universidade e, embora não tivesse apego à religião, João Guilherme tinha bom relacionamento com o catedrático de Sociologia, integrante do grupo. Mas, ao longo do tempo, João Guilherme foi se afastando desse grupo, conquistando autonomia intelectual e política dentro da Universidade.
Profundo conhecedor dos meandros da política universitária, foi um grande contador de casos envolvendo questões pessoais e intelectuais de professores e funcionários, sendo crítico feroz e sarcástico de acontecimentos e pessoas, assim como não poupava elogios a colegas e alunos quando os considerava pertinentes.
Nos primeiros anos como docente, baseava suas aulas nos “manuais” de Sociologia, então bibliografia usual no curso. Mas rapidamente, e por autodidatismo, superou essa face, passando a exigir dos alunos a leitura de clássicos da Sociologia, Marx, Weber e Durkheim e outros autores relevantes como Mannheim, Pareto, Veblen, Parsons, Merton. Foi uma inovação notável no ensino da Sociologia, ocorrida em plena vigência do regime cívico-militar iniciado em 1964. Tal avanço foi facilitado por sua grande capacidade de leitura e aprendizado, desenvolvida nos anos de enfermidade e sempre renovada. A introdução da leitura de textos de autores não usuais nos bancos acadêmicos contribuiu para destacar sua presença entre os alunos e inaugurou procedimentos inéditos no ensino da Sociologia. Era rigoroso na avaliação, perdulário nas críticas e nos elogios, sempre manifestados sem reservas. Era irreverente, controverso, contestador, polêmico sendo, por isso admirado ou detestado pelos alunos.
Foi um estudioso constante, trazendo para a sala de aula a exigência da reflexão sobre a contribuição dos autores estudados, e também incorporando as tendências que, periodicamente, se instalam no contexto dos debates acadêmicos.
Entre 1973 e 1976, preparou seu doutorado no México, mas não chegou a conclui-lo, não tendo apresentado tese à defesa. Sua experiência mais importante enquanto esteve no México, foi a possibilidade de dar aulas, oportunidade que aproveitou sem restrições, chegando a ter mais de 200 alunos em uma disciplina. Em entrevista para registro dos cientistas sociais gaúchos afirmou que suas aulas no México eram um sucesso. Modéstia não era uma das características de sua personalidade[1].
Antes de ir para o México, fundou com outros professores, no início dos anos 1970, o Mestrado em Sociologia e Ciência Política na UFRGS. Já tinha obtido, então, nessa Universidade, o reconhecimento de NOTÓRIO SABER.
Nos anos 1980 foi assessor do Reitor Francisco Ferraz. Retornando às atividades docentes, enfrentou condições que o desestimularam a continuar a dar aulas. Turmas com poucos alunos, pouco assíduos, desinteressados. Com a possibilidade de uma segunda opção no vestibular, a maioria das vagas do curso de Ciências Sociais era preenchida por alunos com bom desempenho no exame vestibular, mas que não conseguiam vagas em outros cursos de mais prestígio e maior procura na Universidade, sobretudo o curso de Direito, sendo selecionados para as Ciências Sociais, como escolha da segunda opção. Não tinham, portanto, perspectiva de continuidade no curso, daí seu pouco interesse e frequência irregular nas aulas. Decepcionado e desencantado com a docência, João Guilherme aposentou-se em 1990. Continuou a estudar, sobretudo obras de História, e a acompanhar a situação do país, analisando-a com perspicácia e agudeza em contatos informais que mantinha com colegas e ex-alunos.
João Guilherme foi um professor na concepção antiga do que é ser um docente. A sala de aula era seu palco, que queria sempre repleto de alunos, que eram sua plateia, a quem disponibilizava atenção fora das aulas. Detestava fazer pesquisa e argumentava que qualquer hipótese, desde que não fosse absurda, poderia ser comprovada. Questionava os métodos quantitativos, rejeitando a possibilidade de traduzir em números a complexidade dos processos sociais. Mesmo assim fez algumas pesquisas, como a do empresariado gaúcho, a da região colonial de Joaneta, mas nunca publicou seus resultados. A pesquisa era pouco desenvolvida na área das ciências humanas na época, na UFRGS.
Para os padrões de avaliação vigentes, João Guilherme seria um professor improdutivo. Não perpetuou sua passagem na universidade com a publicação de artigos ou livros. Como seu nome e sua biografia podem aparecer num registro de Memória de Sociólogos e Sociólogas Brasileiros? Porque inovou o ensino da disciplina na UFRGS, formando gerações de estudantes que, como profissionais, se multiplicaram como docentes na UFRGS e em outras universidades e como sociólogos em instituições públicas e privadas. É o legado de um professor à moda antiga, mas extremamente inovador e instigante. É a história de um PROFESSOR sociólogo.
Faleceu na madrugada de 30 de janeiro de 2016, em Porto Alegre, quando a cidade enfrentava os efeitos da grande tormenta que sobre ela se abatera na noite anterior.
[1] Entrevista feita por Helgio Trindade e Maria Isabel Noll (UFRGS) num projerto sobre cientistas sociais no RS, ainda não publicado.