Por Thaís de Souza Lapa (UFSC)
Helena Sumiko Hirata é uma socióloga do trabalho e do gênero de renome internacional. Nascida no Japão em 1946 e criada no Brasil, graduou-se em Filosofia na USP em 1969 e foi obrigada a deixar o país em exílio político em 1971, instalando-se na França, onde permaneceu até anistia, em 1979. Realizou o doutorado em Sociologia Política pela Université de Paris VIII (1979) e obteve a Habilitation à diriger des recherches (HDR) (1997), equivalente à livre-docência, pela Universidade de Versailles-Saint-Quentin-en-Yvelines. É Diretora de Pesquisa Emérita do Centre National de Recherche Scientifique (CNRS) da França, onde integra a equipe Genre, Travail et Mobilités (GTM) do Laboratório do CRESPPA.
No Brasil, foi Professora Visitante na UNICAMP e na USP. Nesta, construiu uma relação duradoura com o Departamento de Sociologia desde os anos 1980. Mais recentemente, tornou-se Pesquisadora Associada do departamento e Professora Permanente no Programa de Pós Graduação em Sociologia (PPGS/USP).
Seu percurso é marcado por parcerias intelectuais, sendo a de mais longa duração a construída com Danièle Kergoat, com quem Hirata produz desde 1980. Dessa produção resultou uma frutífera reflexão sobre a “divisão sexual do trabalho”, conceito em cuja construção as autoras tiveram especial protagonismo. Helena também participou do processo de repensar a categoria de “trabalho” a partir da teoria feminista, alargando-o com a incorporação do trabalho doméstico e de cuidados. Ao questionar a pretensa homogeneidade da classe trabalhadora, rompe teórica e epistemológicamente com a sociologia do trabalho francesa, centrada na figura arquetípica do operário qualificado da grande indústria, considerado universal.
No Brasil, entre 1967-1968, Helena fora militante de organizações de esquerda como o POC – Partido Operário Comunista e da entidade estudantil Universidade Crítica. Mas seu contato com o feminismo se deu somente na condição de refugiada na França, quando passou a integrar a Liga Comunista Revolucionária, bem como, pouco depois, no grupo feminista Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris.
Em 1977, passou a integrar o grupo de pesquisa sobre divisão social e sexual do trabalho criado por Kergoat, o GEDISST. Ganha, em 1980, o estatuto de pesquisadora do CNRS, associada a esse grupo. Também nos 1980, integra a rede internacional Atelier Production-Reproduction (APRE), cujas formulações que se tornaram clássicas no campo dos estudos sobre a divisão sexual do trabalho foram materializadas no livro O Sexo do Trabalho (França, 1984/Brasil, 1986).
Com o retorno ao Brasil possibilitado pela anistia, em 1979, ganha impulso o seu investimento intelectual em pesquisas comparativas sobre a organização e a divisão sexual do trabalho operário entre filiais e matrizes de empresas multinacionais japonesas e francesas implantadas no Brasil.
Desde então, não parou mais de transitar entre os países. Junto à Kergoat, em eventos científicos como a ANPOCS, desde os anos 1980, participou da construção de uma agenda de pesquisas sobre divisão sexual do trabalho que contribuiu para consolidar o campo da sociologia do trabalho no debate brasileiro. Também com Kergoat, provocou frutíferos debates com o campo da psicodinâmica do trabalho francês, que estimularam a produção teórica sobre gênero e subjetividade no trabalho.
Com John Humphrey, efetuou pesquisas junto a famílias operárias paulistas que revelaram “o sexo do desemprego”. Também sobre o tema, organizou com Nadya Guimarães e Kurumi Sugita a obra vencedora do Prêmio Jabuti 2010, “Trabalho flexível, empregos precários? Uma comparação Brasil, França, Japão” (2009).
Sua vasta produção intelectual na forma de artigos, capítulos de livros e obras organizadas foi frequentemente bilíngue, mais das vezes produzida em francês e vertida ao português. Deste modo difundiu seus próprios achados de pesquisa, mas também fez repercutir na academia e na militância feminista brasileiras uma importante variedade de estudos e teorias internacionais sobre os elos entre trabalho e gênero. Exercitava, assim, uma característica que lhe é muito própria, a de ser uma intelectual generosa e agregadora.
Os principais resultados das investigações desenvolvidas por Helena durante duas décadas, conduzidas em mais de 100 empresas e em quase todos os ramos industriais, foram reunidos na sua tese HDR e posteriormente publicados no livro Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade (HIRATA, 2002). Nele, Helena retoma a teorização feminista para revisitar categorias analíticas centrais à Sociologia do Trabalho, como a qualificação, a organização e a gestão do trabalho e a subjetividade operária, afirmando a imbricação entre produção e reprodução, entre trabalho profissional e trabalho doméstico.
Nessa obra também documenta a conjugação entre divisão sexual e internacional do trabalho, ancorada na bem-sucedida aplicação de sua metodologia de pesquisa empírica comparada, construída, como relata, de modo “artesanal”, sem equipes nacionais parceiras, entrevistando pessoalmente os trabalhadores dos três países – França, Brasil e Japão, em suas línguas de origem (HIRATA, 2002, p. 17). A partir dessa obra, o debate sobre divisão sexual do trabalho ganhou nova envergadura, também no nosso país. Não sem razão, as suas contribuições teóricas são “terreno consolidado” no Brasil: a problemática da divisão sexual do trabalho que a autora evoca “interpela (ou pelo menos deveria fazê-lo) tanto a homens como a mulheres”, trazendo contribuições de relevância ampla que extrapola os limites disciplinares da sociologia do trabalho (MELLO e SILVA, 2004 p.243).
