Por Glória Diógenes (UFC)
lrlys nasceu em Fortaleza em 1950, mas pode-se dizer que é cidadã do mundo. Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP, professora titular de Sociologia do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará e pesquisadora do CNPq, com pós- doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS (Paris) e Instituto de Ciências Sociais – ICS (Lisboa), também recebeu bolsa da DAAD (Deutscher Akademiacher Austauschdienst) para ir à Alemanha, onde pesquisou guias turísticos e visões de cidade, passando por Berlim, estendendo posteriormente a experiência à Lyon e Lisboa. Sua trajetória acadêmica move-se em malhas entrecruzadas de lugares, atores, temas e campos teórico-metodológicos.
A imagem da tapeçaria, técnica que conduz um tipo de entrelaçamento entre linhas, urdiduras de fios, assemelha-se aos processos empreendidos pela pesquisadora, na contumaz interface que estabelece entre áreas diversas e temáticas de investigação (cidade, antropologia/sociologia, cultura e política). Como bem lembra José de Souza Martins, no seu artigo sobre o “artesanato intelectual na sociologia”[1], os artesãos eram tidos, comumente, como alquimistas, tendo em vista se tratar de um trabalho que transforma a natureza em coisas inúteis (p. 14). Arteiros que, na vizinhança com dádivas divinas, operavam a transformação das coisas, “a metamorfose de uma coisa em outra” (p. 15). Ao longo de sua trajetória acadêmica, Irlys soube, com maestria, entremear encontros, “misturas”, experimentos entre variadas constelações de estudos e de observação sociológica.
Tal qual costuma afirmar em entrevistas e exposições orais, Irlys considera que embora exista um eixo lógico que perpassa o escopo de sua produção, suas escolhas temáticas são muitas vezes frutos do desejo e do acaso. A passagem da pesquisadora no terreno de estudos dos movimentos sociais, dos rituais e representações da política, sobretudo das candidaturas femininas, suas deambulações antropológicas em Lisboa, Berlim e Lyon, com guias turísticos e na apreciação das imagens e narrativas de cartões postais, dar a ver que é a cidade, suas tramas culturais, as experiências de sociabilidades, que alinham o conjunto de suas investigações. O substrato da obra de Irlys é o deslocamento, assim como a fricção operada pelas modulações que perfilam contextos, práticas cotidianas e instituições.
Transitando entre a sociologia e a antropologia, Irlys vai suscitando arremates entre campos teóricos, criando estratégias metodológicas próprias de um tipo de pesquisador que caminha, descreve, apura sensibilidades, narra no espaço entre o que viu, observou e o salto de suspensão da análise. Falar sobre esta eminente intelectual brasileira significa bem mais que enumerar seus temas de investigação, sua vasta produção. Demanda, também, evidenciar sua verve criativa, a singularidade de seus modos de pesquisar, as engenhosas “chaves de leitura que costumam agenciar sua lida de cientista social. Disse ela em uma entrevista “acho que me encantei com a possibilidade da sociologia como uma forma de olhar o mundo, como se fosse uma câmera fotográfica sociológica”[2]. Assim como o fotógrafo, que carrega lentes para micro e macro distâncias, a pesquisadora aciona sua câmera de visão na medida da aproximação e/ou amplitude dos seus objetos de análise.
Escreveu inúmeras obras que possibilitam ver a diversidade de temas que atravessam sua trajetória, assim como artigos publicados nas mais reconhecidas revistas científicas brasileiras e internacionais: “O Reverso das Vitrines, Conflitos Urbanos e Cultura Política” (1992), “Chuva de Papéis, ritos e símbolos de campanha eleitoral no Brasil” (1998); “Imagens ritualizadas, apresentação de mulheres em cenários políticos” (2008); “A cidade como narrativa” (2013); “O labor criativo da pesquisa: Experiências de ensino e investigação em Ciências Sociais” (2017), também organizou diversas coletâneas em parceria com outros autores.
Vale dizer que além da exitosa carreira acadêmica, Irlys acumula formação em escrita literária, psicanálise, e como hobby, canta e toca violão nas horas vagas. Certamente, essa interface com a arte, a música, a literatura, os mistérios do inconsciente, aguça sua escuta dos “sintomas sociais”, o discernimento das emoções que movem seus narradores de pesquisa, seus campos imaginários, desejos e subjetividades.
