Helena Bomeny

Por André Botelho (UFRJ)

Até o momento, janeiro de 2023, são mais de 50 orientações de pós-graduação concluídas, teses de doutorado e dissertações de mestrado. Seus livros cobrem mais de 40 anos de publicação, desde o primeiro de 1981. Sua atuação ajudou decisivamente a modelar as áreas de pensamento social brasileiro e sociologia da educação. Helena Maria Bomeny Garchet, ou apenas Helena Bomeny, como a conhecemos profissionalmente, é uma das personalidades mais agregadoras e também cativantes da sociologia brasileira.

Para nós sociólogos é sempre importante distinguir “método” de “objeto” na pesquisa cientifica, e para Helena acredito não ser diferente. Mas, é tal a intensidade da sua contribuição que já não é tão simples separar da sua obra temas como, por exemplo, o modernismo mineiro (Helena, inclusive, conviveu com alguns de seus protagonistas, entre eles Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, não apenas como autores, mas como pessoas integrais no cotidiano), ou questões centrais como as relações entre cultura e política. Mais ainda, para aqueles que têm o privilégio da sua amizade ou mesmo da interlocução profissional com ela, é muito difícil separar esses e outros temas e questões dela mesma, Helena.

Nascida em Bom Jesus de Itabapoana, no norte do estado do Rio de Janeiro e numa família de origem libanesa (1948), Helena Bomeny graduou-se em Ciências Sociais na Universidade Federal Fluminense (UFF) em 1973, e fez mestrado (em Ciência Política), sob orientação de Olavo Brasil de Lima Junior, e doutorado (em Sociologia), sob a orientação de José Murilo de Carvalho, no antigo IUPERJ, em 1980 e 1991, respectivamente. Helena foi pesquisadora do CPDOC/FGV de janeiro de 1976 a dezembro de 2012, e professora titular de Sociologia da Escola Superior de Ciências Sociais na mesma instituição, entre março de 2006 e dezembro de 2012, curso que ela coordenou da concepção à implantação e formação da primeira turma de 2006-2010. Tendo ingressado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 1989, chegou em 2000 a professora titular de Sociologia na mesma universidade. A sensibilidade histórica aguda da socióloga Helena Bomeny e a atenção dada à relação – sempre problemática – entre cultura e política como seu objeto de investigação empírico-documental e teórica conta muito para o desenvolvimento de uma visão matizada e renovada sobre o jogo político e institucional com a cultura, em especial no estudo da construção de políticas públicas culturais e educacionais.

Guardiães da razão: modernistas mineiros, a tese de doutorado em Sociologia de Helena Bomeny, foi publicada como livro em 1994. O livro examina de um ponto de vista sociológico a atuação da primeira geração de modernistas mineiros em Belo Horizonte, cidade planejada e em ritmo acelerado de urbanização nas primeiras décadas do século XX, contrastando os anseios cosmopolitas e universalistas desses jovens escritores às constrições inescapáveis da experiência de vida provinciana. Se destaco sua tese de doutorado é porque, em primeiro lugar, como de costume em sua geração, ela é ao mesmo tempo um momento de consolidação intelectual de uma trajetória em curso e a afirmação de uma posição intelectual própria. Em segundo lugar (e aqui temos também algo que, em grande medida, se perdeu nas ciências sociais contemporâneas), se a tese de doutorado de Helena expressa esse processo em termos indiscutivelmente autorais, estes não são exatamente “individuais”. Mas, antes, o processo intelectual em pauta é em grande medida coletivo, o projeto de um grupo de pesquisadoras e pesquisadores de primeira grandeza, aliás, que deram vida ao projeto institucional de constituição de acervo e pesquisa do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. Mas, se relaciona também com a própria trajetória de outros coletivos que Helena ajudou a dar vida, como o Grupo de trabalho Pensamento Social no Brasil da ANPOCS, como já observou Lucia Lippi (1999) em seu balanço da produção intelectual do grupo.

Guardiães da razão coloca-se, assim, no centro da trajetória intelectual de Helena Bomeny, que, embora tenha se iniciado com o estudo pioneiro sobre a TV Educativa no mestrado, ganha grande incremento com os estudos sobre a política mineira no contexto de centralização aberto com a Revolução de 1930. É o caso, por exemplo, do importante “A estratégia da conciliação: Minas Gerais e a abertura política dos anos 30” publicado em Regionalismo e centralização política. Partidos e Constituinte nos anos 30, organizado por Ângela de Castro Gomes. Trajetória que consolida a discussão da política cultural do Estado Novo, que ela analisa como a primeira política de Estado nacional, ou seja, para o conjunto da sociedade, mas também sempre em termos mais amplos – cultura como relações nada lineares entre valores e interesses na vida social, como ela aprendeu em leituras finas de Max Weber. É o caso do já clássico Tempos de Capanema, de 1984, que Helena Bomeny, em co-autoria com Simon Schwartzman e Vanda Maria Ribeiro Costa, ilustra de modo exemplar aquilo que Elide Rugai Bastos aponta como movimento característico crucial do grupo do CPDOC: um esforço “voltado para a organização documental e a discussão sobre o pensamento social que informa os documentos” como modo de qualificar a articulação do campo intelectual com o político no Brasil.