Além de divulgar a teoria feminista materialista por meio de obras como o Dicionário crítico do feminismo (França, 2000/Brasil, 2009), que coordenou com pesquisadoras francesas (traduzido para o japonês, espanhol, turco, búlgaro e persa), manteve um itinerário incansável e próprio de pesquisas orientado a fortalecer o campo da teoria social sobre “trabalho e gênero”. Desde a década de 2000 passa a se dedicar aos estudos comparativos internacionais sobre o trabalho de cuidados, sempre explorando a trilogia Brasil-França-Japão, agora num tema sobre o qual se consolida como uma das principais especialistas internacionais. Dentre suas publicações sobre o tema, merecem destaque os livros Cuidado e cuidadoras (2012), que co-organizou com Nadya Araujo Guimarães, e O gênero do cuidado – Desigualdades, significações e identidades (2020), co-autorado por ambas reunindo sua produção intelectual em parceria. Suas formulações tornaram-se fonte de reflexão e debate no contexto da pandemia da Covid 19, deixando evidente a relevância da chamada “crise dos cuidados”, que vinha sendo sublinhada pela reflexão nesse campo de estudos.
Seu percurso permite afirmar com firmeza que a autora produziu um amplo legado. Um ponto alto do reconhecimento da importância de sua produção intelectual foi a homenagem que recebeu em 2020, em Paris, no evento intitulado “Sobre os trabalhos de Helena Hirata: Trabalho, gênero e subjetividades. Da fábrica ao trabalho do care”. Durante dois dias, diversas gerações, de pesquisadores.as e militantes do Brasil e da França discutiram suas conexões, influências e aprendizados com Hirata.
O legado de Helena não se restringe à sua produção intelectual ou militante. Ela também ensina novas gerações com sua conduta ética e generosa, com seu humanismo e afetos, que a dotam de coerência ao agir de fato “contra a corrente” das relações de opressão, exploração e competitividade tão naturalizadas pelo neoliberalismo, no ambiente acadêmico e na vida.
Sugestões de obras da autora:
HIRATA, Helena. “Entrevista com Helena Hirata”. Entrevista concedida a Bárbara G. Castro e Mariana S. Roncato. Revista Ideias, Campinas, SP, v. 7, n. 1, p. 295–318, 2016.
HIRATA, Helena. “Helena Hirata. Da divisão sexual do trabalho aos estudos do trabalho de cuidado”. Entrevista concedida a Yumi Garcia. Larvas Incendiadas (podcast). Episódio #44, 14 jul. 2020.
HIRATA, Helena et al. (Org.). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. 324 p.
HIRATA, Helena, HUMPHREY, John. Estruturas familiares e sistema produtivo: famílias operárias na crise. Tempo Social. Rev. Sociol. USP, 4(1-2), p.111-131, 1992.
HIRATA, Helena, KERGOAT, Danièle. Paradigmas sociológicos revistos à luz da categoria de gênero. Que renovação aporta a epistemologia do trabalho?”, in Revista Novos Cadernos NAEA vol. 11, nº1, 2008, p.39-50.
HIRATA, Helena; GUIMARÃES, Nadya Araújo. O gênero do cuidado – desigualdades, significações e identidades. Cotia-SP, Ateliê Editorial, 2020.
HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais . Tempo Social, [S. l.], v. 26, n. 1, p. 61-73, 2014. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/84979. Acesso em: 5 jul. 2021.
HIRATA, Helena; GUIMARÃES, Nadya Araújo (Orgs.). Cuidado e Cuidadoras – As Várias Faces do Trabalho do Care. São Paulo, Editora Atlas S.A., 2012
GUIMARÃES, Nadya Araujo, HIRATA, Helena e SUGITA, Kurumi (orgs). Trabalho Flexível, empregos precários? São Paulo: Edusp, 2009.
HIRATA, Helena. Nova divisão sexual do trabalho? um olhar voltado para a empresa e a sociedade. São Paulo: Boitempo, 2002.
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A classe operária tem dois sexos. Revista Estudos Feministas. v. 2 n. 3, p. 93-100, 1994.
Sobre a autora:
BRIGUGLIO , Bianca.; GRECCO, Fabiana S.; LINDÔSO, Raquel O.; LAPA , Thaís S. “Apresentação. As proposições teórico-metodológicas de Danièle Kergoat e Helena Hirata”. Revista de Ciências Sociais – Política & Trabalho, v. 1, n. 53, p. 12-21, mar. 2021.
GUIMARÃES, Nadya A. A transversalidade do gênero: desafiando cânones nos estudos brasileiros do trabalho. Revista de Ciências Sociais – Política & Trabalho, v. 1, n. 53, p. 35–52, 2021.
MELLO E SILVA, Leonardo. Terreno Consolidado. Resenha de “Nova divisão sexual do trabalho?”. São Paulo: Novos Estudos CEBRAP, 70, p. 243-246, 2004.
MOLINIER, Pascale. O trabalho e a psique: Uma introdução à psicodinâmica do trabalho. Brasília, Paralelo15, 2013.