Por Ruy Braga (USP)
Trajetória pessoal
Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira – ou Chico de Oliveira, como era mais conhecido – nasceu na cidade de Recife no dia 7 de novembro de 1933. Filho de pequenos comerciantes que tiveram 12 filhos, Chico graduou-se em Ciências Sociais na antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco, em 1956. Na faculdade, foi um dos fundadores do Movimento Estudantil Socialista de Pernambuco, ligado ao Partido Socialista Brasileiro (PSB). Após se formar, Chico aproximou-se da economia, trabalhando como técnico no Banco do Nordeste do Brasil, sediado em Fortaleza. No final da década de 1950, retornou ao Recife a convite de Celso Furtado para ajudar na criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Logo após o golpe civil-militar de 1964, Chico ficou preso por dois meses, exilando-se em seguida a sua libertação na Guatemala e, na sequência, no México, onde permaneceu por dois anos trabalhando na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
Obra sociológica
De volta ao Brasil no final dos anos 1960, Chico aceitou o convite de Octavio Ianni a fim de ingressar no recém-criado Centro Brasileiro de Análise de Planejamento (Cebrap). Nessa instituição de pesquisa, Chico escreveu seus primeiros trabalhos de maior impacto tanto na sociologia quanto na economia: “Economia brasileira: crítica à razão dualista” (1972) e “Elegia para uma re(li)gião” (1977). No Cebrap, Chico permaneceu até 1995, lecionando simultaneamente economia na PUC-SP e, a partir de 1988, sociologia na USP, onde se tornaria professor titular em 1992 e emérito em 2008.
Considerado pelo próprio Chico como sua principal obra, o ensaio “Crítica à razão dualista” foi redigido como forma de contribuir com os debates então existentes entre os membros do Cebrap a respeito da natureza do processo de expansão do capitalismo no Brasil. Ao polemizar com a interpretação de Fernando Henrique Cardoso contida em “Autoritarismo e democracia” a respeito da existência de uma “revolução burguesa” brasileira, Chico argumentou que o notório crescimento econômico do país não significava que estivéssemos passando por uma revolução burguesa, mas por uma “progressão das contradições” típica de uma sociedade semiperiférica.
Assim, Chico buscava destacar o entrelaçamento entre aspectos “modernos” e “arcaicos” da formação social brasileira, aproximando-se teoricamente das críticas do marxismo paulista às “razões dualistas” cepalina, isebiana e comunista. O eixo do argumento revelou o impasse de qualquer projeto progressista de desenvolvimento no país após o corte de 1964, isto é, um período no qual as tensões econômicas entre as classes sociais teriam se deslocado para um antagonismo abertamente político. Nessas condições, o futuro estaria “marcado pelos signos opostos do apartheid ou da revolução social”.
Nos anos 1980, depois de retornar de uma estadia de dois anos na França, Chico flertou com a possibilidade de construção de um “modo de produção social-democrata” à brasileira, na esteira do processo de abertura democrática e da emergência de um novo movimento operário e social. Inspirado no modelo francês e sob influência da teoria da regulação (Michel Aglietta, Robert Boyer, Alain Lipietz, dentre outros), Chico apostou suas fichas na esperança de que, por meio da política e da disputa negociada pelo fundo público, fosse possível forjar um novo pacto de classes no Brasil baseado num “antagonismo convergente” capaz de operacionalizar aquilo que ele chamou de “direitos do antivalor”.
No início dos anos 1990, Chico percebeu que caso o neoliberalismo, isto é, a verdadeira onda de mercantilização oriunda dos países centrais, lograsse se estabelecer no país o resultado fatalmente seria um desmanche das possibilidades de construção da sociedade salarial anunciada pelo nacional-desenvolvimentismo, porém, nunca de fato efetivada, e capaz de combinar o progresso material para os trabalhadores com os direitos da cidadania. Dessa forma, o neoliberalismo tenderia a eliminar as relações sociais democráticas, impossibilitando “uma forma de produção do excedente que não tivesse mais o valor como eixo estruturante”.