Com essa bagagem intelectual invejável, Guardiães da razão permitiu repensar o debate sociológico sobre as relações entre intelectuais, sociedade e Estado não a partir da questão da validade ou não da representação de um ethos missionário historicamente cultivado pelos intelectuais ou da questão da sua cooptação ou não pelo Estado. Ao deslocar o problema para as tensões entre política e a liberdade de espírito, o livro torna as posições disjuntivas presentes nas escolhas mais convencionais entre missão ou interesse e cooptação ou não dos intelectuais por parte do Estado sem muito sentido. Daí a necessidade, enfrentada com muita competência por Helena, de recolocar o tema num patamar teórico mais amplo, relativo ao problema da racionalização da vida social, de seu desenvolvimento ambivalente e suas transformações em rotinas irracionais. A investigação sociológica das tensões entre liberdade de espírito e política está ainda em curso. Comprova-o um de seus últimos livros, Um poeta na política. Mário de Andrade, paixão e compromisso (2012), no qual, mais uma vez, leva a outro patamar os problemas estudados anteriormente, afirmando que o “encontro da literatura com a política – entrecruzamento de sensibilidade com poder – desafia a imaginação sociológica pela alteração que provoca simultaneamente em ambas”.

Vista em conjunto, minha sensação é que o ponto de fuga dessa bela trajetória intelectual talvez esteja não por acaso na educação, nos vários sentidos que esta assume no percurso de pesquisa de Helena: como objeto do engajamento dos seus mineiros; como objeto dos seus estudos, incluídos aí Darcy Ribeiro: sociologia de um indisciplinado e Newton Sucupira e os rumos da educação superior, ambos de 2001; mas também de pesquisas empíricas igualmente referenciais na sociologia como Empresário e Educação no Brasil (2002), sobre violência nas escolas do Rio de Janeiro, sobre a sociologia no ensino médio, a percepção da carreira docente pelos professores e mesmo em suas pesquisas sobre classes médias. Entendo que seus trabalhos de pensamento social brasileiro são fundamentais para os de sociologia da educação porque permitem uma visão de conjunto da sociedade, das políticas públicas e do processo histórico. Assim como estes, sobre a situação contemporânea da educação, a ajudam a perceber não apenas mudanças e continuidades na sociedade brasileira, mas, sobretudo, os sentidos delas. Isso para não falar de sua contribuição ao ensino da sociologia com seu premiado livro didático Tempos modernos, tempos de sociologia, escrito com Bianca Freire-Medeiros, Júlia O´Donnell e Raquel Emerique, o qual vem tendo várias edições desde a original de 2010.

Haveria tanto o que dizer ainda sobre a contribuição de Helena Bomeny à sociologia brasileira, mas, termino lembrando o seu papel no estudo da própria história das ciências sociais no Brasil e da nossa disciplina também em perspectiva comparada, como no projeto Ciências Sociais em língua portuguesa. O projeto mais recente é este belíssimo SBS memória: retratos de sociólogos e sociólogas brasileiras que a Sociedade Brasileira de Sociologia está desenvolvendo e que, para além da memória, dá às novas e futuras gerações uma perspectiva e recursos intelectuais para enfrentarem os desafios que se colocam e se recolocam na nossa disciplina e na sociedade brasileira. Eu que tenho trilhado alguns caminhos abertos por Helena Bomeny tenho me beneficiado muito do seu brilhantismo e da sua generosidade intelectual e é uma alegria poder rever um pouco de sua trajetória, que reúne e inspira – recorrendo a palavras como as que a própria Helena evoca para se referir ao seu, nosso, Mário de Andrade – a capacidade crítica e analítica da razão, humanizada pela consciência e pela experiência compartilhada, em busca do aperfeiçoamento da cultura e da sociedade.

Sugestões de obras da autora:

BASTOS, Elide Rugai. “O CPDOC e o pensamento social brasileiro”. In: CPDOC 30 anos. Editora FGV, 2003, pp. 97-120.

SCHWARTZMAN, Simon; BOMENY, Helena; COSTA, Vanda Maria Ribeiro. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

BOMENY, Helena. Guardiães da Razão: Modernistas Mineiros. RIO DE JANEIRO/SAO PAULO: UFRJ: TEMPO BRASILEIRO, 1994.

BOMENY, Helena. Intelectuais da Educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

BOMENY, HELENA. Darcy Ribeiro. Sociologia de um indisciplinado. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2001.

BOMENY, Helena; FREIRE-MEDEIROS, Bianca; O´DONNELL, Júlia; EMERIQUE, Raquel. Tempos Modernos, tempo de Sociologia. São Paulo, Editora do Brasil, 2010.

BOMENY, Helena. Um poeta na política. Mário de Andrade, paixão e compromisso. 1.ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012.

Sobre a autora:

OLIVEIRA, Lucia. Lippi. “Interpretações sobre o Brasil”. In: MICELI, S. (Org.): O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). 2a ed. São Paulo: Editora Sumaré; ANPOCS; Brasília, DF: CAPES, 1999, pp. 147-181.