Em 1992, na produção da resenha de seu livro “Reverso das Vitrines”[3], o que eu ali destacava, diz muito da forma como a autora vai organizando suas narrativas de pesquisa, sua forma original de construção da narrativa sociológica: “a pedra de toque do trabalho de Irlys aparece na forma como a exposição vai levando, nós leitores, a adentrar no labirinto plenamente povoado de atores que se espraiam nos movimentos sociais. A leitura é uma forma de descortinar a “pureza” e a homogeneidade, a um certo tempo atribuída a estes movimentos. Vamos percebendo os múltiplos e entrecortados de significantes. Assim, como a reflexão do cotidiano assinalada por Irlys, sua investigação é uma forma de desnaturalizar os movimentos sociais. Ela vai, lentamente, em cada faceta dos movimentos, inscrevendo-se por dentro da trama social”. É com esse desvelo, que a pesquisadora de olhar arguto, movimenta-se entre lugares de representação, conduz e exercita sua acuidade de entendimento dos universos simbólicos que regem mundos de vida e a existência singular de atores sociais.
Participa, juntamente com outros pesquisadores de várias Instituições do Brasil, do Núcleo de Antropologia da Política (NUAP), fundado em 1997, tem sua sede no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional. Tem desenvolvido junto a esse grupo de pesquisa investigações acerca de campanhas eleitorais, destacando conflitos, promessas e, mais recentemente a dualidade entre o amor e ódio na política. Teve destaque como consultora e representante em diversificadas Instituições acadêmicas como Capes, CNPq, FUNCAP- Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (representante na Câmara de Ciências Sociais). Foi Presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS (2012-2013), representante do Brasil na direção da Associação Latino-americana de Sociologia – ALAS (2013-2015). Foi também diretora da ANPOCS e participou de vários comitês dessa instituição.
Seguindo as palavras de Foucault[4] (1984, p. 68), a pesquisadora em destaque consegue, tal qual a movimentação do boto nas águas do mar, modular a natureza do seu olhar sociológico. Impulsiona, dá um salto de extensividade, vê muito, vê longe e mergulha profundo, no zigue-zague contínuo entre singular e universal. Acompanhando o curso das palavras de Irlys, na obra sobre “o labor criativo na pesquisa” (2017, p. 16), percebe-se que o fazer artesanal da pesquisa é atualmente pressionado por uma agenda “na qual os escritos vivem a descontinuidade das exigências de exposição e publicação”. Como diz a canção de Chico Buarque, “qual o quê” [5], nos fluxos ligeiros, na malha vital dos fios de pesquisa empreendidos por Irlys, há uma arte, uma estética, feitura de quem escreve como quem borda, como quem lustra as palavras. No encantador artigo escrito sobre as canções de Chico Buarque, dispõe-se o segredo de seu sopro inspirador: “recriar o cotidiano do ponto de vista poético é reinscrevê-lo no espaço de inesgotável dizer” (1998, p. 106).
Sugestões de obras da autora
BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. O reverso das Vitrines. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1992.
BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. Chuva de Papéis – ritos e símbolos de campanha eleitoral no Brasil Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.
BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. Sinfonias do cotidiano brasileiro (poesia e música em Chico Buarque de Holanda). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v.29, n.1/2, 1998, p.92-108.
BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. Cidades narradas – Memória, representações e práticas de turismo. São Paulo: Pontes, 2012.
BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. A cidade como narrativa. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2013.
BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. O labor criativo da pesquisa – Experiências de ensino e investigação em Ciências Sociais”. Fortaleza: Imprensa universitária, Fortaleza, 2017.
[1] MARTINS, José de Sousa. Artesanato intelectual na sociologia. Revista Brasileira de Sociologia, Vol 1, n 2, Jul/dez. 2013.
[2] LOPES, Gleison Maia. Trajetória, experiências e pesquisa: entrevista realizada com Irlys Alencar Firmo Barreira. Revista Café com Sociologia, V.9, n.2| pp. 01-19 | ago./dez. 2020. p.56.
[3] DIÓGENES, Glória. Resenha – Reverso das Vitrines. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, V XXIII/XXIV, n. (1/2), 267-289, 1992/1993; Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.8 n.23 São Paulo, out. 1993.
[4] FOUCAULT, Michel. A microfísica do Poder, Rio de Janeiro: Graal, 1984
[5] Canção “Com açúcar, com afeto”.