Em 1995, após 25 anos de colaboração, Chico deixou o Cebrap, do qual tornou-se presidente em 1993, e, no mesmo ano ajudou a criar, com outros colegas do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, como Maria Célia Paoli e Vera da Silva Telles, o Núcleo de Estudos dos Direitos da Cidadania (Nedic). A participação no Nedic, atual Cenedic (Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania) inaugurou a última fase de sua produção intelectual. De início ainda relativamente otimista em relação às potencialidades político-democráticas dos novos movimentos sociais, Chico avançou em uma direção cada vez mais cética a respeito da possibilidade de um arranjo capitalista efetivamente ”moderno” no Brasil, capaz de se ancorar num pacto social interclassista negociado de forma democrática.
O momento mais significativo dessa inflexão aconteceu nos primeiros anos do primeiro governo Lula, momento em que, para Chico, tornou-se nítido que também o partido dos dominados estava — contrariando o mandato que recebera das urnas — ajustando-se aos parâmetros do “totalitarismo neoliberal”. Essa é a perspectiva sustentada em seu ensaio “O ornitorrinco”, publicado em 2003. Desde então, seus ensaios e reflexões enfocaram o que ele mesmo chamou de “dialética negativa do desenvolvimento brasileiro”. Assim como o animal – ao mesmo tempo, réptil, pássaro e mamífero – que batizou esse conhecido ensaio, também o Brasil estaria aprisionado em um impasse evolutivo, uma espécie de “evolução truncada” cujo sistema se desenvolve reproduzindo desigualdades históricas, conjugando moderno e atraso, novo e arcaico.
Os ensaios de Chico nesse último período de sua vida gravitaram em torno dessa “evolução truncada”: um país que não pode mais aproveitar as brechas propiciadas pelo impulso modernizador no bojo da chamada Segunda Revolução Industrial, deixando de ser “subdesenvolvido”, sem, no entanto, ter se tornado propriamente “desenvolvido”. Se adicionarmos a esse diagnóstico uma de suas teses mais persistentes segundo a qual a burguesia brasileira se aferra à iniciativa unilateral e prefere a desordem ao constrangimento da negociação social organizada, perceberemos a razão de seu pessimismo tardio. Além de sua atualidade.
Sugestões de obras do autor
OLIVEIRA, F. Brasil: Uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018.
BRAGA, R., OLIVEIRA, F. & RIZEK, C. Hegemonia às avessas. Com Ruy Braga e Cibele Rizek. São Paulo, Boitempo, 2010.
OLIVEIRA, F. Noiva da revolução Elegia para uma re(li)gião. São Paulo: Boitempo: 2008.
“A dominação globalizada – estrutura e dinâmica da dominação burguesa no Brasil”. Em: Basualdo, Eduardo M.; Arceo, Enrique. Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias globales y experiencias nacionales. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires. Agosto 2006.
OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
OLIVEIRA, F. A navegação venturosa – ensaios sobre Celso Furtado. São Paulo: Boitempo, 2002.
OLIVEIRA, F., PAOLI, M. C. Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global. Petrópolis: Vozes, 2000.
OLIVEIRA, F. Os direitos do antivalor. Vozes: Petrópolis, 1998.
OLIVEIRA, F. O elo perdido – classe e identidade de classe. São Paulo: Perseu Bramao, 1987.
OLIVEIRA, F. A economia da dependência imperfeita. São Paulo: Graal, 1978.
OLIVEIRA, F. Elegia para uma re(li)gião. São Paulo: Paz e Terra, 1977.
Sobre o autor
Ruy Braga e Fábio Mascaro Querido. “Chico de Oliveira e as reviravoltas da crítica”. Introdução ao livro Brasil: Uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018.
Flávio da Silva Mendes. “O ovo do ornitorrinco: a trajetória de Francisco de Oliveira”. Tese de Doutorado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, 2015.
Cibele Rizek e Wagner Romão (orgs.) Francisco de Oliveira: A tarefa da crítica. Belo Horizonte: Humanitas/UFMG, 2006.